A carioca Raquel Braz Romão, de 40 anos, aposentada por invalidez, faz hemodiálise há seis para garantir o funcionamento dos rins e manter-se viva. Nos últimos dias, ela está aflita com a mudança para uma nova clínica de diálise – a quarta desde que iniciou o tratamento. Ela é uma dentre os cerca de 200 pacientes da Clínica de Diagnósticos Renais (CDR- Anil) que terão que ser remanejados, já que o espaço vai fechar por conta dos repasses insuficientes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pacientes e familiares dos doentes renais atendidos na CDR-Anil – alguns há mais de 20 anos – estão preocupados com o aviso de fechamento da unidade, previsto para ocorrer até julho, e com os locais para onde serão remanejados, bem longe da região de Jacarepaguá, onde a maioria mora. O motivo alegado aos pacientes pela direção da clínica é o valor do repasse da verba do SUS, que há dez anos não é reajustado.
A clínica informou que encerrará totalmente as suas atividades, não mais atendendo nem SUS, nem convênio. E que os locais para onde os pacientes serão transferidos são determinados pelo Sistema de Regulação (Sisreg) do Estado do Rio, junto ao município. A Secretaria Municipal de Saúde informou que o remanejamento desses pacientes já foi iniciado para outras unidades em diferentes bairros do Rio.
Protesto convocado nas redes sociais
Mais de 60 pessoas se reuniram na porta da clínica para um protesto na manhã desta segunda-feira (10). Raquel lembrou que muitos pacientes têm dificuldades de mobilidade ou são portadores de outras comorbidades. “Tem cadeirantes, cegos, amputados, pessoas que usam catéter”, afirma. Além disso, boa parte enfrenta problemas financeiros com a crise do novo coronavírus e não podem pagar transporte para se deslocar para outros bairros mais distantes de suas casas, nem têm condições físicas para permanecer muito tempo em trânsito.
Veja aqui como foi a manifestação.
Com o fechamento da CDR Anil (na região de Jacarepaguá) os pacientes estão sendo remanejados aleatoriamente para outras clínicas renais, independentemente de localização, distância e ou outras preocupações com pessoas que passam por um procedimento invasivo e doloroso”, alerta um aviso publicado nas redes sociais para a manifestação convocada para esta segunda-feira (10).
O texto diz ainda que estes pacientes “são seres humanos, cidadãos contribuintes e merecem respeito e seus direitos assegurados. Também elegem candidatos que deveriam garantir os seus direitos”. E prossegue: “Não podemos e não vamos nos calar. Pessoas NÃO são números. Também não são objetos que deslocamos de lugar por pouca serventia”, destaca a convocação.
Dúvidas sobre qualidade e continuidade no tratamento
Moradora de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, Raquel foi informada na semana passada que será transferida para outra clínica no bairro do Engenho de Dentro, na Zona Norte, a mais de 12 quilômetros de distância. Ela explica que há seis anos iniciou o tratamento numa clínica da CRD em Botafogo, na Zona Sul, que fechou as portas; passou por outra clínica da mesma rede no Centro, que também fechou, e mais recentemente estava no Anil, mais próximo de sua casa.
Não temos nenhuma segurança que não vai acontecer nada com a nova clínica também. Os pacientes estão sem garantia de continuidade do tratamento. Vamos para outra unidade que poderá fechar também por falta de verba”, afirma ela, que também teme pela qualidade no tratamento. “O atendimento na CDR Anil é de ótima qualidade. O rim fica filtrado com o que melhor tem no mercado”, comenta.
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A jornalista Liz Fraga também está preocupada com o avô, que faz hemodiálise na mesma clínica três vezes por semana. “Ele é renal crônico, se não fizer (o tratamento), ele morre”, diz, apreensiva. A clínica do Anil é a mais próxima da casa da família, na Freguesia. “Ele está sendo remanejado para o Engenho de Dentro, bem mais longe de casa. Ele tem 90 anos e vai ficar no trânsito? Como vai aguentar?”, completa.
Outra preocupação é com a continuidade do tratamento. “Se a clínica do Anil está fechando, o que garante que as demais clínicas da rede não fecharão também? Se não tem repasse do SUS é para a rede inteira”, questiona. Ela cita ainda a preocupação dos médicos, que estão sendo remanejados, e não sabem se todos terão empregos garantidos nas outras clínicas da mesma rede.
Cláudio Cesar, paciente da clínica há três anos, questiona: “Como uma pessoa idosa vai sair daqui e vai pra São Cristóvão, Penha, Olaria? Moro na Taquara (próximo do Anil, na região de Jacarepaguá) e vou ter que ir para São Cristóvão. Então, tenho que pegar três conduções, fora as 4 horas que fico na máquina (de diálise), serão mais 4 horas na condução”, contou.
Por nota, a clínica informou que, “no caso dos paciente do SUS, não é a clínica que faz o remanejamento e sim a Regulação do Estado, junto com a Prefeitura. Por ser uma unidade privada, a clínica não tem qualquer gestão sobre vagas na rede pública e, portanto, não tem qualquer relação com remanejamento de pacientes SUS”.
Hoje, infelizmente, com o valor que se recebe do Ministério da Saúde e a clínica não consegue se sustentar. É uma questão de matemática simples, mas a clínica só fechará depois que todos forem transferidos, com ética e responsabilidade”, disse aos pacientes e familiares um funcionário que se identificou como Rafael, da área administrativa.
Município diz que decisão foi da empresa e já iniciou transferências
Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou que “a CDR Anil está encerrando suas atividades com o SUS por decisão de negócio em prerrogativa do grupo empresarial. Não é de interesse da instituição manter o contrato com o setor público”. Disse ainda que não tem dívidas com a CDR Anil e todos os pagamentos estão em dia.
A SMS ainda garantiu que “nenhum paciente hoje atendido pela CDR Anil ficará sem assistência” e que “já estão sendo transferidos para outras unidades pela Secretaria de Estado de Saúde, que é a responsável pela regulação das vagas de terapia renal substitutiva”.
A pasta explicou que as clínicas que já tinham contrato com a SMS, mas se inscreveram no chamamento, tiveram novos contratos assinados e continuarão a atender os pacientes que já são assistidos por elas. Os contratos anteriores eram antigos e estavam no limite do prazo, por isso as instituições precisaram passar pelo chamamento para assinar novos contratos. A CDR Anil, como não tinha interesse em continuar prestando serviços ao SUS, não participou do chamamento.
Os serviços que vierem a ser a serem contratados serão remunerados, no máximo, pelos valores unitários constantes no Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS – SIGTAP, disponível no site do Datasus, em vigor na data de realização do evento. A lista das clínicas que foram habilitadas no chamamento pode ser conferida aqui.
Clínica garante atendimento até o remanejamento do último paciente
Também procurada pelo ViDA & Ação, a direção da Clínica de Doenças Renais (CDR) Anil informou que o convênio com o SUS encerrou o prazo, o contrato foi integralmente cumprido e todos os pacientes serão atendidos até que a Secretaria Municipal de Saúde transfira todos. “Tudo está sendo feito em parceria com a Prefeitura para a tranquilidade dos pacientes”, assegurou.
A CDR também explica que a situação da clínica reflete um problema nacional que envolve diversas clínicas de hemodiálise no país: os baixos valores de repasses pelo SUS, que seriam os mais baixos do mundo inteiro. Questionada sobre o possível fechamento de outras clínicas da rede no Rio de Janeiro, o número de pacientes atendidos e os valores atualmente pagos pelo SUS, a clínica não respondeu, mas manifestou o interesse de continuar apenas com atendimentos por planos de saúde ou particulares.
Confira a nota da CDR Anil na íntegra:
O fechamento é decorrente do fim da vigência do contrato com a Prefeitura do Rio de Janeiro em 01/05/2021 para a prestação de serviços de terapia renal substitutiva a pacientes do SUS. Nos cinco anos de contrato, envidamos todos os esforços para prestar serviços de excelência.
A decisão da CDR Anil de não participar do novo chamamento público, efetuado pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, deve-se ao desequilíbrio econômico financeiro, provocado pela falta de reajuste da tabela SUS da diálise desde 2017.
Como é de conhecimento público, o setor de diálise enfrenta grave crise financeira histórica, com aumento de custos e de impostos, impossibilitando o equilíbrio financeiro de muitas clínicas.
Diante deste cenário, a CDR Anil informa ainda que está tomando as providências internas para encerrar as atividades da unidade, no decorrer dos próximos meses. Cientes de nossa responsabilidade, até que haja a completa transferência dos pacientes para outras clínicas, todos continuarão recebendo o devido tratamento, com o mesmo cuidado e atenção de sempre.
A CDR Anil, desde novembro de 2020, seis meses antes do término do contrato, comunicou à Secretaria Municipal de Saúde a sua decisão, a fim de providenciarem os trâmites necessários para a transferência dos pacientes para outras unidades. Reiteramos que todas as ações estão sendo conduzidas pela direção da CDR Anil, de forma respeitosa e ética com todos os pacientes, até que o processo de migração seja integralmente concluído e a clínica encerre suas atividades”.
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