O período da pandemia de Covid-19 trouxe à tona um tema já conhecido por muitos: a violência contra a mulher. O Brasil é o quinto país com maior número de vítimas de feminicídio no mundo. Em relação aos estados brasileiros, Minas Gerais tem o maior número de casos no país. Foram 136 crimes de ódio motivados pela condição de gênero em 2019, de acordo com levantamento do Monitor da Violência.

O mês de agosto é marcado por uma importante conquista para as mulheres: a Lei Maria da Penha, reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como uma das três melhores legislações do mundo nesse enfrentamento. A Lei 11.340/06 foi sancionada em 7 de agosto de 2006, em homenagem a Maria da Penha Fernandes, que sobreviveu a tentativas de homicídio realizadas por seu ex-marido, lutou pelos direitos das mulheres e a punição de seus agressores.

Desde 2015, a legislação mudou no Brasil e passou a prever penas mais graves para aqueles homicídios que estejam ligados à discriminação da mulher. “Geralmente, o feminicídio envolve violência doméstica e familiar ou clara discriminação à condição de mulher. São crimes de ódio motivados pela condição de gênero, geralmente impulsionados pelo ciúme, pelo motivo passional. A pena varia de 12 a 30 anos de prisão”, explica o advogado criminalista Leonardo Pantaleão, especialista em Direito e Processo Penal.

Parentes e vizinhos podem (e devem) denunciar

Sem dúvida, em 14 anos, a Lei Maria da Penha fortaleceu os mecanismos de combate à violência contra a mulher e evidenciou a importância da luta pela garantia dos direitos. O advogado Erick Barros Ferraz, do ponto de vista jurídico, a luta contra a violência doméstica e o feminicídio tem na legislação um grande aliado.

Por meio da Lei Maria da Penha, vidas que seriam perdidas passaram a ser preservadas. Mulheres em situação de violência ganharam direito e proteção; fortaleceu-se a autonomia das mulheres. Com isso, a lei cria meios de atendimento humanizado, agrega valores de direitos humanos à política pública e contribui para educar toda a sociedade.

Mas embora a lei tenha apoio significativo de toda a sociedade, sua implementação trouxe à tona muitas resistências. São mulheres que conviviam com a aceitação da violência doméstica como crime de menor poder ofensivo e reforçavam as relações de dominação do sistema patriarcal”, pondera o advogado Erick Barros Ferraz.

Para o especialista, em grande parte dos casos, as mulheres que estão dentro de uma relação abusiva não conseguem se enxergar em tal situação. “Às vezes uma mulher não tem coragem de comunicar seu intenso sofrimento, mas isso não impede que alguém que perceba isso possa comunicar a alguma autoridade policial, por exemplo, e a partir daí tomam-se todas as medidas cabíveis”, ressalta Leonardo Pantaleão.

Por isso, os especialistas alertam que pessoas próximas, como parentes ou vizinhos que reconheçam situações de violência vividas por uma mulher, podem recorrer às autoridades. “Em muitos casos, cabe aos que estão mais próximos alertar sobre como aquele tipo de relação é inadmissível. Não podemos mais sucumbir ao antigo ditado que em ‘briga de marido e mulher ninguém mete a colher’, completa Erick,

Aumento da violência doméstica durante a pandemia

Recomendadas pelas autoridades de saúde para conter a propagação do novo coronavírus, as medidas de isolamento social provocaram mudanças sociais significativas e lançaram luz para um problema antigo, que atinge mulheres de todo o mundo. Neste ano, em meio ao isolamento social que aumentou em 17% o número de denúncias de violência doméstica, segundo a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres.

As denúncias ao serviço federal Disque 180 subiram 40% em abril em relação ao mesmo mês de 2019, de acordo com os dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH). Somente em São Paulo, o crescimento chegou a 45% de ocorrências registradas no telefone 190, da Polícia Militar.

Os casos de feminicídio também tiveram alta durante a pandemia, com crescimento de 22,2%, entre março e abril deste ano em 12 estados do país, comparativamente ao ano passado, de acordo com o estudo Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a pedido do Banco Mundial.

Maria Cristiana Ziouva, coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chama a atenção para o aumento dos casos de violência. “Estamos recebendo informações dos tribunais de Justiça de todo o país. Os casos de violência doméstica e de feminicídio aumentaram significativamente nesse período de isolamento”, atesta. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, registrou um aumento de 50% nos casos de violência doméstica durante o período de confinamento.

Redes sociais surgem como importante aliado

O estudo Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19 destaca um importante aliado da causa: as redes sociais. Impedidas de sair de casa, as vítimas não conseguem ir até uma unidade policial registrar ocorrência e é por meio das redes que chegam muitas denúncias. Segundo o balanço, de todos os relatos feitos nas redes, 431% foram de brigas de casal e mais da metade (53%) foram publicados apenas no mês de abril.

No Estado de São Paulo, a possibilidade acionar a polícia pela internet durante a pandemia de Covid-19 turbinou o número de boletins eletrônicos de ocorrência de violência doméstica: 5,5 mil, no período de abril a junho. A possibilidade inédita de registro eletronicamente de violência doméstica teve início em 3 de abril no estado, dez dias após o início da quarentena.

Aplicativos ajudam a denunciar

Diversos estados do país criaram aplicativos, por meio de suas secretarias de Segurança Pública, para ajudar as mulheres a denunciarem abusos. No Estado de São Paulo, o SOS Mulher permite que as vítimas de violência doméstica peçam ajuda apertando apenas um botão no celular. Ao acionar a ajuda, o aplicativo localiza a viatura policial mais próxima até o local da ocorrência. A ferramenta é gratuita e funciona em sistemas Android e iOS.

O Alerta Mulher, no Amazonas, permite que a vítima se cadastre no app após registro do Boletim de Ocorrência (BO) em alguma delegacia. Após a denúncia, a mulher é encaminhada ao Serviço de Apoio Emergencial à Mulher (Sapem), responsável por orientar a vítima sobre como utilizar o aplicativo.

Em Minas Gerais, o app MG Mulher está disponível para download nos sistemas Android e IOS e foi desenvolvido pela Polícia Civil, com apoio da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública. Na plataforma, a vítima encontra os endereços e telefones dos equipamentos mais próximos da sua localização que podem auxiliá-la em caso de emergência, como delegacias, unidades da PM e Centros de Prevenção à Criminalidade. Todos os endereços são mostrados com a indicação de proximidade de onde a mulher está.

Movimento para reduzir os índices envolve sociedade organizada

A fim de mudar esta triste realidade, instituições e empresas também desenvolvem projetos que ajudem as vítimas a romperem o silêncio. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, lançou o projeto Carta de Mulheres, onde as mulheres acessam o formulário on-line12 e uma equipe especializada responderá com as orientações. A sociedade civil organizada também segue implementando iniciativas para apoiar as mulheres em situação de violência doméstica durante a pandemia.

A plataforma ‘Mapa do Acolhimento’ lançou o #TôComElas conectando mulheres que sofreram violência a advogadas e psicólogas voluntárias. Os Institutos Justiça de Saia, Bem Querer Mulher e Nelson Willians lançaram a força-tarefa ‘Justiceiras’, que reúne voluntárias para oferecer orientações gratuitas às vítimas de violência por whatsapp e telefone.

Projeto Quarentena Sem Violência

O setor privado também está se mobilizando na causa. O Grupo Sabin Medicina Diagnóstica, uma empresa de ‘alma feminina’, com 77% do quadro funcional dominado por mulheres, lançou o projeto Quarentena sem violência, um guia que orienta as colaboradoras as formas de atuar diante de uma situação de violência ou ajudar pessoas que enfrentam este tipo de prática.

O conteúdo produzido com base na Lei Maria da Penha, auxilia mulheres a identificarem os sinais de relações abusivas, destaca os tipos de violência mais comuns, o ciclo da violência no âmbito familiar, as formas de denunciar e os aplicativos que auxiliam em momentos de tensão, entre outros detalhes.

De acordo com a presidente executiva do Grupo Sabin, Lídia Abdalla, o documento é uma forma de acolher colaboradores que possam passar por este tipo de violência e mostrar que o mais importante é que elas saibam que não estão sozinhas.

O Grupo Sabin é reconhecido por ser uma empresa que valoriza a diversidade e investe na força da mulher e é em momentos tão delicados como estes que estreitamos mais ainda nossas conexões com estas mulheres, para que saibam que estamos juntos na batalha contra esta realidade”, destaca a executiva.

O guia destaca casos de violência não relatados por mulheres, mas que são práticas comuns que agressores têm adotado durante a quarentena. “Muitas mulheres são impedidas de higienizar as mãos com sabonete ou álcool-gel, por exemplo. Um risco à saúde e uma forma de violência grave”, destaca a executiva. O documento ratifica ainda outras formas de violência praticadas durante a pandemia, como a disseminação de informações erradas sobre a doença e o isolamento, como forma de exercer poder e controle.

Além disso, o guia alerta como os agressores podem utilizar as restrições recomendadas para o controle da pandemia para reduzir o acesso a serviços e ao apoio psicossocial, como proibir a comunicação com familiares por redes sociais. “Com menos contato com sua rede afetiva, a mulher pode estar mais suscetível a atos de violência”, finaliza Dra Lídia.

Paraná lança campanha Agosto Lilás

O Estado do Paraná incluiu oficialmente no calendário a campanha Agosto Lilás, que enaltece esta causa e reforça a importância de projetos de enfrentamento por toda a sociedade. Um exemplo vem da indústria farmacêutica Prati-Donaduzzi, que com um quadro de colaboradores de mais de 62% formado por mulheres, realiza há mais de um ano o projeto Magnólias em Ação.

A iniciativa tem o objetivo de informar as mulheres em relação à autonomia, saúde psicológica, direitos das mulheres e canais de denúncias. Também é uma forma de gerar aproximação, acolhimento, sororidade e direcionamentos. “O nome do projeto foi inspirado em uma flor do campo, delicada, mas muito forte e resistente. Escolhemos esse nome por fazer uma relação às mulheres, que têm grande capacidade de superação”, explica a supervisora de Responsabilidade Social, Maria Rita Pozzebon.

No ano passado, a iniciativa contou com a parceria do Núcleo Maria da Penha (Numape) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) de Toledo. Ao longo do ano foram realizadas rodas de conversas com as colaboradoras da farmacêutica e também da indústria de embalagens Centralpack.

Neste ano, devido à pandemia os encontros foram suspensos. Porém, os atendimentos continuam pelo setor, de forma individualizada. “O projeto oportuniza às mulheres um momento de reflexão e, principalmente, uma troca de experiências e apoio sobre diversas situações que podem ocorrer no dia a dia. É o fortalecimento na busca pela garantia dos direitos das mulheres e a participação é massiva”, finaliza Maria Rita.

Por que apoiar ações contra a violência de gênero?

Segundo ele, a melhor forma de combater o ciclo crescente de violência contra a mulher é por meio da denúncia ao sistema de Justiça. “As pesquisas evidenciam que as agressões aumentam ao longo do relacionamento em uma espiral de conflito.  A partir das denúncias, ela mostra para o ofensor o seu descontentamento e vai buscar proteção, com vistas a colocar fim à rotina de violência”, ressalta o advogado Erick Barros Ferraz.

Já a melhor forma de prevenção, afirma ele, está na educação, com a formação de meninas e meninos baseada em equidade de gênero, sem discriminações e vedações ao gênero feminino. Segundo o especialista, as medidas judiciais são tomadas para evitar a ocorrência de violências mais graves ou letais, mas sempre para os casos já cometidos.

Para evitar que meninas e mulheres continuem sendo vítimas, precisamos que os homens, de todas as faixas etárias, também participem da discussão e que busquem novas formas de masculinidades, não focadas em agressividade, violência e negação a tudo que é feminino, como temos hoje”, destaca.

Com Assessorias

Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!
Shares:

Related Posts

1 Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *