Os efeitos de drogas sintéticas como o NBome (N-Benzilfenetilaminas), alucinógena derivada do grupo da fenetilamina, assustam a população dos grandes centros do Brasil, principalmente, na cidade de São Paulo. Os dependentes químicos que antes se concentravam em um só local, conhecido como Cracolândia, hoje se espalham por vários pontos da cidade e transitam sob o efeito da droga como se fossem “zumbis”, definição de quem assiste a cenas impressionantes de degradação do ser humano.

A psiquiatra e escritora Fernanda de Paula Ramos explica que as drogas NBome têm efeitos similares ao LSD, sigla de dietilamida do ácido lisérgico, que tem ação estimulante e alucinógena. “No entanto, sua potência é cerca de 10 vezes maior do que a do LSD, sendo, portanto, mais tóxico. Os quadros de intoxicação são, geralmente, mais graves”, destaca a psiquiatra, uma das especialistas que participam esta semana do Congresso da Abead.

Fernanda Ramos ressalta que a droga sintética age por um período de 3h a 13h. “O consumo de NBome pode gerar alucinações, agitação psicomotora, comportamento violento, convulsões, pressão alta, coma e até morte. Não há ainda tratamentos específicos para a dependência dessa droga”, alerta a psiquiatra, que apresentará o tema ‘Novos alucinógenos potentes da farmacologia, métodos analíticos, toxicidades, fatalidades’.

A expansão das drogas sintéticas é, hoje, uma das maiores preocupações mundiais na área da saúde. Com efeitos muito mais potentes que as drogas “naturais”, elas são rápidas, baratas e fáceis de produzir, porém, mais difíceis de combater e tratar. O consumo tem sido crescente desde 2013 e, de acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2023, lançado em junho pelo UNODC  (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), o grupo das fenetilaminas foi o segundo maior grupo de consumo entre as novas substâncias psicoativas.

Ficou atrás apenas dos canabinoides sintéticos, também conhecidos como “drogas K” “K2, K4, K9” ou “Spice” –, que são potentes agonistas (moléculas que podem se ligar e ativar um receptor para induzir uma reação biológica) dos receptores canabinoides no cérebro. Segundo a especialista, no geral, o mecanismo de ação e os efeitos adversos das drogas sintéticas são semelhantes às drogas tradicionais de abuso.

Rastreamento da composição de drogas sintéticas

O rastreamento da composição dos sintéticos que está sendo feito em laboratório, no Brasil, é a informação mais aguardada atualmente pelos profissionais que atuam na área de transtornos por substâncias psicoativas, como a coordenadora do Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (Lecuca) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Clarice Sandi Madruga.

“É um trabalho técnico do laboratório para conseguir validar os padrões dessas novas drogas que até agora não foram identificados. Estamos esperando há mais de seis meses”, explica. A expectativa dela é divulgar os dados inéditos no XXVII Congresso da Abead, que acontece até esta quarta-feira (6), em São Paulo.

O Lecuca monitora, desde 2016, as cenas de uso em São Paulo. Há sete anos, o estudo das dimensões e do perfil dos frequentadores foi feito no bairro da Luz, região que, até então, tinha a maior concentração de dependentes, e, em 2022, acompanhou a movimentação na Praça Princesa Isabel, antes da dispersão para outros pontos da capital paulista. O último Lecuca, que compreende os anos de 2021 e 2022, foi ampliado para Recife (PE) e Brasília (DF).

Clarice também vai apresentar dados exclusivos para compreender o perfil das mulheres nas cenas de uso na palestra ‘A Epidemiologia de Drogas e Gênero: Perspectiva Nacional e Mundial em Dados e Informações’. Segundo a doutora em Psiquiatria, as mulheres são mais vulneráveis e, além da dependência química, estão mais sujeitas às doenças mentais.

“Em uma cena de uso, as mulheres têm mais chances de estarem expostas a todos os fatores de riscos. Elas sempre estão em uma situação pior do que a dos homens, têm mais transtornos comórbidos, mais indicação de quadro psicótico, suicídio, tentativa de suicídio, além de doenças infecto contagiosas”, ressalta.

Número de pessoas que sofrem transtornos por uso de substâncias cresce 45% em 10 anos

Os dados do Relatório Mundial sobre Drogas registram que o número acumulado de novas substâncias psicoativas identificadas nos últimos 15 anos atingiu 1.165 substâncias em 2021 e, segundo dados preliminares, 1.184 substâncias em 2022. Das 618 substâncias relatadas para estar no mercado global em 2021, apenas 87 foram recentemente identificadas.

Mais de 296 milhões de pessoas usaram drogas em 2021, um aumento de 23% em relação à década anterior. Já o número de pessoas que sofrem de Transtornos por Uso de Substâncias (TUS) disparou para 39,5 milhões, um aumento de 45% em 10 anos.

Ainda de acordo com o relatório, “a produção de baixo custo, fácil e rápida de drogas sintéticas transformou radicalmente muitos mercados de drogas ilícitas. Os grupos criminosos que produzem metanfetamina – a droga sintética fabricada ilegalmente mais difundida do mundo – estão tentando descumprir as leis e as respostas regulatórias por meio de novas rotas de produção, bases de operação e precursores não controlados”.

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Palavra de Especialista

Cracolândia: a maior cena aberta de consumo de drogas do Brasil resiste. E quem poderá resolver essa situação?

Por Alessandra Diehl*

Nas últimas semanas, os noticiários deram conta de novos episódios de depredação de ônibus, pagamento de pedágio para as pessoas transitarem pelo local e reiteradas e sistemáticas cenas de violência na região da Cracolândia, no Centro de São Paulo. No entanto, os avanços quase diários das polícias e órgãos públicos não conseguem conter a retomada do espaço e muito menos trazer a normalidade que a população espera.

Será preciso mais que ação policial para coibir a Cracolândia. As cenas abertas de uso de drogas representam importantes desafios para profissionais de saúde, gestores e formuladores de políticas públicas, especialmente em países de baixa e média renda. No entanto, essas cenas abertas também podem ser encontradas na maioria das grandes cidades da Europa, assim como na América do Norte: a Downtown Eastside de Vancouver abriga a maior cena aberta de consumo drogas do Canadá.

Parece haver forças que mantêm essas comunidades unidas, independentemente das substâncias usadas, causando problemas de ordem pública, levando ao recrutamento e marginalização de jovens para consumo ou venda de drogas e induzindo a sensação crescente de insegurança na população.

De acordo com dados da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas (Abead), a Cracolândia de São Paulo é a mais antiga (1989) e a mais densamente povoada, com 500 moradores e mais de 2.000 visitantes regulares. São praticamente 33 anos de existência e, apesar de várias estratégias utilizadas ao longo deste período, segue resistindo.

O Brasil tem o maior mercado de crack do mundo já que mais de 1 milhão de brasileiros consomem esta droga. Existem 370 mil usuários regulares de crack vivendo nas 26 capitais e no Distrito Federal e, aproximadamente, 80% deles usam drogas em locais públicos.

Embora alguns estudos internacionais tenham descrito várias maneiras de gerenciar cenas abertas de drogas, como aplicação da lei e intervenções sociais, há conhecimento limitado sobre os facilitadores e barreiras que promovem ou impedem a implementação de tais intervenções.

Os estudos em cenas abertas mostram que os usuários de drogas tendem a se unir como um grupo e resistirem ao que chamam de ‘pessoas normais’ que passam, assim como demonstram a importância de compartilhar drogas e serviços e aderir às regras de conduta criadas nos locais.

A experiência de estar à margem da sociedade e a necessidade de ocultar algumas de suas atividades promovem criação de regras e rituais próprios para quem consome drogas em cenas abertas. Essas regras e rituais podem ser considerados como ‘rituais de interação’. Eles fornecem aos participantes os símbolos de associação ao grupo, energia emocional e solidariedade grupal. Isso torna difícil sair de cena e pode explicar por que aqueles que o fazem voltam com frequência. 

Usuários de drogas são deslocados da praça Júlio Prestes para a praça em frente à estação Julio Prestes, conhecida como praça do Cachimbo, na região da Cracolândia (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Para aumentar a possibilidade de implementação bem-sucedida de intervenções para combater o tráfico aberto de drogas, políticos e autoridades devem prestar atenção à colaboração entre atores-chave, alocação de recursos suficientes, possível modificação da política que rege os deveres profissionais e fornecimento de medicamentos para a vulnerabilidade de indivíduos sem residência que circulam nestes locais. Além disso, instalações de tratamento suficientes devem ser fornecidas quando atividades de aplicação da lei contra as cenas de drogas abertas forem planejadas.

Falta de políticas públicas para tratamento de saúde mental e drogadição

Porém, a falta de políticas públicas para o tratamento da saúde mental e drogadição no país é um dos grandes gargalos apontados pela Abead. Sem recursos, os serviços, na maioria dos estados, estão sucateados. As políticas públicas de saúde mental no Brasil seguem tendo um subfinanciamento. E, sem saúde mental, não há saúde. Os serviços que não estão sucateados na área, estão respirando por meio de bombas de oxigênio para tentar sobreviver com o baixo repasse de verbas.

Outro fator que afeta o setor é a fragilidade das ações em andamento diante das mudanças na gestão do setor. Temos uma certa instabilidade, por vezes, das políticas de Estado que não têm garantia de continuidade a cada novo governo que entra.                                     

De modo geral, a rede de atenção psicossocial que dá suporte ao tratamento carece de organização. Embora o trabalho exista em determinados territórios deste imenso Brasil, a rede de atenção psicossocial ainda é frágil e muitas vezes desunida.

XXVII Congresso Brasileiro da Abead, que acontece de 3 a 6 de setembro, em São Paulo, tem, entre os desafios, ampliar a oferta de boas práticas clínicas com base em evidências por equipes qualificadas. Existe uma carência imensa de treinamento em adições no nosso país. Precisamos garantir acesso mais rápido a cuidados, consultas ambulatoriais e leitos para uma demanda de pacientes cada vez mais crescente.

*Psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas (Abead)

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