Segundo a Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), com números obtidos a partir do Portal da Transparência do Registro Civil, na página de Pais Ausentes, só nos três primeiros meses de 2023, mais de 60 mil crianças foram registradas apenas com o nome da mãe no Brasil.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas revelou um aumento de 17% no número de mães solos na última década, passando de 9,6 milhões em 2012 para mais de 11 milhões em 2022, evidenciando a ausência dessa figura entre os brasileiros.

Na semana em que se comemora o Dia dos Pais, especialistas ressaltam a importância da paternidade na vida de uma criança. Afinal, qual é o papel do pai na saúde mental dos filhos? Para a psicanalista Ana Tomazelli, CEO do Ipefem (Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas), essa é uma pergunta muito importante, sobretudo considerando alguns aspectos e dados. Segundo ela, a ausência paterna pode trazer consequências psicológicas para o futuro das crianças.

“Por fazermos parte de uma sociedade que ainda entende que a função de cuidadora é exclusiva da mulher, e que a responsabilidade do homem nesse aspecto é menor ou até mesmo inexistente, muitas vezes as conversas sobre paternidade partem da ausência em vez da presença. Temos dados que mostram o número de crianças sem o nome dos pais na certidão de nascimento, mas isso vai muito além. Não são raros os casos de crianças, jovens e adultos que têm o nome de seu pai nos documentos mas vivem o abandono paterno”, afirma.

Hellen Joana Cardozo, psicóloga clínica do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Adulto II Jardim Lídia, gerenciado pelo Cejam – Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim” em parceria com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, explica o papel do pai na vida da criança.

“Seja como protagonista ou coadjuvante da história, a verdade é que todo mundo guarda alguma memória ou sentimento referente ao seu pai. Essa figura, tão fundamental em nossas vidas, muitas vezes, molda a percepção do mundo e de nós mesmos. Isso ocorre porque, quando somos crianças, absorvemos diversas referências de nossos pais, e elas, por sua vez, influenciam diretamente no nosso desenvolvimento socioemocional e cognitivo”.

Segundo ela, desde a primeira infância, o pai desempenha um papel de extensão materna e, ao mesmo tempo, de separação da figura da mãe, à qual o bebê está biologicamente ligado devido ao aleitamento materno. Portanto, é fundamental que essa pessoa participe de todos os cuidados, que se alteram conforme os estágios do desenvolvimento da criança”, afirma.

Se a presença ativa do pai é benéfica para o desenvolvimento, a sua ausência também deixa lacunas e diversos questionamentos e pode acarretar uma série de consequências negativas para a criança.

“A criança tende a ser egocêntrica, e se ela não recebe o afeto esperado, pode atribuir a culpa a si mesma. Quando essa distância entre pai e filho ocorre na infância, ela, muitas vezes, não possui recursos suficientes para lidar com a ausência e pode desenvolver baixa autoestima, e pensamentos como ‘não sou bom o suficiente’ e ‘não mereço coisas boas’, além de sentimentos de abandono, raiva, tristeza e insegurança”, explica Hellen.

A importância da presença paterna

A presença paterna é de grande importância para o desenvolvimento dos filhos – e para a saúde dos pais, também. O tema da paternidade ativa tem ganhado outra dimensão nos últimos anos, e o tema passou a ser incluído no PNAISH – Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, do Ministério da Saúde, com iniciativas que visam estimular a participação no parto e nos cuidados básicos com o recém-nascido, fortalecendo esse vínculo desde o início.

“Falando de presença, e de uma presença positiva, respeitosa, acolhedora, os benefícios para pais e filhos são inúmeros. A paternidade ativa fortalece os vínculos afetivos e emocionais com os filhos, além de trazer mais significado para a vida do pai. É crucial reforçar que o pai tem papel tão importante quanto o da mãe na vida de um filho. Diversos estudos mostram que a presença paterna influencia diretamente no desenvolvimento cognitivo e social da criança. Além disso, influencia também na saúde mental da mãe. A presença do pai tem benefícios sistêmicos”, destaca Ana Tomazelli.

Já pelo lado da ausência, também há impactos na saúde mental. “A ausência paterna opera grandes impactos na vida de uma criança – lembrando que essa criança será um adulto, que também trará esses traumas e vazios. Muito se fala na “pãe”, que é a mãe que exerce algo do papel do pai para minimizar de alguma forma os desdobramentos emocionais nos filhos, mas pouco se diz sobre a carga emocional para a mulher e para a criança que vive esta situação. Hoje a sociedade avançou nos debates sobre família, maternidade e paternidade, sobretudo por conta dos formatos de família que vão além do que é “tradicional”, mas a paternidade versus a saúde mental das crianças ainda é um tema que precisa de muita conversa e aprofundamento”, destaca a especialista.

A especialista destaca que a ausência paterna tem raízes sociais e históricas no Brasil. “Países colonizados em geral, sobretudo de colonização de exploração, como o Brasil, são países fundados na violência contra os corpos femininos negros e indígenas, o que pautou a ausência paterna, nos filhos que nasciam sem pai conhecido. Ou seja, há uma linha histórica que dita tudo isso. Além disso, socialmente, os pais também, muitas vezes, viveram a incompetência paterna com seus próprios pais, sem demonstrações de afeto, sem diálogos e até mesmo com violência. Obviamente essa não é uma justificativa, não é uma desculpa, mas é como se o “ser pai” fosse ensinado através das gerações dessa forma”.

Ana destaca que essa é uma luta que deve ser proposta pelas gerações atuais, que ainda podem mudar o cenário. “O que digo é que alguma geração vai ter que tomar a decisão de interromper esse ciclo. Então, cada vez mais, é preciso haver um convite para a reflexão não só dos novos pais, mas dos que já são pais, e até pais mais velhos, para que repensem sobre esse contexto e rompam com essa forma de paternar”.

Dados do relatório “Situação da Paternidade no Brasil” apontam que 82% dos pais brasileiros concordam que fariam tudo o que fosse necessário para estarem muito envolvidos com o cuidado do filho recém-nascido ou adotado nas primeiras semanas, mas 68% deles não tiraram sequer a licençapaternidade de cinco dias prevista por lei após o nascimento ou a adoção dos seus filhos. Outro estudo, “Atitudes globais em relação à igualdade de gênero”, aponta que um quarto da população brasileira acredita que homens que ficam em casa para cuidar dos filhos são “menos homens”.

“Infelizmente, vivemos em uma sociedade onde a ausência paterna é naturalizada. Ao assumirem o papel de cuidadores, muitos homens entram em conflito emocional, pois acreditam estar desempenhando um papel que não é deles. E isso tem consequências na criação das crianças. Uma paternidade saudável tem muito a oferecer na formação de um filho”, diz a psicanalista.

Portanto, os pais precisam assumir que criar a criança é uma tarefa dividida por igual, e que a presença é fundamental, bem como o diálogo com os filhos e a comunicação assertiva. “Como diz o provérbio africano, “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, e a boa experiência dessa criança na sociedade, nessa aldeia, nessa comunidade começa no seu núcleo familiar”, finaliza.

Figura paterna pode impactar na infância e na vida adulta
 

Filhos criados com a presença ativa de um pai em seu crescimento podem desenvolver-se de maneira positiva em suas interações sociais, sensação de segurança, demonstração de afeto, autonomia e processos de tomada de decisão ao longo da vida.

Apesar de toda essa dimensão, muitas pessoas ainda se sentem perdidas ao assumir o posto. “Não é necessário ter um manual para ser um bom pai. No entanto, seguir algumas orientações sobre como reconhecer o próprio papel e entender que, mesmo com a presença materna, é necessário participar do processo de criação, é essencial”, enfatiza a especialista.

De acordo com a psicóloga, todos os laços afetivos são construídos e fortalecidos por meio da vivência, o que não é diferente com os filhos. Assim, por meio do brincar, troca de afeto, atenção e cuidados, os pais podem se fazer presentes e ativos na vida de seus filhos.

Mesmo em casos de separação dos cônjuges, é importante compreender que esse vínculo não precisa ser rompido, mas, sim, adaptado de novas maneiras.

“A paternidade pode ser leve mesmo após a separação. É possível aproveitar as visitas obrigatórias para fazer parte da rotina da criança. Criar um espaço de escuta nesse momento é crucial, buscando ser um amigo e compreender o dia a dia na escola, novas amizades ou brincadeiras recentemente aprendidas, por exemplo. Ser parte da rotina de saúde da criança também faz toda a diferença, acompanhando-a em vacinações e consultas pediátricas”, destaca.

Esses sentimentos, se não forem trabalhados ao longo do amadurecimento, podem acarretar consequências também na vida adulta. A psicóloga observa isso em sua prática clínica, especialmente nas relações amorosas.

“Mulheres que tiveram pais emocionalmente distantes, resultando em uma falta de afeto sólido, tendem a buscar inconscientemente indivíduos que também estejam emocionalmente indisponíveis para elas. Como resultado, frequentemente, enfrentam emoções fragilizadas”.

O mesmo ocorre com homens que cresceram com essa falta. “Se houve distância emocional na relação com o pai, muitas vezes, não há um modelo a ser seguido ou uma referência clara. Isso pode levar, consciente ou inconscientemente, ao entendimento de que o afastamento emocional é a opção mais fácil para as relações”, finaliza.

Em ambos os casos, o medo do abandono passa a ser um sentimento forte e constante, caso não tratado. E isso pode contribuir para a perpetuação de relações tóxicas que afetam a saúde mental, além de outros sintomas emocionais.

‘Pais são co-responsáveis pelos filhos’, diz psicóloga

Para Monique Stony, psicóloga, executiva de Recursos Humanos e autora do livro Vença a Síndrome do Degrau Quebrado”, lançado recentemente pela Editora Gente, a paternidade tem papel importante na construção de uma base segura para que a criança consiga se desenvolver fisicamente, emocionalmente e psicologicamente.

“Não estou falando de qualquer paternidade, mas, sim, de uma paternidade responsiva, de um pai que entende seu papel no desenvolvimento da criança”, explica.

De acordo com Monique, os pais precisam entender que são co-responsáveis pelos filhos, o que significa assumir a divisão de tarefas na responsabilidade de cuidados com eles. Ou seja, apesar de um legado histórico em que a mulher era vista como cuidadora, os tempos atuais, segundo a psicóloga, exigem pais mais proativos.

“É importante que o homem ocupe seu espaço e entenda sua co-responsabilidade. Com isso, ele precisa aprender a colocar limites no seu trabalho também, seja para participar de uma reunião na escola do filho ou cuidar do filho doente. E ao chegar em casa, um pai com responsabilidade afetiva sente-se no dever de buscar atividades para fazer com as crianças e passar tempo de qualidade com elas. Pode ser um dever de casa, fazer um esporte juntos, ver um filme”, sugere.

Para Monique, é preciso entender que o pai serve de referência de comportamento de um adulto homem, seja para filhas ou filhos.

“Quando falamos da menina, o relacionamento dela com o pai é uma referência de como pode ser tratada por um homem, o que pode esperar dele, e isso pode refletir na sua autoestima e autoconfiança. E o menino terá uma referência de como se comportar no futuro, reagir frente a desafios, se portar frente a demonstrações de emoção, ou seja, como enfrentar a vida”, avalia.

As consequências da ausência ou negligência paterna

Apesar de não existirem muitos estudos sobre as consequências da ausência ou negligência paterna no desenvolvimento das crianças, a especialista afirma que há muitas observações empíricas.

“O que é mais observado é o impacto na autoestima, na autoconfiança e no autovalor dessa criança. Isso é muito sério. Há um impacto também na representação da figura masculina”, alerta.

E com relação ao divórcio? Será que isso traz consequências para as crianças? Para a psicóloga, na sociedade atual, é mais importante ter pais co-responsáveis e com responsabilidade afetiva, ainda que separados, do que pais casados e vivendo em constante conflito ou em um modelo em que o pai é ausente apesar de habitar o mesmo teto, pensando ser apenas responsável por trabalhar e colocar dinheiro em casa.

“O mais importante é que os pais entendam seu papel e assumam responsabilidade afetiva, mesmo que não estejam juntos. Dessa forma, não pesará tanto para um dos lados e, para as crianças, haverá a certeza de saber que podem contar com cada um dos dois”, conclui.

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Palavra de Especialista

Helen Mavichian, psicoterapeuta infantojuvenil, aponta que a figura paterna é fundamental para que as crianças tenham um crescimento saudável e se sintam seguros (veja artigo completo abaixo).

Pais participativos contribuem para o desenvolvimento socioemocional dos filhos

Por Helen Mavichian*

Como ser mais presente na vida do seu filho? Em caso de pais separados, como um pai garantir que o cuidado e afeto sejam mantidos? O que é essencial para um pai favorecer o desenvolvimento de seus filhos? Assim como a maternidade, a paternidade gera muitas dúvidas, mas uma coisa é certa: a presença de um pai desempenha um papel fundamental na vida de crianças e adolescentes, pois a figura paterna está relacionada a diversos aspectos de crescimento, autoestima e bem-estar deles. 

O envolvimento de um pai é essencial no processo de desenvolvimento de habilidades socioemocionais, aprendizado de valores e princípios, resolução de conflitos, influência na construção da autoimagem, autoconfiança, personalidade, comportamentos, entre outros. Essa atenção e cuidado permite que um filho se prepare melhor para a vida adulta e tenha uma base sólida para poder enfrentar com mais segurança e equilíbrio os desafios futuros que a vida trará.  

Essa importância e necessidade de um pai é infinita, sendo o ideal que esteja presente na rotina de um filho o máximo que for possível. Para isso, é imprescindível dedicar tempo de qualidade, participar de suas atividades, manter um diálogo aberto, além de demonstrar afeto, apoio, paciência e amor ao lidar com suas questões, apoiar seus interesses, sonhos e metas.

Quando um pai se permite estar envolvido na aprendizagem e crescimento da criança, tem uma postura ativa nas decisões importantes, reserva momentos para conversar  e celebra as conquistas e os desafios superados, está contribuindo para que se desenvolva num ambiente em que se sinta seguro e amado, torna-se um modelo positivo. 

Mais do que estar junto fisicamente

Agora, ser um pai presente é mais do que estar junto fisicamente, envolve estar emocionalmente disponível e interessado nas experiências de um filho, atento às suas demandas, falas e comportamentos. Esse é um investimento que também não é apenas financeiro, é sobre dedicar tempo ao convívio e às atividades do dia a dia, com o intuito de fortalecer o vínculo afetivo e construir memórias valiosas ao longo da vida.

Para manter um relacionamento saudável ou até mesmo melhorar o relacionamento com um filho, vale apostar numa comunicação acolhedora, ser amoroso, respeitar a individualidade, equilibrar emoções, estabelecer limites claros e orientar como é possível caminhar sob esses limites.

Nos atendimentos em meu consultório, percebo como é importante a presença paterna na vida dos pacientes. Muitos chegam com demandas relacionadas à falta do pai e apresentam um sofrimento profundo relacionado a isso, pois a presença do pai é insubstituível e tem grande relevância no desenvolvimento e construção de um indivíduo. Sei que diversos fatores podem distanciar pais e filhos no dia a dia, mas todo esforço para evitar que isso aconteça, vale a pena. 

Para melhorar o relacionamento, por exemplo, sugiro que os pais busquem criar memórias afetivas com seus filhos, lidar com conflitos de forma afetuosa, valorizar o tempo juntos e estar dispostos a se adaptar a cada fase do desenvolvimento deles. A base de tudo é o respeito, a escuta atenta, a compreensão e o amor mútuo. No caso de pais divorciados, é importante criar um ambiente harmonioso para a criança nas casas de ambos os responsáveis, para que se sintam acolhidos. O bem-estar dos filhos deve sempre ser a maior prioridade de um pai. Feliz Dia dos Pais a todos!  

Helen Mavichian é psicoterapeuta especializada em crianças e adolescentes e Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É graduada em Psicologia, com especialização em Psicopedagogia. Pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em neuropsicologia e avaliação de leitura e escrita. Mais informações em https://helenpsicologa.com.br/

Com Assessorias

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