Um dos maiores desafios do nosso tempo, onde somos capturados a todo instante por estímulos de prazer momentâneo, é nos aprofundarmos em assuntos que precisamos saber, mas que são bem desconfortáveis de encarar. A internet, as redes sociais, enfim, aquilo que demanda a nossa atenção, traz aquilo que o algoritmo já definiu que gostaríamos de saber.
Talvez algum pensador ou pesquisador saiba onde isso vai dar no longo prazo. Hoje, somos cobaias de experimentos que nunca antes aconteceram na história. A manipulação das bigtechs, em especial no Brasil, que está com um Congresso Nacional permeado de interesses que privilegiam os negócios do modelo neoliberal – aquele que despreza o bem comum em benefício de poucos – tem provocado danos imensuráveis. É urgente a regulamentação da internet. Isso não tem nada a ver com censura.
Faço esse preâmbulo para chamar a atenção de que ainda estamos enfrentando os impactos de um desastre. Se boa parte do país arde em chamas, as emergências estão lotadas devido à consequência da fumaça, por aqui na Região Metropolitana de Porto Alegre proliferam vírus, bactérias, perebas que nenhum médico sabe precisar.
Estamos aprendendo na marra a conviver com tudo que implica a mudança do clima. E mesmo que isso interfira diretamente da vida de todos, não é um assunto “sexy”, não atrai likes ou visualizações. Ainda é complicado demais para virar pauta de programas locais ou de influencers com milhões de seguidores. Eis um dos problemas do fisgar o público que precisa saber de onde estamos metidos: como tratar de questões complexas em poucos segundos. Se começa a complicar, já mudamos de postagem, de página, de assunto. Convivo com adolescentes, é cruel esse modelo.
Ainda desastres
Nas últimas semanas, escrevi sobre lives que trouxeram à tona contextos relevantes sobre a cobertura de desastres. No entanto, o assunto parece não ter agradado minhas leitoras (refiro-me a elas, pois acredito que a maior parte do meu público é feminino). Nas últimas semanas, não estive entre as cinco colunas mais lidas. Se por um lado conforto meu ego aceitando que tudo bem, isso faz parte, por outro, reflito sobre como podemos tratar temas duros, que nos desacomodem sobre a nossa situação. Um aspecto a ser considerado também é que o time da Sler tem gente que escreve divinamente bem, com conteúdo e leveza.
Gestão de riscos
No dia 27 de agosto, assisti à palestra “Entre a gestão de riscos e a resiliência: a preparação da população para crises no Japão,” no auditório da Famecos/PUCRS, onde estou fazendo o mestrado em Comunicação. A ministrante é uma brasileira que mora no país do sol nascente há seis anos: Aline Shimeda. Ela é pesquisadora em comunicação de risco e crise. Ela mostrou o quanto a cultura nipônica já assimilou e aprendeu a conviver numa boa, de como se comportar em casos de terremotos, tsunamis, etc.
E o mais surpreendente: em todo tempo que mora lá, apesar da alta frequência de terremotos, ela disse que nunca ficou sem energia elétrica! Só para contextualizar: moram no Japão 125.7 milhões de habitantes em 6.852 ilhas. E à medida que ela ia contando como governo, população, sistema de ensino, enfim como o conjunto da sociedade encara as medidas de precaução, logo o público presente se olhava e concluía: impossível que isso se aplique ao Brasil.
Vale assistir à palestra, que foi disponibilizada recentemente. (confira aqui)
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Em várias partes do mundo é comum que governos tomem a dianteira para se trabalhar na prevenção e na preparação das populações sobre os riscos que correm. Seja o de vir alguém armado querendo matar quem está pela frente (algo comum nos Estados Unidos), ou em casos de eventos extremos.
Como nosso estado está em uma localização geográfica onde os eventos extremos são cada vez mais frequentes, está mais do que na hora de todos – ONGs, Ministério Público, governos, distintos segmentos da sociedade civil, inclusive associações de médicos, gestores de planos de saúde, seguradoras – que estão sendo diretamente afetados pelos impactos da emergência climática se articulem para busca de soluções.
É bom lembrar que não é só chamando aqueles que vão concordar conosco que conseguiremos tratar com assertividade as crises que estamos mergulhados. Confira aqui a nota da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural sobre a composição do conselho gerenciado pelo governo do Estado do RS. O tal conselho não tem qualquer participação de organizações ambientalistas. Isso é um escândalo, ainda mais no estado que foi precursor desse movimento no Brasil.
A emergência climática desvela um tanto de emaranhados mal resolvidos, que foram sempre empurrados para debaixo do tapete ao longo da história. E quanto mais tempo demorarmos para compreender que tá todo mundo nesse navio, que está a caminho de naufragar, todos nós vamos pagar por isso. E as parcelas podem ser suaves por longo tempo, ou pesadas em curto espaço.
Um exemplo de pagamento é o que temos sentido no bolso, ops, digo, nas nossas vias respiratórias. Você ficou doente ou conhece alguém que tenha ficado e teve que gastar uma grana para comprar remédios devido às viroses do pós-enchente ou às mudanças bruscas de temperatura? Já tratei desse assunto aqui na Sler. Pois agora aqui em casa, meu filho e meu marido é que foram atacados por alguns desses bichinhos que andam rondando por aí.
Castells para contextualizar
Para encerrar, trago algumas ideias do livro Ruptura – A crise da democracia liberal, de Manuel Castells. Ele aborda na obra, lançada na Espanha em 2017, o quanto as sociedades estão descontentes com seus representantes. Para ele, a ruptura da relação institucional entre governantes e governados cria uma situação caótica problemática no contexto da evolução mais ampla de nossa existência como espécie no planeta.
Hoje se questiona a habitabilidade deste planeta devido à ação da nossa própria espécie e de nossa incapacidade de corrigir o que temos provocado. O desenvolvimento tecnológico está em contradição com o subdesenvolvimento político e ético.
E mais: ele previu o surgimento do que vivemos com a Covid-19. Ele perguntou: em que condições ecológicas as megalópoles podem provocar, e de fato provocam, pandemias de todo tipo? “Esse contexto serve ao mercado para as multinacionais farmacêuticas, esse malévolo poder que raptou e deformou a ciência da vida para seu exclusivo benefício,” sentenciou.
E conclui: tudo isso é resultado da ideologia do consumo como valor e do dinheiro como medida de sucesso, acompanha o modelo neoliberal triunfante, centrado no indivíduo e em sua satisfação imediata monetizada.
Acredito que precisamos estar cientes do cenário, mas não podemos perder a esperança. As eleições estão aí, já pensou em conversar com indecisos? Que tal perguntar para seus candidatos ou candidatas quais os planos para lidar com os desafios que as variáveis climáticas nos impõem?
Castells entende que a reconstrução precisa ser de baixo para cima. “Cada um de nós deve assumir a responsabilidade pelas nossas vidas”. O livro traz dados que devem servir de “embriões de liberdade” que devem servir para se pensar alternativas nas mentes dos leitores. A intenção é que sirvam para “configurar um caos criativo”, no qual aprendamos “a fluir com a vida, em vez de aprisioná-la em burocracias e programá-la em algoritmos”.
“Aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto se conformar à disciplina de uma ordem,” acredita o sociólogo de 82 anos, que se divide entre Barcelona, na Espanha, e Santa Mônica, na Califórnia, nos Estados Unidos.
Sílvia Marcuzzo é jornalista, artivista, mestranda na Famecos/PUCRS e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Comunicação, Crise e Cuidado. Articuladora de coletivos, repórter freelancer e editora de publicações socioambientais. Trabalha com comunicação e meio ambiente desde 1993. É consultora e assessora de organizações que atuam pelo bem da coletividade, por um mundo mais sustentável e com qualidade de vida para todos. Saiba mais em silviamarcuzzo.com.br
Texto publicado originalmente no site Sler.