Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios, o maior número desde 2015, equivalente a quatro mulheres mortas por dia. Em 80% dos casos, o agressor era companheiro ou ex-companheiro, e em 64,3%, o crime ocorreu dentro de casa.
No mesmo período, foram concedidas cerca de 555 mil medidas protetivas, mas mais de 100 mil (88%) foram descumpridas, incluindo 121 casos em que as vítimas já estavam sob proteção judicial quando foram assassinadas. Também foram registrados 87.545 estupros, uma agressão sexual a cada seis minutos. 

Somente entre janeiro e julho deste ano, a Central de Atendimento à Mulher, do Ministério da Mulher, registrou 86.025 denúncias, o que corresponde a uma média de 16,9 casos por hora.

Celebrado em 10 de outubro, o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher marca um momento de reflexão sobre os avanços e os desafios na garantia da segurança e da dignidade feminina no Brasil. Mesmo com leis robustas e amplamente reconhecidas, o país segue registrando índices alarmantes de agressões e feminicídios.

A advogada Tatiana Naumann, sócia do Albuquerque Melo Advogados e graduanda em Direito e gênero pela  Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), explica que o problema é estrutural e vai além da legislação. “O Brasil tem marcos legais avançados, mas ainda carece de políticas públicas eficazes e de uma cultura que repudie a violência. A lei é o ponto de partida, não o ponto final”, afirma
O que dizem as leis
A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é um marco na proteção às mulheres em situação de violência doméstica, criando mecanismos de prevenção, punição e assistência, como medidas protetivas de urgência, juizados especializados e rede de atendimento com suporte psicológico, jurídico e social.
Já a Lei nº 13.104/2015 (Lei do Feminicídio) qualificou o homicídio cometido contra a mulher por razões de gênero, incluindo casos de violência doméstica, familiar ou discriminação, e elevou a pena para até 30 anos de reclusão.   Tatiana destaca que as leis consolidaram a responsabilização penal, mas enfrentam obstáculos na prática.
O principal desafio está na execução. A falta de estrutura para o cumprimento das medidas protetivas e a subnotificação dos casos mostram que a resposta estatal ainda é insuficiente” afirma a especialista em casos de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher .
Dados mais recentes sob o olhar dos recordes
Não basta punir o agressor. É preciso investir em prevenção, acolhimento e fortalecimento das redes de apoio. A violência de gênero é uma questão de direitos humanos e deve ser prioridade nacional”, ressalta Tatiana.
A especialista defende o uso de tornozeleiras eletrônicas, comunicação imediata entre órgãos de segurança e Judiciário e acompanhamento psicossocial das vítimas. “A proteção jurídica precisa vir acompanhada de suporte material e institucional. Sem acolhimento psicológico e financeiro, as mulheres acabam retornando ao convívio com o agressor”.

Educação de gênero e mudança cultural

A longo prazo, a educação de gênero é uma das ferramentas mais eficazes para prevenir a violência. Conteúdos sobre igualdade de gênero e direitos humanos devem ser incluídos nos currículos escolares desde cedo, e campanhas contínuas devem envolver homens e adolescentes, promovendo masculinidades não violentas e respeito às mulheres.
A transformação começa pela educação. É ali que se desconstrói o machismo e se formam valores baseados em igualdade e respeito. Sem mudança cultural, as leis continuarão sendo remédios de emergência, e não soluções permanentes”, aponta Tatiana, que é membro da Comissão de Direito de Família (CDF) da OAB/RJ e graduanda em Direito e gênero pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj). 

O papel das empresas e instituições

Empresas e instituições podem atuar de forma estratégica na prevenção e no acolhimento de mulheres vítimas de violência. Além de políticas internas e canais de denúncia seguros, é fundamental treinar gestores e equipes de RH para identificar sinais de abuso e oferecer encaminhamentos adequados.
Programas de flexibilização da jornada, licenças especiais e transferências temporárias protegem a vítima e permitem que ela participe de procedimentos legais ou de acompanhamento psicológico sem riscos. Parcerias com ONGs, órgãos públicos e movimentos sociais ampliam o acesso a suporte jurídico, psicológico e social.
Quando uma empresa adota políticas de acolhimento consistentes, não só protege a funcionária, mas fortalece o papel social da instituição. O ambiente corporativo se torna seguro, e a cultura de respeito e igualdade de gênero se dissemina entre funcionários e lideranças”, destaca.
Ainda segundo ela, o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher reforça que o enfrentamento ao problema exige mais do que leis: requer compromisso institucional, articulação entre poderes, participação das empresas e mudança cultural profunda.

Palavra de Especialista

Violência de gênero: 19 anos da Lei Maria da Penha e o alto custo para o Brasil

Por Tania Cristina Teixeira (*)

Aprovada em 2006 e reconhecida pela ONU como uma das legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência doméstica, a Lei Maria da Penha completou 19 anos em agosto. No entanto, os números mostram que o país ainda está longe de oferecer às mulheres a proteção efetiva prevista em lei.

Somente entre janeiro e julho deste ano, a Central de Atendimento à Mulher, do Ministério da Mulher, registrou 86.025 denúncias, o que corresponde a uma média de 16,9 casos por hora.

O problema não se restringe à violência física extrema, mas ela ainda é alarmante: são, em média, quatro feminicídios e mais de dez tentativas de assassinato por dia. Em 80% dos casos, o agressor é o companheiro ou ex-companheiro.

As medidas protetivas, embora essenciais, ainda encontram barreiras. Das 555 mil concedidas no ano passado (88% das solicitadas) mais de 100 mil foram descumpridas. Nos últimos dois anos, ao menos 121 mulheres foram mortas mesmo sob proteção judicial.

Na Bahia, o cenário não é diferente. A 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, do Instituto DataSenado, revela que 27% das baianas já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por um homem; 23% passaram por isso apenas nos últimos 12 meses.

A percepção de agravamento do problema é majoritária: 74% das brasileiras acreditam que a violência doméstica aumentou. Já entre as baianas, esse índice chega a 81%. Além disso, 65% afirmam conhecer uma amiga, familiar ou conhecida que já tenha sido vítima.

violência contra a mulher gera perdas econômicas bilionárias

Os impactos vão além do drama humano. violência contra a mulher gera perdas econômicas bilionárias. Afeta a produtividade, aumenta o número de afastamentos do trabalho, eleva a dependência social e sobrecarrega os serviços de saúde, segurança e assistência. Empresas enfrentam queda de desempenho, alta rotatividade e custos indiretos com licenças e substituições.

O peso também recai sobre os cofres públicos. Atendimento médico, apoio psicológico, ações policiais e processos judiciais representam gastos expressivos. Recursos que poderiam ser investidos em prevenção, educação e desenvolvimento acabam sendo usados para mitigar danos.

Estudo da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), que data de outubro 2021, estima que o fim da violência contra a mulher poderia gerar, em dez anos, mais de R$ 214 bilhões para o PIB brasileiro, criar 2 milhões de empregos, acrescentar R$ 97 bilhões à massa salarial e elevar em R$ 16,4 bilhões a arrecadação tributária.

Em quase duas décadas, a Lei Maria da Penha representou um avanço inegável, mas a persistência de índices alarmantes e de custos bilionários deixa claro que a violência de gênero não é apenas um drama humano é também um gargalo econômico que freia o potencial do país.

Transformar a proteção às mulheres em prioridade nacional, com ações coordenadas entre governo, iniciativa privada e sociedade civil, não é gasto: é investimento com retorno certo em produtividade, geração de empregos e fortalecimento social.

Cada real investido em prevenção, acolhimento e punição retorna multiplicado para a sociedade. Tratar a violência de gênero não apenas como uma emergência social, mas como estratégia de desenvolvimento econômico, é condição indispensável para construir um Brasil mais justo, seguro e próspero.

* Tania Cristina Teixeira é presidenta do Conselho Federal de Economia (Cofecon). Graduada em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com doutorado em Economia Aplicada pela Universidade de Valencia (Espanha). Possui vasta trajetória docente na PUC Minas, onde é Coordenadora de Extensão.

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