Você paga por anos um plano de saúde e na hora que mais precisa vai usar o serviço e descobre que não tem mais por conta de um cancelamento unilateral, ou seja, o plano resolveu tirar o seu convênio. Isso é o que está acontecendo com diversos clientes de planos de saúde, principalmente pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) e outros transtornos do neurodesenvolvimento, pessoas com deficiência, doenças raras e doenças graves, além de pessoas idosas.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta o setor, recebeu nos últimos cinco anos mais de 69 mil reclamações relacionadas ao cancelamento unilateral dos planos de saúde. Apenas nos três primeiros meses de 2024, a ANS contabilizou 4,8 mil queixas do tipo. Segundo informações do Procon, em abril o número de reclamações registradas subiu 46%, sendo que entre 2022 e 2024 as queixas passaram de 1.652 para 2.416 entre janeiro e fevereiro.
Casos recentes de desligamentos de usuários deplanosdesaúde por parte da operadora geraram alerta na população. Desde abril, uma série de denúncias vêm sendo divulgadas sobre situações diversas de pacientes que tiveram o seu plano de saúde cancelados de maneira inesperada ou que receberam uma simples mensagem informando do cancelamento.
O primeiro a repercutir foi o caso de Martha Zequetto Treco, de 102 anos, cliente desde 2009 do plano de saúde coletivo por adesão da Unimed, pelo qual paga R$ 9,3 mil por mês – a família teve que recorrer à Justiça contra o canelamento dos serviços, informado por email. O caso de Martha não é isolado.
Esta semana, um abaixo-assinado publicado na plataforma Change.org que, com cerca de 30 mil assinaturas, denuncia a ilegalidade da medida tomada pela Amil, juntamente com a Qualicorp, de cancelamento em massa de pessoas que contrataram planos coletivos por adesão. Esse cancelamento é ilegal em caso de pessoas com deficiências e em tratamento médico. Confira a petição “Não Cancelem o meu Direito de Viver”.

Há inúmeros pacientes de homecare com aparelhos de suporte de vida, pessoas em tratamentos para transtornos em geral, como neoplasias, doenças raras, crônicas e autoimunes, que tiveram seus planos cancelados”, afirmam os organizadores do abaixo-assinado.

MP de São Paulo investiga denúncias contra a Amil

Diversas denúncias de usuários do plano de saúde Amil geraram uma investigação por parte do Ministério Público de São Paulo. O caso envolve o cancelamento unilateral de contratos coletivos administrados pela Qualicorp de crianças autistas e pessoas com doenças raras, muitas em tratamento.

Em e-mail enviado pela Qualicorp aos beneficiários, a empresa alega que a adesão dos contratos coletivos de cobertura médica vem gerando prejuízo acumulado à operadora, resultando em índices de reajuste que, ainda assim, não foram suficientes para reverter a situação.

Em nota, a Amil diz que está reformulando a grade de produtos e, com isso, revendo os contratos com as companhias que administram os planos coletivos por adesão, o que inclui a Qualicorp. A operadora afirma que o cancelamento não tem relação com as demandas médicas ou tratamentos específicos, apenas com a modalidade do plano.

Os casos de judicialização vêm crescendo em todo o país. Escritórios de advocacia especializados em Direito da Saúde registram alta na procura de clientes para ingresso de ações judiciais. No escritório Vilhena Silva, um dos maiores na área da saúde, a alta foi de 183% nos três primeiros meses deste ano em relação ao mesmo período de 2023 (42 contra 119).

Consultora explica passo a passo

O assunto é burocrático, polêmico e repleto de letras pequenas que preocupa as pessoas sobre o risco de serem pegas de surpresa por um cancelamento de contrato. Pensando nisso, Elaine Souza de Oliveira, consultora da Nova Assist, resume os principais pontos que o usuário de plano deve saber para se proteger. Ela explica que há dois tipos de planos de saúde atualmente:
individuais e familiares (contratado por pessoa física individual, com ou sem dependentes) e
planos coletivos (empresas ou associações, em que o empregador ou associado contrata para si, funcionários e dependentes).
“Os planos individuais ou familiares só poderão ser cancelados em casos de inadimplência ou fraude, conforme legislação vigente”, adianta a consultora. Já os planos coletivos podem ser cancelados unilateralmente pela operadora, desde que as condições de rescisão constem em contrato de serviço da operadora.
Essas informações precisam estar bem claras, conforme Resolução 509 de 2022, da ANS, e cumprir os quesitos mínimos para o cancelamento: vigência mínima de 12 meses de contrato e aviso prévio de 60 dias”, detalha Elaine.

Quando uma operadora pode cancelar o plano de alguém:

Há uma variação conforme o modelo de contrato de cada empresa, mas, em linhas gerais, Elaine aponta como motivos legítimos:

  • obtenção de ganho ilícito em casos de fraude utilizando-se de reembolso
  • utilização do plano com especificidade clínica não comprovada causando impacto e prejuízos a operadora
  • falsa informação de estado clínico
  • documentos irregulares ou informações falsas na contratação
  • utilização do plano por terceiros ou empréstimo de carteirinha
  • quebra de recibos ou notas fiscais

“Nos casos de inadimplência, o usuário deverá estar há 60 dias corridos ou acumulados sem pagar a mensalidade, mas deverá ser notificado do cancelamento no 50º dia, gerando oportunidade de quitação ou formalização do cancelamento pela operadora”, complementa Elaine. Segundo ela, a formalização ao consumidor pode ser por meio on-line, digital e pessoal, com devido comprovante de recebimento do comunicado.

Quando a operadora não pode descredenciar um cliente?

A consultora da Nova Assist informa que a provedora não pode desligar um paciente que esteja num tratamento médico contínuo essencial para sua sobrevivência ou segurança física e/ou psíquica. “Mesmo em casos de cancelamento unilateral de um plano coletivo, a operadora deverá garantir a continuidade do tratamento até a alta, em respeito à Lei 9.656/98″, informa.

Ela ainda lista como condições abusivas de cancelamento: rescisão imotivada sem previsão contratual; cancelamentos sem conceder a migração para outro plano sem carência, ação que traga riscos ao consumidor em posição de vulnerabilidade (pessoas com quadros paliativos, idosos e deficientes).

O que se deve priorizar na leitura do contrato?

Segundo Elaine, as cláusulas que envolvem as condições de utilização do plano e as que tratam das condições de cancelamento são as mais necessárias. Ela cita a Resolução Normativa nº 509/2022 da ANS, que dispõe sobre a transparência das informações e obriga operadoras a oferecerem conteúdo mínimo obrigatório de informações.

Muitas pessoas acabam não se atentando ao fato de que a operadora pode cancelar o contrato unilateralmente e sem justificativa. Por isso é importante lembrar que toda informação que constar em contrato deverá ser apresentada de forma clara e objetiva para facilitar a compreensão do consumidor”, orienta a especialista.

Como denunciar o cancelamento?

Por fim, Elaine informa que a pessoa que se sentir lesada por um cancelamento injustificado deve procurar a ANS em seus canais digitais. A ANS é a agência reguladora responsável pela saúde suplementar, que é o setor de planos de saúde no Brasil.

Ao registrar uma reclamação, por meio da NIP – Notificação de Intermediação Preliminar, forma amigável de composição de conflitos, o consumidor terá acesso à resposta da operadora ou administradora de benefícios e poderá informar para a ANS se seu problema foi realmente resolvido.

Em caso negativo, sua demanda pode virar um processo sancionador pela ANS, que poderá resultar em aplicação de penalidade na operadora de plano de saúde ou na administradora de benefícios.

O que dizem especialistas em Direito da Saúde e do Consumidor

Alegação das operadoras é prejuízo na manutenção do segurado. Para advogados, isso é ilegal. Planos adotavam prática abusiva, diz advogado

Para Stefano Ribeiro Ferri, especialista em Direito da Saúde e do Consumidor, o anúncio de que as operadoras de saúde realizaram acordo para suspender os cancelamentos unilaterais corrobora o fato de que estavam adotando uma prática abusiva. 

Ainda que a lei permita o cancelamento unilateral de contratos coletivos, mediante notificação prévia, o STJ firmou entendimento de que, quando o beneficiário está internado ou em tratamento, esses contratos devem ser mantidos, desde que o consumidor esteja em dia com as mensalidades”, explica o advogado.

Segundo ele, o cancelamento de contratos coletivos de crianças autistas e com doenças raras, por parte das operadoras de saúde, reflete a institucionalização do abuso existente no Brasil.

Os planos de saúde individuais somente podem ser cancelados mediante a constatação de fraude ou inadimplência, ao passo que os coletivos podem ser encerrados mediante notificação prévia”, afirma o especialista.

Operadoras induzem clientes a aderir a planos coletivos

Além dos cancelamentos, os planos de saúde induzem consumidores a aderirem voluntariamente aos planos coletivos, oferecendo pacotes atrativos e descontos significativos. “Ao fazer isso, as empresas estão buscando, na verdade, escapar do controle regulatório mais rigoroso da ANS sobre os planos individuais.”

Membro da comissão de Direito Civil da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Campinas, ele diz que o cancelamento unilateral, em casos de tratamento de saúde, como ocorre com os autistas, é ilegal, e o usuário pode exigir seus direitos.

O beneficiário pode, sim, recorrer à Justiça, com obrigação de fazer pagamento do plano, para que ocorra a manutenção desse contrato, para que não seja encerrado até a finalização do tratamento. Isso também sem prejuízo de pedir indenização por danos morais, a depender dos transtornos e constrangimentos que esse beneficiário foi obrigado a suportar”, informou.

STJ já reverteu decisões anteriores sobre cancelamentos

A advogada , especialista no direito à saúde, explica que as operadoras estão seguindo a lei que possibilita o cancelamento unilateral do serviço, porém, já existem entendimentos de decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça que reverteram os cancelamentos deste mesmo modo, o que criou uma jurisprudência sobre o assunto e acaba beneficiando o segurado.

Uma decisão do STJ de 2022 reconheceu que pacientes que tenham planos de saúde para tratamento vital não podem ter seus benefícios cancelados, uma defesa legal que tem sido a esperança de muitas famílias na busca por justiça”, comenta a advogada.

De acordo com Nilza Sacoman, é necessário o governo rever a política atual da ANS e atualizar a lei que regulamenta o setor.

Existe um projeto de lei em discussão na Câmara dos Deputados que pretende mudar algumas das regras que regem o mercado dos convênios. O texto de 2006 propõe cerca de 270 propostas de modificações na legislação incluindo uma possível proibição do cancelamento unilateral dos contratos coletivos. Essa revisão é vital para a segurança do segurado e colocar um freio nas operadoras”, avalia.

Possibilidade prevista em lei, diz advogada

Já a advogada Nycolle Araújo Soares, especialista em  Direito Médico, Ética e Compliance na Saúde pelo Einstein e MBA em Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada à Saúde, explica quecancelamento unilateral de contratos de beneficiários de planos coletivos é uma possibilidade que está prevista em lei, mas pouco conhecida por quem contrata o plano.

De acordo com ela, o conflito entre beneficiários e planos de saúde representa de modo claro o ponto de ruptura quanto à viabilidade do modelo em que a saúde suplementar no Brasil está estruturada. Os beneficiários saem dos planos em decorrência do aumento dos valores e não compreendem que aqueles que usam menos acabam subsidiando a manutenção dos que utilizam mais.

A conduta das operadoras de saúde, ainda que surpreendente para os beneficiários, está amparada por lei. A discussão sobre como deve ser a relação entre os beneficiários e a operadora de saúde, precisa ser atividade legislativa que deverá restabelecer o equilíbrio entre os interesses das partes”.

CEO do Lara Martins Advogados, a especialista esclarece que os beneficiários que custam mais para os planos de saúde querem se manter nos grupos de vidas, mas dependem da existência desses contratos, pois não conseguiriam custear um plano individual.

Na tentativa de encontrar a viabilidade financeira dos contratos, as operadoras excluem esses beneficiários, criando um espaço para discussão dessa prerrogativa prevista em lei, mas que vai de encontro com a concepção do que é o acesso à saúde formada pela sociedade”, finaliza Nycolle.

Com Assessorias

 

 

Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!
Shares:

Related Posts

1 Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *