Estudo realizado por Armando De Negri para sua tese de doutorado da USP de 2016, aponta a disponibilidade em todo o território nacional de 12.860 leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para adultos em 2014, o que equivale a cerca de  0,063 para mil habitantes ou 6,3 para 100 mil habitantes. Desse total, 46,5% estão em hospitais públicos e 53,5%, em hospitais privados conveniados ou contratados. O mesmo número aproximado de leitos de UTI de adultos está em leitos hospitalares exclusivamente privados.

Para o médico sanitarista e epidemiologista Eduardo Azeredo Costa, os dados reforçam as projeções de um colapso na saúde por conta da pandemia do novo coronavírus. Segundo ele, existem hoje no país menos leitos per capita hoje do que na época de Getúlio Vargas, conforme levantamento feito em 1941 (2,75 leitos por mil habitantes), desprezados os hospitais de menos de 25 leitos (ver tabela *1). Em 2014, sem excluir os com menos de 25 leitos (e há muitos, especialmente municipais), eram 2,19 por mil.

Desses, 1,56 por mil atendem ao SUS e 0,63 por mil atendem apenas pacientes privados. Se excluirmos os que têm menos de 20 leitos em 2014, para tornar mais comparável com os dados de 1941, a taxa total cai para 2,0 por 1000 habitantes, sendo 1,45 para hospitais de financiamento pelo SUS e 2,37 de financiamento privado. Só para registro, dos leitos que atendem ao SUS 50,6% são públicos e 49,4,5% são privados lucrativos ou filantrópicos (ver quadro *2).

O mesmo estudo que usa dados de 2014 mostra a precariedade de distribuição de leitos no Brasil, com concentração de leitos em grandes cidades e escassez no interior, onde faltam principalmente leitos tecnológicos, aqueles que têm respirador e outros equipamentos que fazem parte de uma UTI (unidade de tratamento intensivo) necessária no caso das complicações respiratórias do coronavirus.

Chegada da pandemia nas comunidades preocupa

O epidemiologista torce para que a evolução da pandemia no Brasil não seja tão crítica como nos países europeus, levando em conta que lá o problema começou em clima frio, o que favorece a sobrevivência do vírus por mais tempo no ambiente, e aqui é o contrário. Apesar dessa esperança baseada num dado ambiental, ele não descarta o agravamento da crise e consequente colapso do sistema de saúde por razões sociais e econômicas.

Uma das principais preocupações do especialista é a chegada da pandemia nas favelas brasileiras. “À medida que (a pandemia) chega nas classes populares, a transmissão será mais explosiva, porque ali é todo mundo muito aglomerado, junto. Isso é o que mais tememos”, pontua Costa. “Então, nós vamos ter incapacidade de atender adequadamente a todos os que precisarem usar o SUS médico-assistencial. Incapacidade esta que já acontece hoje”.

Alguns estádios de futebol, como o Pacaembu, o Mané Garrincha, o Maracanã e até um campo localizado dentro da Fiocruz, já estão se transformando em hospitais de campanha. Isso, porém, não é suficiente de acordo com a avaliação do médico sanitarista.

O problema dos estádios é que ficam nos grandes centros. Todo mundo que adoecer vai ser trazido pros grandes centros? Não. Tem que ter estrutura acompanhando a distribuição da população. Como falta planejamento, o que vão fazer? Reforçar tudo o que já existe? Aí é uma política contraproducente destinada a fracassar”, opina.

Para o especialista, o SUS, apesar de sua proposta, manteve a desigualdade social no acesso a serviços de maior custo. “Mesmo países desenvolvidos com excelentes serviços de saúde essencialmente públicos (podemos citar Itália e Espanha) não estão dando conta dessa situação epidêmica, que dirá  aqui, com essas deficiências”, afirma. Nossa maior riqueza, no entanto, é o pessoal da saúde que no espírito de seu compromisso ético-profissional está todo dedicado a se preparar para o que pode vir”, ressalva.

Azeredo Costa acredita que o gabinete de enfrentamento da epidemia do Ministério da Saúde tenha condições de acionar os instrumentos necessários agora, mas seria importante deixar um legado para os tempos que logo virão. Para isso, no entanto, é necessário um bom planejamento.

Tem um grande problema: o SUS não tem planejamento voltado para equidade, para a adequada distribuição dos recursos. Tem um planejamento orçamentário, apenas, com muita interferência política indesejável em relação a contratos na sua execução. Não foi instituído um planejamento de saúde adequado no Brasil. E essa questão é central agora para essa emergência ser melhor atendida. Como é que nós vamos pensar, em cima do mapa, onde estão os leitos, onde está a população, onde é preciso requisitar leitos ou desapropriar temporariamente imóveis para montar hospitais?”

‘Bolsonaro é um vírus maior do que o corona’, diz sanitarista

Saúde pública no Brasil avançou, mesmo com poucos recursos

Costa cita declaração do presidente Macron, da França, de que certos setores como a saúde não devem seguir as regras de mercado. “É uma coisa óbvia na Europa, onde os serviços de saúde são públicos, mas os Estados Unidos e seus seguidores mais próximos não querem aceitar. Nós temos um modelo, digamos, dual, com atenção privada e pública, cujo comando precisa ser unitário, em especial em situações de crise”, analisa.

Eu não acredito nessas frases que dizem: ‘Graças a Deus que nós temos o SUS’. São frases soltas que não significam nada. Nós temos qualidades na nossa saúde do país, que são antigas, e de boa tradição. Algumas continuam bem, e outras não. Mas temos muitos problemas com assistência médica, onde há uma disputa do setor privado que planeja com base em premissas de mercado. E a saúde precisa ser pensada em termos de necessidades.

Ele critica a concentração de riqueza escandalosa” no Brasil e comenta que as pessoas das classes médias preferem resolver seu problemas com plano de saúde privado, mas usufruem as vacinas do SUS, por exemplo.

Um trabalho que no Brasil sempre foi bom. É uma tradição que vem de longe, com Oswaldo Cruz, na época do controle da febre amarela, da peste, da varíola, no começo do século passado. Temos uma história rica no desenvolvimento da saúde pública no Brasil, que não parou em nenhum tipo de governo”, destaca.

Segundo ele, na ditadura militar houve a desenfreada privatização da assistência médica da previdência social, “um péssimo legado”, mas a área de saúde pública, mesmo com recursos limitados, avançou. “Ela tomou suas características, em cada momento, mas sempre foi para frente, tendo tido grande impulso na época do governo Vargas. As pessoas não olham muito para trás, mas foi fantástico o desenvolvimento da saúde pública no Brasil. Mas precisamos avançar muito ainda na estrutura organizacional do SUS”, conclui.

‘Política é a Medicina escrita por extenso’

Costa tem como lema uma frase do patologista alemão Rudolf Karl Virchow: “A Medicina é uma ciência social e a política nada mais é do que a Medicina escrita por extenso”. “Eu sempre digo que a minha especificidade é a união da saúde e da política. Não é política de saúde. É política e saúde. São coisas que se falam, e são paralelas, uma não larga a mão da outra. Ao mesmo tempo, nenhuma deve ocupar o lugar da outra. Como a dupla hélice do DNA!”, conclui.

*1- Censo Hospitalar do Brasil de 1941-42**.
Tipo de Hospital No. de Entidades No. de Leitos Leitos /1000 hab.
Especializados (1) 183 48.228 1,16
Gerais (2) 1051 68.441 1,59
Total (3) 1234 116.669 2,75

** – Fonte: De Negri (2016).

(1) – Doenças Mentais, Tuberculose e Lepra (internações de longa duração).

(2)  – Não estão incluídos clínicas e enfermarias isoladas com menos de 25 leitos.

(3) – A quase totalidade dos hospitais era público ou sem finalidade lucrativa.

*2-  Leitos Hospitalares no Brasil, por tipo de entidade, 2014.**

Tipo de Hospital   Financiam   No. de Leitos (%)  Taxa Geral (2)  Taxa de Acesso (3)

A – Público              SUS             149.403 (35,9)         0,734           1,45 (A+B)

B – Priv. Conv.       SUS              145.775 (35,1)         0,716

C – Privado             Privado         120.455 (29,0)         0,592            2,37  (2,91)

Total Geral       SUS+Priv      415.633 (100)          2,042

** Elaborada pelo autor com dados do trabalho de De Negri (2016)

  • – Não inclui dados de hospitais com menos de 20 leitos.
  • – Taxas de leitos por 1000 hab. considerando a população total em dezembro de 2014.
  • – Taxas considerando a população que tem direito a acesso. No caso do C – Privado quase 100% são planos de saúde que financiam e a população que tem acesso (que era pois a cerca de 25% da população em 2014). No entanto, especialmente nos leitos de alta tecnologia os usuários de planos de saúde também usam o SUS. A taxa para esse grupo poderia ser acrescentada por mais 0,592 por mil, chegando a 2,91 por mil pessoas.

Por Ana Helena Tavares, do blog “Quem Tem Medo da Democracia“, com edição de Rosayne Macedo

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