A cannabis medicinal vive um momento de expansão acelerada no Brasil. Estima-se que, somente no ano de 2024, mais de 672 mil pessoas fizeram uso desses medicamentos à base do princípio ativo da maconha para tratar problemas como esclerose múltipla, epilepsia refratária e dor crônica. Um crescimento de 56% em relação a 2023, segundo dados da Kaya Mind, plataforma de inteligência de mercado no setor da cannabis.

Em paralelo à repressão ao seu comércio como uma droga ilegal, a cannabis é, cada vez mais, percebida internacionalmente como uma fonte de riqueza, cobiçada por setores produtivos que vão da agricultura ao setor farmacêutico. Por isso, pesquisadores ressaltam o enorme potencial do Brasil para lucrar com a planta. O Anuário da Cannabis Medicinal estima que o mercado brasileiro para fins farmacêuticos possa movimentar R$ 9,4 bilhões por ano.

STJ autorizou cultivo industrial de cânhamo para fins industriais

Apesar dos avanços, o setor ainda enfrenta desafios significativos, como os altos custos e a dependência de extratos importados. Outra dificuldade é a questão regulatória que se arrasta na burocracia brasileira, apesar de avanços no Judiciário. Entre os avanços recentes, está uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de novembro de 2024, que autorizou o cultivo industrial do cânhamo para fins medicinais.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por sua vez, tinha até 30 de setembro deste ano para publicar uma resolução detalhando requisitos de cultivo, controle e qualidade, mas a finalização do texto vem sendo adiada. Nesta semana, a agência suspendeu o julgamento da revisão da RDC 327/2019, após um pedido de vista do diretor da agência reguladora Thiago Campos em reunião na última quarta-feira (10/12).

Nova resolução da Anvisa pode acelerar mercado de cannabis

A nova resolução em debate na Anvisa propõe a ampliação para vias bucais, sublinguais e dermatológicas, importação da planta Cannabis sativa e maior uso de THC acima de 0,2% em doenças graves como dor neuropática crônica. Para especialistas, a medida pode abrir espaço para produção nacional e redução de custos sobre os medicamentos de cannabis.

Com 870 mil pacientes estimados em 2025, as mudanças priorizam produtos regularizados e limitam importações excepcionais, acelerando o mercado bilionário de cannabis medicinal”, afirma Allan Paiotti, CEO da Cannect, especializada em cannabis medicinal, terapias integrativas e suplementos, ao comentar os impactos do adiamento sobre a nova RDC, que deve ser julgada somente em 2026.

Obstáculos aos estudos científicos com cannabis no Brasil

Grupo de trabalho coordenado pela Embrapa listou 481 dificuldades enfrentadas por quem estuda a planta, como preços proibitivos para importação de insumos e trâmites com prazos indefinido

A falta de regulamentação atravanca a atuação de universidades, empresas e outros interessados na pesquisa científica sobre a planta. O Grupo de Trabalho (GT) de Regulamentação Científica da Cannabis, criado pela Embrapa, listou 481 empecilhos burocráticos e regulatórios enfrentados por quem conduz, ou deseja conduzir, estudos com a cannabis.

Algumas iniciativas estão em andamento para reverter este quadro. Uma delas foi a divulgação, em setembro, de uma nota técnica elaborada pelo grupo, que compreende 31 instituições de ensino e pesquisa. O documento foi encaminhado ao Ministério da Saúde e à Anvisa, órgãos responsáveis por regulamentar a investigação e o comércio de substâncias consideradas de controle especial.

O relatório agrupa esses tópicos em sete eixos: as autorizações para pesquisa, o acesso a insumos padronizados, as restrições ao cultivo para fins científicos, o fluxo de materiais entre instituições, as incertezas quanto ao uso de coprodutos e derivados e a falta de protocolos claros para pesquisas com animais de produção.  

André Gonzaga dos Santos, docente da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unesp em Araraquara e integrante do GT que elaborou a nota, diz que o documento evidencia o interesse de diversas instituições em desenvolver estudos sobre o tema e expressa os entraves que têm impedido esses avanços.

Precisamos de uma regulamentação que garanta a autonomia das universidades para realizar pesquisa. Isso não significa que não deve ter controle, ele deve existir. Mas precisamos garantir a autonomia”, afirma o pesquisador.

Conheça os principais obstáculos aos estudos sobre Cannabis

Regulamentação ajudaria a padronizar os procedimentos científicos e beneficiaria os setores farmacêutico, têxtil e agrícola

Ainda que, em tese, existam caminhos legais que permitam as pesquisas, o grupo de trabalho da Embrapa identificou diversos entraves que, na prática, impedem avanços sólidos na área. O principal deles é a burocracia para obtenção das autorizações, que, de acordo com a nota técnica, envolve prazos indefinidos, falta de transparência nas etapas de análise e ausência de critérios padronizados de avaliação.

Eu tentei importar do Uruguai e Paraguai. Pedi seis amostras de canabinoides, com um miligrama cada. Elas demoraram mais de um ano para chegar e custaram mais de R$ 20 mil”, conta André Santos, da FCF em Araraquara. A importação também não garante a padronização dos insumos, já que eles vêm de países com diferentes padrões de qualidade e de plantas com diferentes genomas, o que compromete a consistência e reprodutibilidade dos resultados.

Além disso, o pesquisador afirma que um interesse importante da comunidade científica é entender como a cannabis cresce especificamente nos solos e condições climáticas do Brasil. “Estudar produtos importados não vão contribuir em nada para desenvolver a cadeia produtiva nacional, porque a planta se comporta completamente diferente aqui”, diz.

Criação de normas específicas para agilizar as pesquisas com cannabis

Diante desse cenário, o grupo de trabalho defende a criação de normas específicas para as pesquisas com cannabis no país, que tornem os processos mais ágeis e transparentes. “Precisamos de uma regulamentação que garanta autonomia, ainda que com controle e registro de todas as atividades. Isso traria segurança para os pesquisadores”, ressalta o pesquisador.

Essa regulamentação ajudaria a padronizar os procedimentos científicos e beneficiaria os setores farmacêutico e agrícola — além de reduzir os custos das pesquisas e, por tabela, o preço final dos medicamentos quando eles chegam às gôndolas. Medicamentos à base de canabinoides que custam até R$ 2 mil nas versões importadas têm equivalentes nacionais fabricados por associações canábicas que alcançam só 40% desse valor.

Além disso, o cânhamo industrial — nome que se dá a variedades de cannabis com baixo teor de THC cultivadas para obtenção de fibra — tem grande potencial econômico para a indústria têxtil e a produção de papel.

Leia a reportagem completa no Jornal da Unesp

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Faltam especialistas em controle de qualidade

A regulação do mercado de cannabis medicinal no Brasil também esteve no centro do debate do 10º Congresso Analítica Latin America, que discutiu os caminhos da cadeia produtiva nacional e os entraves regulatórios durante o Analitica Latin America, o maior encontro do setor químico analítico da América Latina.

Carolina Sellani, coordenadora do grupo de trabalho sobre insumos de cannabis da Abiquifi, recordou que, até 2019, não havia  normas específicas sobre a cannabis no Brasil.

Desde a década de 70 não tínhamos uma regulamentação. Quando a Anvisa autorizou o uso medicinal de produtos à base de cannabis foi um marco para a indústria”, avaliou.

Realizado em setembro, o evento reuniu os principais especialistas da química analítica do Brasil  para discutir tendências e inovações nos setores de alimentos, farmacêutico, energias alternativas, química verde e controle de qualidade de combustíveis. Especialistas destacaram a necessidade de investimentos em profissionais qualificados e em sistemas rigorosos de controle de qualidade.

Precisamos de especialistas preparados para atuar nesse mercado”, reforçou Ubiracir Fernandes Lima Filho, coordenador do Comitê de Apoio à Cadeia Produtiva de Insumos Químicos (CAIQ).

Allan Rossini, supervisor de pesquisa, desenvolvimento e produção farmoquímico da FarmaUSA, indústria farmacêutica especializada em canabinoide; lembrou que a química analítica permeia toda a cadeia: “Ela é essencial desde o mapeamento da planta até o produto final. O método de extração, por exemplo, impacta diretamente a composição dos canabinóides presentes no extrato”.

Para a pesquisadora Júlia Petenon, da Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), “a discussão trouxe um olhar amplo, unindo ciência, regulação e mercado. É um tema que ainda desperta muitas dúvidas, mas eventos como esse mostram o quanto a pesquisa em cannabis tem espaço para crescer no Brasil”.

Com informações da Unesp, Cannect e Analitica

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