C. é um adolescente inteligente de 14 anos, que sonha entrar para a Marinha. É negro e um pouco acima do peso. Perdeu o pai ainda pequeno, vítima de overdose. Na escola municipal em uma comunidade do Rio de Janeiro onde estuda, com alto índice de criminalidade, os colegas de turma zombam dele e o isolam dos grupos, das atividades e brincadeiras.

“Infelizmente a cor da pele e ser morador de comunidade ainda te deixam em desvantagem nesse mundo”, lamenta a avó A. “Meu neto já foi agredido e agrediu, tentando se defender”.

Numa das muitas vezes em que foi atacado na escola, C. teve a roupa arrancada e foi filmado nu por uma colega.  Espalharam o vídeo nas redes sociais. A mãe denunciou o caso ao Conselho Tutelar e a escola foi ouvida.

Depois disso, o menino foi submetido a uma avaliação psicológica, que, curiosamente, não atestou qualquer transtorno mental, apesar dos relatos do sofrimento e da humilhado que vinha sofrendo. E com isso C. não foi encaminhado a acompanhamento psicoterapêutico, mesmo com todas as evidências de que precisa.

Sem amigos e com medo de sofrer novos abusos e agressões, C. se isolou. Em casa, sempre chora. Desenvolveu depressão e muitas vezes fica revoltado com a família, que não sabe mais o que fazer para ajudá-lo, já que mudar de escola, infelizmente, não é uma opção viável, já que faltam vagas em escolas da comunidade.

Identificado por especialistas como um problema estrutural grave, especialmente na rede pública de ensino, o bullying não é novidade para a família. A própria avó de C. também estudou na mesma escola, dos 7 aos 11 anos, quando decidiu abandonar a sala de aula por causa da “implicância” dos colegas – na época, não se usava a expressão bullying.

A. retomou os estudos 19 anos depois e enfrentou novamente o preconceito – desta vez pela idade – o professor fez um comentário etarista que ela jamais esqueceu.

“Voltei pra escola com 30 anos. Perdi tudo por palavras que me feriram e quase me mataram. Não me mataram, mas mataram meus sonhos. Onde eu morava (foto) já tinha tudo pra não dar certo. Pior que o bullying fez eu acreditar que não poderia dar”, conta A.

Foi na mesma escola que seu filho também estudou e passou pelo mesmo sofrimento. Na época, A. conseguiu tirá-lo e matricular em outra escola. Hoje, aos 58 anos, ela vê o mesmo filme se repetir, agora com seu neto. E sofre por não conseguir ajudá-lo já que é difícil conseguir uma vaga na rede pública de ensino no complexo de favelas onde a família mora.

Diante do ataque ocorrido a uma escola pública de São Paulo na última segunda-feira (23) – quando um adolescente de 16 anos, com uma arma do pai, matou uma colega de 17 anos e feriu outras três – A. resolveu contar sua história para o Portal ViDA & Ação, que reedita a série Especial Bullying. Confira a depoimento dela.

Confira o depoimento exclusivo de A. ao Portal ViDA & Ação

Meu neto é um menino inteligente, que sonha em entrar pra Marinha. Ele estuda em uma escola de comunidade com índice de violência alto e as crianças são órfãs do tráfico. O pai dele morreu de overdose. Ele ficou sabendo há pouco tempo. Tem 14 anos, é depressivo e tem complexo de inferioridade. Sofre por ser negro e um pouco gordinho. Infelizmente a cor da pele e ser morador de comunidade ainda te deixam em desvantagem nesse mundo.

C. já agrediu um menino e já foi agredido. Chora pra sair dessa escola. Fala que sofre bullying e que nós não imaginamos o que ele passa. Por último sofreu agressão física na escola. Minha filha fez uma denúncia (ao Conselho Tutelar) e parece que tomaram providências. Mas ele se esconde quando encontra esses meninos na rua. Chegou a pedir a mãe pra se esconder deles, pois iam fazer bullying dela depois na escola.

Tenho medo dessas crianças no futuro. Todo atentado feito nas escola por algum adolescente tem uma história dessas lá atrás.  Eu acho que a criança que sofre com o bullying, ela tem uma história, ela precisa de ajuda, ela precisa se aceitar, ela precisa reconhecer algumas coisas, alguns acontecimentos na vida dela, que nem meu neto.

Meu neto ficou muito para baixo, deprimido, depois que perdeu o pai. Então, fica querendo ter amigos, querendo ter companhia. Aí os amigos criticam isso, aquilo. Criticam o gordo, criticam o preto, criticam porque você não tem pai. Jogam às vezes na cara, não sabem a situação em que o pai dele morreu, não, mas falam ‘você não tem pai’.

Então. essa criança vai, tudo que se falam para ela, que ela acha que ela está para baixo, que ela é inferior, que os amigos não aceitam ele, então os amigos começam a se afastar e eles, por não querer sofrer algumas ameaças ou que alguém faça ele passar vergonha, também começam a se afastar dos amigos e se isolar.

Aí é onde entra o perigo porque eu acho que cria um ódio, uma raiva daquele amigo, daqueles amigos. É onde eles ficam adultos e alguns que não têm uma mente bem tratada, faz a violência que nós temos visto aí nas escolas.

Então, a gente tem que tratar as duas causas – de quem faz e quem recebe o bullying – porque os dois têm uma história. Todos eles têm uma história, todos eles precisam ter essa educação. A escola precisa reunir essas crianças, fazer teatro sobre bullying, mostrar vários assuntos sobre isso“.

`Puxaram a roupa dele; uma menina filmou ele nu’

Muitos professores e diretores não estão nem aí, até que acontece uma tragédia. Eles não ligavam porque estava acontecendo com o C., a minha filha falava, ninguém nem ligava, não tomava providência.

Teve uma última vez que eles puxaram a roupa dele, uma menina filmou, puxou a roupa, deixou ele nu, a menina filmou e espalhou na escola. Então a minha filha foi lá, falou, reclamou e o diretor obrigou ela a tirar a imagem do celular de todo mundo, que ela postou.

Depois disso ele ficou muito pior, mais para baixo, sentindo muito mal e com os amigos que não são amigos, ele fala que não tem amigo na escola. Eles me criticam, me chamam de gorda, me chamam de feia, me chamam de preta, essas coisas assim.

Então, a gente fica sem saber por onde iniciar. Então, a última vez agora, o menino agridiu ele porque ele falou para o menino. O menino falou para ele que ele não tinha pai. Você não tem pai? Ele falou, você que seu pai abandonou você. O meu morreu, o seu abandonou você.

Aí o menino agrediu ele, foi uma confusão. Aí a minha filha deu uma… A escola não tomou providência e a minha filha deu uma parte no conselho das escolas. Não sei como orgo é. Aí apareceu o conselho tutelar, apareceu psicólogo, apareceu várias coisas.

Aí pediu o C. para ser avaliado. Falou para ela que o Cristiano é ótimo, tem a cabeça muito boa, muito inteligente. Não tem problema nenhum. O outro menino, eu não sei qual foi a avaliação, usou. E a escola está cheia disso tudo, né?

‘Também sofri bullying na mesma escola’

Eu sofri bullying na escola, na escola que meu neto estuda. Só que hoje eu vejo bullying, antigamente não era bullying. Era uma implicância, uma coisa, e você ficava triste, claro, porque a gente não era parecido com ninguém, não somos parecidos com ninguém.

Voltei pra escola com 30 anos. Perdi tudo por palavras que me feriram e quase me mataram. Não me mataram ,mas mataram meus sonhos. Onde eu morava já tinha tudo pra não dar certo. Pior que o bullying fez eu acreditar que não poderia dar.

O meu filho mais velho estudou nessa escola também, sofreu muito, implorou e pediu pra tirar ele da escola. Consegui porque era mais fácil conseguir vaga. Hoje o meu filho é formado, fez faculdade na Uerj, é formado com inglês, mas precisou de ajuda de psicólogo. Um tempo, precisou bastante de ajuda porque passou por problemas na escola.

Não sei tudo o que passou porque ele não tinha coragem de falar. Tenho medo até de imaginar alguma situação, não quero imaginar alguma situação que ele tenha passado. Passado muito trágica com 11, 12, 13 anos e ele nunca se abriu com a gente, só pediu ajuda de um psicólogo, fez um bom período de ir com um psicólogo, mas nunca me pediu ajuda, nunca lhes abafou, nunca contou, se fechou por muito tempo.

Hoje ele é um homem, tem 34 anos, mas continua assim um pouco fechado ainda, mas graças a Deus superou muita coisa, mas sofreu muito bullying na escola, muito mesmo, prejudicou, mas graças a Deus a gente levou um psicólogo, ajudou ele e se formou, fez inglês, é muito inteligente, graças a Deus. O outro meu filho também estudou nessa escola, ele conta que sofreu muito bullying, mas que não ligava, estava nem aí, não estou nem aí. Falava e eu não ligava.

Então, cada cabeça é uma cabeça, né? Cada criança vê de uma maneira. A minha netinha, que é irmã dele, do C., não liga também, tá? Nem é isso, falar ela não fica triste, mas é dessa maneira, né? A gente tem que olhar pra cada um, cada um é cada um, cada um tem uma história, cada um tem algo a dizer.

E se a gente pudesse sentar com ele, fazer uma roda e… ‘Vamos lá, conta aí, conta você, agora conta você. E cada um poder falar o que que acha do outro, colocar no lugar, agora você é você e você vai ser você’. E a gente tem essa… Tentar salvar, né?

Porque a comunidade tá cheia.  As crianças da comunidade sonham em ser bandidos, a maioria da escola sonha em ter um fuzil, uma moto, ser bandido. As meninas ser mulher de bandido, e aqueles dois, três que sonham, que nem o C., em ser militante da Marinha, que têm sonho grande, que sonham em comprar apartamento, em trabalhar, são minoria.

E a gente fica sem saber o que fazer com a minoria e ao mesmo tempo a maioria. É uma situação muito complicada. A escola também, mas a escola tem mais recursos, tem mais como pedir ajuda, tem mais como pedir socorro e muitas vezes alguns diretores e alguns professores são omissos. Pensam ‘meu salário está pago’ e não está nem aí para aquela criança que saiu da porta para fora da escola.

 

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1 Comment
  • Cristina
    Cristina
    6 de novembro de 2023 at 20:52

    Excelente material dar voz ao silêncio.

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