A favor da ciência, o Rio de Janeiro sai na frente contra uma possível flexibilização das regras que prevêem a comercialização de dispositivos eletrônicos para fumar, popularmente conhecidos como cigarros eletrônicos ou vapes no Brasil. A Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) vai enviar ofício à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) manifestando-se contra a regulamentação dos cigarros eletrônicos no país, como deseja a indústria do tabaco.

A decisão do colegiado endossa evidências científicas sobre os males do consumo deste produto à saúde pública, apontadas pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), e foi anunciada durante audiência pública nesta terça-feira (28/11) que discutiu também o impacto social causado pelo uso dos ‘vapes’ no Estado do Rio. O posicionamento de parlamentares estaduais ocorre às vésperas de uma nova reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa para discutir o futuro dos cigarros eletrônicos no Brasil, marcada para esta sexta-feira (1/12).

Apesar de livremente comercializados no país, os cigarros eletrônicos são proibidos pela Anvisa desde 2009. Segundo o Ipec, somente em 2022, cerca de 6 milhões de adultos fumantes já haviam experimentado e 2,2 milhões de adultos consomem regularmente os vapes. Na esteira do aumento do consumo – que quadruplicou nos últimos 4 anos — cresce, também, a preocupação com a saúde pública.

Durante audiência na Alerj, a presidente da SBPT, a pneumologista Margareth Dalcomo, lembrou que o Brasil é exemplo de combate ao tabagismo no mundo, reduzindo de 40% para 9,5% o número de fumantes na população. A médica, que participou da primeira Comissão Antitabágica do Ministério da Saúde, lembrou que o Brasil foi pioneiro na regulação que proíbe o comércio de produtos de tabaco aquecido em todo o território, desde 2009. Para ela, é importante evitar o retrocesso destes índices, caso a Anvisa decida por regulamentar a venda desses produtos.

“O que nós queremos é impedir aquilo que nós já estamos vendo com muita consternação, que é a legião de novos dependentes da nicotina que estamos criando. Os cigarros eletrônicos ou todo o dispositivo do tabaco aquecido têm uma concentração de nicotina na composição muitas vezes superior ao cigarro, além das centenas de substâncias das quais nós conhecemos alguma, como o propilenoglicol, que é uma substância que quando entra em combustão é cancerígena e tem todos esses vapes”, disse a médica.

‘Cigarros eletrônicos são vendidos à luz do dia’, diz deputada

A Comissão de Saúde da Alerj também solicitou à Secretaria de Estado de Saúde (SES) as estatísticas dos 92 municípios do estado dos casos de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), causada principalmente pelo tabagismo. “Se faz necessária a fiscalização da vigilância sanitária do Estado do Rio de Janeiro, porque a notícia que a gente tem é de que os cigarros eletrônicos estão sendo vendidos à luz do dia”, disse a deputada Martha Rocha (PDT), membro da Comissão de Saúde.

Segundo ela, a partir de um levantamento dos municípios no estado com maiores índices de diagnóstico da DPOC será possível demandar um reforço na fiscalização da venda de cigarros eletrônicos nas localidades.

“É preciso unificar uma mesma conduta e os pesquisadores falam da importância da prevenção.  Por isso, a importância também do cruzamento de dados dos municípios onde há maior número de doenças respiratórias. Assim, podemos potencializar nesses municípios ações para impedir a venda desses dispositivos. Precisamos fazer uma frente de enfrentamento ao uso do cigarro eletrônico e da proliferação da Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica”, ressaltou a parlamentar.

O presidente da Comissão, deputado Tande Vieira (PP), pontuou a importância do debate com vista à criação de políticas públicas para conter o uso desenfreado dos vapes.

“O objetivo desta audiência é entender e conhecer as informações mais recentes que se têm sobre os malefícios que o cigarro eletrônico causa na população, e entender de que forma a Alerj pode se posicionar e contribuir com esse desafio da nossa sociedade atual”, afirmou o parlamentar.

Evali, a doença pulmonar causada pelo cigarro eletrônico

Durante a reunião, os especialistas alertaram sobre os riscos do uso do cigarro eletrônico, que vaporiza líquidos contendo nicotina em níveis superiores ao cigarro convencional e que, mesmo proibido desde 2009, segue sendo vendido e consumido em todo o estado e no país.

Outro ponto crítico levantado na audiência é o potencial viciante dos cigarros eletrônicos, especialmente em jovens. A presença de nicotina pode levar à dependência, afetando o desenvolvimento do cérebro em adolescentes e jovens adultos, tornando-os mais propensos a adotar o hábito de fumar a longo prazo e desenvolverem doenças pulmonares.

O pesquisador, professor e pneumologista da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Rogério Rufino, lembrou que a doença causada pelos vaporizadores já foi categorizada como Evali – sigla em inglês para Vaping Associated Lung Injury, ou lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico.

“O cigarro eletrônico não é uma novidade protetora, nunca foi. Nele, se inala uma quantidade de fumaça quente pelas vias aéreas com algumas substâncias. A nicotina é a principal e, por isso, deixa a pessoa cada vez mais dependente. A doença, que chamamos de Evali, normalmente acomete jovens de 16 a 20 anos, alguns são intubados e infelizmente fazem até transplante de pulmão“, disse Rufino, que também é coordenador da Câmara Técnica de Pneumologia e Tisiologia do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CRM-RJ).

Ele explicou que os resultados de ações de combate agora terão reflexo no futuro. “Dentro desse receio de adicionar uma doença que pode ser letal para um jovem, que nem pensou que isso poderia acontecer, nós não estamos fazendo uma medida protetora para agora. É para daqui a 20 anos, é para tentar mudar a curva de inflexão de danos causados, uma proposta projetiva é fundamental”, disse o médico.

Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica

Durante a audiência, o colegiado debateu também os impactos da Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), enfermidade causada principalmente pelo tabagismo e que afeta 210 milhões de pessoas no mundo e causa três milhões de mortes anualmente, somando 5% de todos os óbitos mundiais. A previsão é de que a doença se torne a terceira causa de mortalidade global até 2030.

No Brasil, segundo dados de pesquisa realizada pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), 13 milhões de pessoas são portadoras dessa doença. O o pesquisador da Firjan, Leon Nascimento, alertou que a DPOC é uma doença que acomete pessoas cada vez mais jovens. “Nosso objetivo é conscientizar principalmente essa população mais nova e tirar essa concepção deles de que é um produto descolado e que não causa malefício, mas que na verdade afeta, e muito, a saúde deles.

O representante do Centro de Apoio ao Tabagista, Alexandre Milagres, disse que a indústria tabagista vem, ao longo dos anos, se posicionando de maneira estratégica para permanecer no mercado. “O dispositivo eletrônico é só mais uma novidade para quem está perdendo consumidor. Temos que lembrar que o mundo está perdendo hoje em torno de nove milhões de pessoas por ano porque morrem”, alertou.

Outro lado

Sob forte lobby, Anvisa marca reunião para discutir o tema

A indústria do tabaco tem feito um forte lobby junto à Anvisa para a regulamentação dos cigarros eletrônicos com objetivo de frear a concorrência com marcas ilegais que circulam livremente no Brasil. Segundo fabricantes de cigarros, sem uma regulamentação, os consumidores brasileiros ficariam “à mercê dos riscos da ilegalidade”.

“Atualmente, não há controle sobre a venda, publicidade e uso de cigarros eletrônicos no país, o que permite que esses produtos sejam amplamente comercializados sem restrições, muitas vezes atraindo jovens e não fumantes”,  diz a assessoria da BAT Brasil (antiga Souza Cruz), em nota distribuída à imprensa.

A fabricante afirma ainda que “produtos ilegais, portanto, fora do controle sanitário, colocam os consumidores em sério risco”. “Por esse motivo, a regulamentação significa não apenas o combate ao mercado ilegal, mas, sobretudo, garantir ao adulto fumante do cigarro comum uma alternativa menos prejudicial à saúde”, diz a empresa.

Além de um maior controle de como são produzidos esses dispositivos, a regulamentação, segundo o fabricante, busca “reforçar a fiscalização e controle para coibir as vendas para crianças e adolescentes que seguirão proibidas”.

Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, que também é relator do processo, convocou a reunião da Diretoria Colegiada para revisar a resolução que proíbe os vapes no país para esta sexta-feira (1/12). A possibilidade de abrir consulta pública sobre o tema foi adiantada por ele em entrevista ao jornal O Globo. Segundo ele, “a consulta deve ter um prazo que permita uma manifestação bem ampla, não um prazo curto” e afirmou que “o ideal” seria concluir essa etapa até o final deste ano.

O texto da BAT Brasil também convoca a população a participar da audiência pública da agência, marcada para esta sexta-feira (1/12). A reunião da diretoria da Anvisa poderá ser acompanhada presencialmente (mediante inscrição prévia e limite de público) e também online pelo link.

Indústria do tabaco defende suposto ‘benefício’ dos vapes

Defensores da regulamentação no Brasil  – leia-se indústria do tabaco – afirmam ainda que “os vaporizadores ou produtos de tabaco aquecido, que são conhecidos popularmente como cigarros eletrônicos, não são produtos inócuos, mas, quando regulamentados, podem ser considerados alternativas de risco reduzido para adultos fumantes em relação aos cigarros convencionais”.

A BAT Brasil cita recentes estudos científicos sobre o tema, como o divulgado pelo Ministério de Saúde da Inglaterra em setembro de 2022, reafirma que os vaporizadores são 95% menos prejudiciais que o cigarro comum, ou 20 vezes menos nocivos à saúde

“O estudo, que consiste na revisão de mais de 400 pesquisas científicas, foi conduzido por pesquisadores do King’s College London e encomendado pelo Departamento de Saúde Pública inglês. A publicação também reitera que os dispositivos não são isentos de risco, e por isso, o consumo não deve ser incentivado a adultos que não fumam e, obviamente, a menores de idade”, diz a nota.

O estudo realizado na Inglaterra mostrou que indivíduos que usam apenas cigarros eletrônicos são expostos a níveis mais baixos de toxicidade da fumaça do tabaco e biomarcadores de danos potenciais (BopH) quando comparados com indivíduos que fumam cigarros convencionais.

Foram encontrados níveis significativamente mais baixos de todos os Biomarcadores Urinários de Exposição (BoE) e os participantes do estudo que usaram exclusivamente cigarros eletrônicos tiveram níveis significativamente mais baixos de três dos sete Biomarcadores de Dano Potencial (BopH) medidos, incluindo carboxihemoglobina, molécula de adesão intercelular solúvel-1 e 11-desidrotromboxano B2.

Médico alerta para cigarros eletrônicos contrabandeados

Nos últimos meses, o país viu o assunto ganhar força no debate público. O lobby da indústria do tabaco ganha força junto a uma ala de médicos que defende que o pior mal é o uso do cigarro eletrônico de procedência duvidosa.

Em evento da Academia Nacional de Medicina, realizado na última semana, o acadêmico Marcelo Morales, professor titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, no Rio de Janeiro, lembrou que os consumidores estão em risco ao serem expostos a produtos 100% contrabandeados e sem procedência conhecida.

“A população brasileira sofre uma epidemia, são 2,2 milhões de pessoas que estão sendo atingidas pelos cigarros eletrônicos contrabandeados que não sabemos o que tem dentro, não temos vigilância sobre eles. Isso me preocupa, eu estou pensando nas pessoas, não estou discutindo se sou contra ou a favor”, afirmou Morales.

Cigarro eletrônico é permitido em 80 países

Ainda de acordo com a BAT Brasil, cerca de 80 países já reconhecem os cigarros eletrônicos como parte de ações para controle do tabaco e política pública de redução de danos em comparação ao cigarro convencional. São exemplos o Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Suécia, Nova Zelândia, entre outros. Dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 84% já regulamentaram os cigarros eletrônicos.

“Alguns são conhecidos por regras bastante restritivas em relação aos cigarros convencionais e concluíram, com base em estudos científicos, que cigarros eletrônicos são ferramentas importantes para diminuição do consumo de cigarro convencional”, diz a nota da BAT.

O texto diz ainda que, como base em estudos como o realizado na Inglaterra, alguns países adotaram os cigarros eletrônicos como política de saúde para combater o tabagismo. E cita o exemplo da Suécia, que estaria prestes a atingir uma taxa de tabagismo inferior a 5% e pode se tornar o primeiro país livre do tabaco na Europa, em potencial para salvar 3,5 milhões de vidas na próxima década.

O relatório “A experiência sueca: um roteiro para uma sociedade sem fumo’ diz que a abordagem da Suécia para diminuir o número de fumantes e minimizar os efeitos prejudiciais do consumo de cigarros convencionais une métodos tradicionais com estratégias de redução de danos. A estratégia segue as diretrizes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da OMS, que incluem redução da oferta e demanda de tabaco, proibição do fumo em locais específicos. O texto acrescenta a aceitação de produtos sem fumaça, por exemplo cigarros eletrônicos ou sachês de nicotina, como alternativas menos nocivas.

Nesse sentido, a Inglaterra apresentou uma ação que segue uma estratégia similar à adotada pela Suécia. Um milhão de fumantes estão sendo incentivados a trocar cigarros tradicionais por vaporizadores em um programa chamado “swap to stop” (trocar para parar). “O programa oferecerá um kit vaping gratuito para iniciantes, juntamente com suporte comportamental para ajudar os fumantes a abandonarem o hábito. Quase um em cada cinco fumantes na Inglaterra poderá ser beneficiado”, diz a nota.

Indústria do tabaco alega que haverá mais faturamento

Defensores da regulamentação também argumentam que uma decisão nesse sentido abriria caminho para a implementação de normas sanitárias e para o monitoramento do produto, além de trazer impacto significativo para a economia do país. Essa informação está em um estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), encomendado pela BAT Brasil, embasado em uma demanda potencial estimada em 3,3 milhões de consumidores ao ano.

Isso representaria um mercado de R$ 7,5 bilhões ao ano. Segundo o cálculo da entidade, considerando apenas a importação do produto pelos consumidores, a arrecadação média anual de impostos federais seria de R$ 2,2 bilhões. Caso o mercado potencial seja suprido pelo setor de fumo, seja por meio da produção interna, seja pela importação e distribuição do produto, isso resultaria em um significativo aumento de faturamento no país, que ultrapassaria os R$ 16 bilhões – um montante que, sem regulação, continuará sendo destinado ao contrabando, que hoje domina 100% do mercado no país.

Comunicado da BAT Brasil distribuído à imprensa lembra ainda uma declaração de Dirceu Barbano, ex-diretor da Anvisa e presidente do órgão à época da proibição, durante audiência pública no Senado em setembro deste ano, de que em 2009, não tinha o conhecimento necessário para regular os dispositivos eletrônicos.

“Hoje precisamos acolher, de maneira técnica e estratégica, o conhecimento que se tem desses produtos. Há experiências que demonstram que eles precisam passar por regulamentação e, ao passarem, podem apresentar perfil de toxicidade menor do que o cigarro convencional. No meu entendimento, avançar na regulamentação para o estabelecimento de requisitos é importante para que os produtos sejam enquadrados nas mesmas regras dos outros produtos de tabaco”, afirmou.

Fonte: Alerj e BAT Brasil

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