Uma das doenças raras mais desafiadoras, a atrofia muscular espinhal (AME) vem ganhando cada vez mais visibilidade nas redes sociais. De origem genética e neurodegenerativa, ela causa a morte de neurônios motores responsáveis por movimentos voluntários e involuntários, como andar, mastigar e respirar. Ao contrário do que muita gente pensa, a AME – como é conhecida – pode afetar pessoas de todas as idades, embora seja mais comum em crianças até 18 meses.

No Brasil, estima-se um caso de AME em cada 10 mil nascimentos, segundo estudo publicado na National Library of Medicine. A maiori (58%) é do tipo 1, que ocorre em bebes até 6 meses, mas 35% das pessoas com AME são jovens e adultos com os tipos 3 e 4.  Daniela Bublitz, atriz, cantora e influenciadora digital, faz parte desta estatística desde bebê, mas mostra que sua vida vale muito mais que números.

No diagnóstico, antes de 1 ano de idade, o médico disse a seus pais que ela deveria caminhar até os oito anos e sua expectativa de vida seria até os 12. Contrariando todos os prognósticos, ela não só chegou aos 29, como se mantém plenamente ativa, graças a uma nova medicação que toma há cinco anos e também à música. A menina que começou a cantar aos 7 anos virou mulher e hoje sonha em ganhar os palcos do mundo e garantir acessibilidade a artistas que são pessoas com deficiência (PCDs).

“Meu maior sonho é me tornar uma cantora reconhecida, uma das primeiras pessoas PCDs cadeirantes reconhecida. Sonho em colocar uma rampa em todos os palcos do mundo. São poucos os palcos que têm rampa, porque a gente não é considerado artista. Tem que quebrar esse paradigma”, afirma ele, em depoimento ao Portal ViDA & Ação (veja o relato na íntegra no fim desta reportagem).

‘Vocês são donos de farmácia, mas não conseguirão um remédio para ela’, disse o médico aos pais

Graças à música e a uma medicação que controla o processo degenerativo da AME – a Spinraza (nusinersena), que está disponível desde 2019 no Sistema Único de Saúde (SUS) -, Daniela leva uma vida normal e produtiva. Mas nem sempre foi assim, como conta a cantora, que foi diagnosticada em 1996, antes de completar um ano de idade.

“Apesar de eu ter engatinhado e dado uns passinhos, meus pais perceberam que eu comecei a apresentar uma dificuldade para levantar do chão”, conta a moradora de Venâncio Aires, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul.

Mesmo sendo filha de pais com farmácia na cidade, ela enfrentou muitas dificuldades no diagnóstico e tratamento. “Meus pais sempre contam que, na hora de dar o diagnóstico, o médico segurou as mãos dos meus pais e falou: ‘Vocês são donos de farmácia, mas infelizmente vocês não vão conseguir o remédio para filha de vocês’”, conta.

De fato, naquela época, não havia remédio para controlar a doença, que é degenerativa e progressiva. Então, antes de perder de vez os movimentos, os pais proporcionaram a Daniela tudo o que era possível – fisioterapia, natação, patinação, balé, jazz…

Até que aos 13 anos não teve jeito: ela teve que passar a usar cadeira de rodas. O maior incentivo veio da mãe, diagnosticada à época com câncer de mama. “Não queria causar outra tristeza nela de me ver triste”.

Esperança: a descoberta e a espera de uma nova medicação

Em 2016, no entanto, veio a esperança: uma nova medicação estava chegando ao Brasil, a Spinraza (nusinersena). Ela teve que judicializar o plano de saúde para conseguir o medicamento e, quase dois anos depois, e pôde finalmente iniciar o tratamento promissor em 2018. Cada dose do medicamento, de uso contínuo a cada quatro meses, chegaria custar mais de R$ 300 mil se fosse comprada.

“Se eu tivesse conseguido essa medicação, dois anos antes eu estava conseguindo lavar o meu cabelo, pentear, coisas simples, mas que fariam a diferença para mim’, lamenta.

Apesar da demora no início do tratamento com a nova medicação, Daniela atribui a ela uma grande melhora na sua qualidade de vida, ao interromper o processo de degeneração que poderia comprometer mais as suas habilidades motoras e impedi-la de fazer o que mais ama: cantar. Hoje, ela ainda teme não ter mais acesso ao medicamento, mas não para de lutar.

“Continuo estudando música e aproveitando ao máximo a vida e rezando todos os dias para não perder essa medicação. Hoje, um dos meus maiores medos é a volta da degeneração da doença. Eu acho que seria muito assustador para mim. E experimentando esse novo estilo de vida, eu nunca vou parar de lutar”, conta Daniela.

Pensando assim, a jovem hoje dedica sua vida à arte e à música. Hoje, divide seu tempo também com o trabalho de conscientização sobre a doença.  Ela compartilha nas redes sociais seu processo até o diagnóstico, os principais desafios e impactos enfrentados, assim como a incursão na carreira artística e suas maiores conquistas graças ao cuidado constante em parceria com sua equipe médica. No ano passado, participou do AMEcast, o primeiro videocast sobre atrofia muscular espinhal.

Veja o depoimento de Daniela Bublitz na íntegra

‘Minha expectativa de vida era até os 12 anos’

Por Daniela Bublitz*

Meu nome é Daniela Bublitz, eu estou com 29 anos e tenho atrofia muscular espinhal (AME). Para entender um pouco a doença, eu acho que a maneira mais fácil de explicar é dizer que ela é uma doença degenerativa que piora com o tempo e vai enfraquecer todos os músculos do corpo. Não é bem isso na prática, mas é o que vai ocasionando no corpo. Mas de uma maneira de fácil entendimento, é isso, os músculos vão perdendo as forças à medida que o tempo passa. 

A minha doença foi percebida antes de eu completar um ano de idade. Apesar de eu ter engatinhado e dado uns passinhos ainda ali criança antes de um ano, eu comecei a apresentar uma dificuldade para levantar do chão. Meus pais percebiam que que eu levantava de uma forma esquisita, eu ia me impulsionando assim nas pernas subindo devagar e eu perdia o equilíbrio muito fácil.

Então, eles começaram a investigar o diagnóstico. Demorou alguns meses principalmente porque eu moro no interior no interior. Sou natural de Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, e ainda resido lá. Na época não tinham muitos médicos especialistas. Então eu fui sendo encaminhada de médico em médico até que em Passo Fundo (RS) encontramos um médico que tinha uma desconfiança entre três doenças.

Ele me mandou para Capitólio, em Porto Alegre, para fazer um exame chamado de eletromiografia. Eram umas agulhas que faziam uma detecção das respostas musculares e por ali foi detectado que eu tinha meu atrofia muscular espinhal.

O diagnóstico em fibra nostais foi muito difícil principalmente porque em 1996 não se tinha tanto conhecimento da doença. Não havia muitos prognósticos positivos, assim como não tinha tratamento e nem remédios, além da falta de conhecimento, inclusive para meus pais.

‘Eu era uma luzinha que nunca poderia apagar’

Na época, foi passado que minha expectativa de caminhar era até os oito anos e que a minha expectativa de vida seria até os 12. Meus pais sempre contam que e o médico, na hora de dar o diagnóstico, segurou as mãos dos meus pais e falou que “vocês são donos de farmácia, mas infelizmente vocês não vão conseguir o remédio para filha de vocês”.

Ele incentivou meus pais a terem muita fé e nunca desistirem; que eu era uma luzinha que nunca poderia apagar porque o momento que apagasse ela não ia ligar mais. Então, foi um diagnóstico bem difícil para meus pais. Eu, mesmo criança, incrivelmente sabia, só que eu levava com leveza e sempre levei com leveza.

E aí começou intensamente a nossa luta para tentar sobreviver o máximo de tempo possível. E fazer de tudo que tivesse ao nosso alcance. Eu fazia três fisioterapeutas, duas natações e qualquer coisa que aparecia, seja no campo da fé, seja no campo do corpo, a gente estava correndo atrás. Eu e meus pais nunca paramos.

Eu tinha consciência de que eu não ia viver muito tempo ou ter uma qualidade de vida a longo prazo. Então eu realmente não sei a mentalidade que eu tinha quando eu era criança, mas eu me orgulho muito disso. Eu sempre fui e sou ainda muito para frente e acho que isso que me ajudou muito. E eu tendo essa consciência aqui que eu ia perder as forças.

E já sentindo na pele as minhas forças indo embora, eu fiz de tudo antes de parar de caminhar e isso foi até os 13 anos de idade. Eu fiz patinação, fiz balé, fiz jazz. Tudo, tudo, tudo que eu podia fazer antes parar de caminhar eu fiz. 

‘Aos 7 anos descobri que minha maior paixão é cantar’

Minha mãe tinha um tecladinho que eu gostava de brincar desde bebê. Então, com cinco anos de idade, ela me colocou numa aula de teclado e eu cantava junto. Eu comecei a gostar disso e na aula o professor percebeu que tinha uma facilidade de afinação. Chegou uma hora que eu ia para lá para cantar, não para tocar o teclado. Aí eu comecei a cantar. Com sete anos de idade que eu descobri a minha maior paixão que é cantar.

Meu professor de música me colocou para cantar no final de ano da escola. Eu sempre fui tímida, muito tímida. Mas ali naquele momento não era mais. Foi incrível o que eu senti. Parecia que era uma transmissão de energia, eu sabia que era aquilo que eu queria fazer para o resto da minha vida. Transmitir emoção através da música. Ver a esperança renascer na carinha de todo mundo.

A emoção foi tão incrível tão incrível que eu sabia que era aquilo que eu queria e não parei mais. Qualquer oportunidade que aparecia para eu cantar meus pais me levavam. Até porque a música foi muito importante na minha parte psicológica e na minha parte física.

A AME afeta todos os músculos do corpo e um dos mais afetados é o diafragma. Então, teoricamente eu sei que perderia muita e capacidade pulmonar a partir disso. Só que como eu exercitei inconscientemente esse músculo por muito muito tempo, a minha capacidade pulmonar é praticamente 100%.

Cadeira de rodas: ‘foi uma transição difícil, eu era cabeça-dura’

Eu passei para cadeira de rodas com 13 anos de idade. Na verdade, já com 12 eu não conseguia mais caminhar, eu me arrastava. Só que eu era uma cabeça dura e eu não queria passar para cadeira nem para o andador, porque eu sabia que era um caminho sem volta. Eu falo de não ter volta no sentido que eu sabia que no momento que que os meus músculos ali apagassem, eles não iam voltar. 

Foi uma transição difícil por causa da minha cabeça duríssima eu não queria, eu não queria me entregar, sabe? Estava passando por uma fase difícil. Minha mãe foi diagnosticada com um câncer de mama. Como eu estava com 12 anos e meio, aí tinha toda aquela pressão e ela estava sempre triste. Nessa época eu não queria também que eu causasse outra tristeza nela de me ver triste.

Então, foi uma época extremamente difícil. E meu pai nos presenteou com uma viagem para os Estados Unidos, pra Disney. Lá eu descobri as scooters, as motinhas, e daquilo ali eu gostei. Experimentei uma e me encontrei ali. Foi outro insight. Aquelas seriam as minhas pernas e daí eu comecei a usar Scooter. E uso ela até hoje.

Uma esperança contra a evolução da doença

Me formei na escola, sempre cantando, fazendo curso de técnica vocal. Inclusive – faço até hoje com vários professores. Quando eu completei meus 18 anos, fiz o meu curso de teatro, cinema e telenovela. Me formei em teatro e nisso a doença começou a avançar de uma maneira assim estrondosa. Eu comecei a parar de conseguir me transferir (da cadeira para a cama), também não conseguia mais colocar o sapato.

Vieram as crises de pânico, o medo do amanhã, o medo de dormir. Toda vez que eu dormia eu levantava eu acordava pior. Mas veio uma esperança que era o medicamento que estava vindo para cá, que estanca a degeneração: o Spinraza. Um medicamento que ia ser aplicado por uma punção lombar e é injetada na coluna e ele te ajuda a não degenerar.

Isso foi em 2015 que a gente descobriu que possivelmente estaria vindo para o Brasil. E é óbvio que isso acendeu uma esperança, mas a gente sabe como como são as coisas e a dificuldade que seria conseguir pelo preço e pelo tempo que iria demorar. E a AME é uma doença que não para, ela estava ali, avançando e avançando.

Espera de quase dois anos na Justiça pelo novo medicamento

Assim que a medicação chegou, eu logo corri atrás para tentar conseguir porque eu não queria perder mais tempo. Ainda mais que nos últimos anos eu estava em degeneração. Eu estava com muito medo de perder mais coisas e de não conseguir segurar o microfone.

Eu tive que entrar na justiça porque o plano de saúde obviamente negou. Foi um ano e oito meses de luta para conseguir a medicação. Quase dois anos que eu perdi muita coisa também. E eu fico pensando: ‘Se eu tivesse conseguido essa medicação há dois anos antes eu estava conseguindo lavar o meu cabelo, estava conseguindo pentear, coisas simples, mas que fariam a diferença para mim’.

Então, desde 2018, eu consegui a minha primeira aplicação. Foi um ano bom. Foi um ano incrível porque eu também cantei com Fernando e Sorocaba. Eles me presentearam com uma produção. Então, eu tenho uma música no spotify que foi produzida nos estúdios da dupla em São Paulo. Foi um ano de muitas vitórias.

‘O meio artístico é difícil, imagina para uma cadeirante?’

O meu maior sonho é me tornar uma cantora reconhecida, uma das primeiras pessoas PCDs cadeirantes reconhecida. Mas é claro que o meio artístico é um meio difícil para todos e agora imagina para uma cadeirante.

Também sonho em colocar uma rampa em todos os palcos do mundo. Porque não sei se você já percebeu, mas são poucos os palcos que têm rampa, porque a gente não é considerado artista. Tem que quebrar esse paradigma.

No momento, eu sigo tentando lutar pela realização desse meu sonho de ser uma cantora reconhecida, nunca vou parar de lutar, continuo estudando música e aproveitando ao máximo a vida e rezando todos os dias para não perder essa medicação.

A volta da degeneração é um dos meus maiores medo, principalmente agora que experimente esse estilo de vida sem um final trágico, por mais que a gente nunca saiba como vai ser o final. Enfim, tem muitos detalhes, muitas derrotas e muitas vitórias. Minha vida é uma montanha russa, mas eu amo viver.

Eu falei antes que a minha história é comprida, né? Ela é muito comprida. Eu tenho muitos detalhes. Muitos, muitos, muitos detalhes que não foram contados. São muitos capítulos. Eu sempre pensei que não seriam poucos capítulos, mas depois da medicação. eu sei que eu posso escrever uma enciclopédia se eu quiser, porque eu tenho tempo para isso.

Mais sobre Daniela

Formada em inglês, Daniela começou a cantar aos sete anos e estuda técnica vocal desde os nove, sendo cinco anos de especialização com o professor Victor Teixeira, ‘neto do Teixeirinha’. É formada em teatro, cinema e telenovela pelo Instituto de Ciências e Artes do Brasil (Icab) e em teoria musical e piano pela Escola Cordas e Cordas de Porto Alegre. Tem dois anos de teatro musical com a Bublitz, academia de musicais também de Porto Alegre.

A jovem cantora gaúcha já ganhou inúmeros festivais de canto. Participou em musicais como “A Pequena Sereia’, ‘Matilda’ e ‘Escola do Rock’ e foi embaixatriz do chimarrão do Rio Grande do Sul, em 2015. Ela já fez apresentações e showss no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Liderança de mentes e apresentação em público pelo MaterMind. 

Daniela acumula participações vocais com vários artistas como Luka, Fernando e Sorocaba e Paulo Brito. Realizou apresentações em projetos como Ébano e Marfim, com apresentações no teatro São Pedro, em Porto Alegre, e dois filmes musicais com a BAM (2021 e 2022).Tem trabalhos autorais gravados pela FS Produções, em São Paulo, com assessoria de Sorocaba e Ray Facri. 

Com informações da Biogen

Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!
Shares:

Related Posts

1 Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *