Perto de completar 50 anos, em plena pandemia da Covid-19, a advogada carioca Cheryl Berno enfrentou o diagnóstico de câncer de adrenal, uma doença ultra rara, extremamente agressiva. Na corrida pela vida, ela se deparou com a falta de conhecimento sobre e enfermidade entre os médicos no Brasil. Não havia informações sobre a doença até mesmo no site do Instituto Nacional do Câncer (Inca). E ela precisou buscar ajuda médica nos Estados Unidos e na Europa.
Outra dificuldade foi na realização do exame de mitotonia, para confirmação do diagnóstico. Por falta de conhecimento dos patologistas no Brasil, o exame teve que ser enviado para dois laboratórios nos EUA. Segundo ela, o exame ainda não é feito no Rio de Janeiro, apenas em Curitiba e, mais recentemente, também em São Paulo.
Para tratar a insuficiência adrenal que ela desenvolveu devido ao tumor, além da hidrocortisona – uma medicação de baixo custo, mas ainda de difícil acesso para uso domiciliar -, era indicado um quimioterápico oral de alto custo: Mitotano, de nome comercial Lisodren, que não tem fabricação no Brasil e precisa ser importado da França.
Mesmo com um bom plano de saúde, Cheryl teve dificuldades de acesso ao medicamento. Cada caixa custa R$ 1,8 mil e Cheryl precisava de cinco por mês para destruir as células cancerígenas nas glândulas suprarrenais.
Na sua ‘odisseia’ pela cura da doença, Cheryl acabou conseguindo o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de uma pesquisa clínica no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Hoje, ela é só gratidão ao SUS, “o melhor plano de saúde do Brasil”. “Se estou viva hoje para contar essa história eu tenho que agradecer ao SUS”, disse.
Apesar disso, Cheryl e outros pacientes – inclusive crianças – que dependem do Mitotano para sobrever vêm encontrando muitas dificuldades para ter acesso à medicação porque o laboratório francês HRA Pharma, que produz o Lisodren, simplesmente deixou de fornecer para o país, segundo ela, para tentar forçar o governo brasileiro a reajustar os preço de R$ 1,8 mil para cerca de R$ 5 mil.
Nossos pacientes com câncer adrenal usam um único remédio em toda fase do tratamento e foi retirado do Brasil ou seja uma sentença de morte”, diz Adriana Santiago, vice-presidente da Associação Brasileira Addisoniana (ABA), à qual estão ligados pacientes com insuficiência adrenal.
Entenda a questão que coloca em risco a vida de pacientes raros
Segundo Cheryl, a fabricante francesa diz que não vai vender mais no Brasil porque a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) não concordou em aumentar o valor da medicação. Vinculada ao Ministério da Saúde, é a CMED que estipula o preço dos medicamentos que são aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
A HRA Pharma colocou a importadora no Uruguai. A Anvisa simplesmente cancelou o registro do medicamento e a ANS diz que os planos só têm que pagar medicamentos registrados”, afirma a paciente.
Cheryl explica que o quimioterápico existe desde 1946, não é produzido no Brasil e não tem importadora aqui. “Agora, como tem que ser importado, os planos de saúde dizem que não são obrigados a pagar quimioterápico importado, ainda que a pessoa já esteja em tratamento”, destaca.
Sem o Mitotano os pacientes de câncer podem morrer e muitos já morreram sem o quimioterápico que custava R$ 1.800 a caixa. Agora, importado, custa mais de R$ 5 mil”, reforça. “Vão matar os brasileiros tendo remédio! Isso é surreal. Muito desesperador para eles, para a família e para quem nem sabe que vai ter este câncer”, afirma.
A advogada vem tentando uma reunião para buscar uma uma solução urgente junto à Anvisa, ANS e Ministério da Saúde para garantir o fornecimento imediato da medicação. Em paralelo, os pacientes pedem a abertura de uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União.
Cheryl também critica a indústria farmacêutica, que explora as doenças raras para forçar o governo brasileiro a comprar medicamentos de alto custo. “Não é possível que o Brasil com 203 milhões de pessoas não seja mercado para as indústrias farmacêuticas e nem para importadoras!”.
Precisamos de soluções urgentes porque as pessoas estão morrendo com o remédio barato que existe!!! Esta situação da indústria farmacêutica que explora o Brasil e não produz nem exporta para país precisa mudar!”, desabafa.
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Pena de morte no Brasil para pacientes com câncer raro
Por Cheryl Berno*
Em 2020 descobri o câncer de adrenal (CID 074), um câncer raro, mas que atinge muitos pacientes no Brasil, principalmente no Sul e no Sudeste, em razão de um problema genético no gene P53. Eu não tenho o problema genético e o tumor que tive não tem explicações porque nunca bebi, nunca fumei ou usei drogas, e cuido da saúde e da alimentação.
Tive problemas para conseguir o quimioterápico MITOTANO ou LISODREN, necessário mesmo depois da cirurgia, em razão da alta agressividade e altas chances de retorno do câncer, um dos tumores sólidos mais agressivos.
Primeiro o plano de saúde se negou a dar (a medicação). Depois não tinha no SUS da minha cidade (Rio de Janeiro). Comecei a estudar sobre a questão médica e jurídica e pedi ajuda ao Ministério Público Federal, argumentando que não iam me fornecer o quimioterápico no Rio.
Descobri na época que a única importadora, a MOKSHA 8, ia suspender a importação no Brasil e com isso cancelar o registro na Anvisa do MITOTANO (Lisodren, o único quimioterápico oral para o tratamento do câncer de adrenal).
Pedi então a atuação do Ministério Público Federal, que abriu o Inquérito Civil MPF/PR/RJ nº 1.30.001.000343/2021-11. O MP apurou que o Inca ia importar o mitotano, para que centenas de pacientes Brasil afora, inclusive crianças, não morressem mesmo havendo o MITOTANO desde 1946. Mas o Ministério Público arquivou o inquérito sem ver o final da história e sem maiores informações dos pacientes e médicos envolvidos, que nem foram ouvidos.
Também abri junto ao Ministério da Saúde o processo SEI – Acesso Externo ao Processo nº 25000.032706/2023-66, pedindo ajuda à ministra (Nísia Trindade) e à Coordenação Nacional de Câncer no Brasil, do Ministério da Saúde, à Anvisa e à ANS. Sem retorno, continuo a luta, não por mim, mas pelos pacientes que ainda precisam.
Ocorre que passados 3 anos, a HRA PHARMA, a indústria fabricante com sede na França, que produz o MITOTANO (Lisodren) e é detentora da marca no mundo, tirou sua importadora do Brasil, a MOKSHA8, porque a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) não aprovou o aumento do preço do mitotano (LISODREN) no Brasil, que estava defasado, segundo a empresa.
A caixa com 100 comprimidos custava em torno de R$ 1.800,00, mas o preço no mundo era de 600 euros, em torno de R$ 3.600,00 – um paciente usa em torno de 5 caixas por mês. Assim, a empresa HRA PHARMA tirou a importadora do Brasil e colocou no Uruguai. Com isso o registro do MITOTANO foi CANCELADO NO BRASIL, junto à ANVISA e assim, a ANS não obriga os planos de saúde a pagarem medicamentos não registrados no Brasil, não obstante a exceção prevista na RDC 81.
Os pacientes foram condenados à morte, mesmo existindo um medicamento oral desde 1946, o MITOTANO. A culpa não pode ser do paciente com pena de morte porque ninguém, público ou privado, não quer produzir no Brasil, que já mandou produzir até cloroquina, mas não quer produzir medicamentos para câncer que podem salvar vidas. As indústrias ganham milhões em incentivos fiscais e até desoneração da folha, mas não querem produzir no Brasil. Por que?
Agora a FARMAMONDO, importadora do Uruguai, da HRA PHARMA, que pode viabilizar a importação para o Brasil, mas custa R$ 5.000,00, mais os custos da importação.
Acionamos dezenas de vezes o Ministério da Saúde, que tem uma coordenação nacional de câncer, para coordenar a questão, a compra nacional, haja vista que a doença é rara e precisaríamos ter neste caso a compra e distribuição pelo próprio MS para atender ao Brasil.
Mas fizeram um longo processo e não tivemos nenhuma solução ao longo dos anos e estamos órfãs, decretada a pena de morte para os pacientes com câncer de adrenal que não tem mais de 5.000,00 para pagar pela caixa – são solicitadas em torno de 5 caixas por mês por paciente para o tratamento.
Não adianta termos a Lei com o Estatuto do Paciente com Câncer, direitos para os consumidores de plano de saúde e outras, se na prática decretaram a morte de quem não tem dinheiro para comprar o mitotano (Lisodren).
O Estado brasileiro com sua “e-burrocracia”, por todos os órgãos, e pela falta de coordenação está matando literalmente os pacientes, até crianças que não tem os R$ 25.000,00 por mês para importar as caixas do Mitotano, chamado no mercado de LISODREN, a tempo de o câncer não matar, para a CID 074.
Esse quimioterápico existe desde 1946, serve tanto para tratar o câncer de adrenal antes da cirurgia como depois, para o câncer não voltar. Mas explicar isso à ANS e à ANVISA, ao Ministério da Saúde é impossível para pacientes pobres, doentes, com um dos cânceres sólidos mais graves, mais agressivos do mundo.
A incidência do câncer de adrenal no Brasil é maior, principalmente no SUL E NO SUDESTE, por uma mutação genética do P53, que afeta muitos brasileiros, embora raros, somos muitos e muitas no Brasil. Números exatos nem o Ministério da Saúde tem porque não tem dados de câncer no Brasil, e nem consta no site do INCA em se tratando de câncer raro.
Assim, pacientes estão morrendo, sem assistência dos poderes públicos e precisamos da atuação novamente do Ministério Público Federal, porque a questão é nacional e envolve a coletividade, as pacientes com doença rara.
Vidas importam, até de pessoas com doenças raras, ainda mais sendo tratáveis”.
*Cheryl Berno é advogada e desde 2020 se trata de um câncer adrenal.