As mulheres experimentam uma dor crônica mais intensa e duradoura do que os homens. Mesmo assim, estudos internacionais comprovam que são tratadas menos assertivamente, não recebem da saúde pública e privada o mesmo tratamento dado aos homens e que algumas padecem e até falecem em função disso. Agora, pela primeira vez no Brasil, é realizada uma pesquisa referente ao tema, cujo resultado mostra que 50% das mulheres entrevistadas reclamam da valorização que o médico dá às suas queixas de dor. E 75,5% das insatisfeitas reconhecem que o médico se preocupa com a doença, mas dá pouca atenção à essas queixas de dor.

A pesquisa intitulada “Percepção do Atendimento Médico prestado às mulheres com dor crônica” foi realizada com um universo de 1.022 mulheres, de 18 a 78 anos (maior parte entre 40 e 60 anos), sendo que 86% sente dor há mais de seis meses; 62%, relata alta intensidade de dor, e quase um terço, 29,4%, sente dor intensa, sem ter essa condição “legitimada” pelo médico. O objetivo da pesquisa, além de conhecer a percepção que as pacientes com dor crônica têm do atendimento recebido por parte de médicos e de suas equipes, é o de chamar a atenção para um campo da medicina que só irá se expandir e aprofundar no futuro: o das desigualdades de gênero.

Mesmo a proporção feminina da população impactada pela dor crônica ser o dobro da masculina, as mulheres não são tão eficazmente bem atendidas quanto os homens”, afirma Julio Troncoso, criador do Dor Crônica – O Blog, projeto filantrópico de educação em dor no Brasil -, responsável pela nova pesquisa, em parceria com a Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ) e autorizada pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.

Esse estudo servirá de argumento para chamar a atenção dos profissionais da saúde, especialmente os médicos, quanto a situação anômala do Brasil em relação as dores femininas. Nos países mais desenvolvidos há críticas crescentes quanto as queixas da mulher com dor crônica não serem devidamente valorizadas pelos médicos e, em vez disso, atribuídas à somatização”, completa Julio. Pesquisador profissional, formado em Economia e Administração de Empresas e PhD em Comportamento pela Cornell University (EUA), ele já lançou 10 livros digitais sobre o tema da dor feminina.

32% desconhecem o motivo da dor

Os dados da nova pesquisa demonstram também as críticas das mulheres com relação à equipe de saúde (enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, etc).  Duas em cada 10 entrevistadas afirmam que a equipe médica não se preocupa com a sua dor. Entre as 882 mulheres com dor crônica superior a seis meses, 32% relataram não conhecer o motivo da dor, e uma parcela de 35% afirma que não foi informada sobre por um profissional da saúde. A dupla carência atingiu um quarto desse grupo.

Essa avaliação não melhora ao se constatar que uma proporção também significativa de entrevistadas, 39,1%, é composta por dois grupos distintos: as que se consideram informadas sobre sua dor, mas não por um profissional da saúde, e as que não se consideram informadas. Ou seja, por ação ou omissão, os profissionais da saúde não satisfazem as necessidades de informação sobre a dor de suas pacientes em quase 40% dos casos.

As 84% das entrevistadas concordam com a afirmação: “Estaria melhor se eu recebesse apoio de uma equipe de saúde”. E mais de 60% avaliam que “a atenção da equipe médica ou de outras pessoas não afetam o resultado do meu tratamento”. Em suma, a equipe médica é vista como sendo ainda mais impermeável às queixas das pacientes que os médicos, mas isso não parece importar a maioria delas, seja porque não reconhecem nessa equipe uma entidade propriamente dita e/ou por supor que ela, mesmo existindo, carece de maior efeito terapêutico.

Mais informadas reclamam menos dos médicos

Outro dado interessante é que o nível de informação parece amenizar as críticas sobre a valorização das queixas de dor pelo médico. Pouco mais de 50% das mulheres, que se dizem bem informadas, reclamam menos da valorização das suas queixas de dor pelo médico do que as que se dizem menos informadasOutro resultado foi que quanto menos intensa a dor, proporcionalmente maior a reclamação de que queixas a ela relacionadas são pouco ou nada valorizadas pelo médico. A explicação seria de que se a dor for reportada como “leve”, é provável que seu apontamento seja mais difuso (ou confuso), tornando exame e diagnóstico menos rigorosos e urgentes.

Julio explica que esta percepção da mulher com dor crônica sobre o atendimento que recebe dos médicos e das equipes de saúde, reforça a noção, suportada pela literatura, de que os médicos tendem a se comunicar tecnicamente com seus pacientes, negligenciando os cuidados de forma e conteúdo que preservam relações interpessoais saudáveis. O achado sugere que uma proporção importante das mulheres com dor crônica, acima de seis meses, desacredita da biomedicina enquanto solução para obter alívio ou cura.

Já era previsível uma porcentagem com dor crônica estar insatisfeita com a valorização dada pelos médicos e suas equipes às queixas. Por outro lado, é surpreendente o número das que dizem estar desinformadas sobre suas doenças e dores; e, também, não estava previsto o fato de muitas deixarem a recuperação nas mãos do ‘Além’, em vez de nas mãos de médicos ou de autocuidados. Isso acontece muito provavelmente em função da dor crônica não ter cura e não receberem acompanhamento adequado dos profissionais da saúde”, completa o pesquisador.

Ao propor um estudo sobre esse assunto, o objetivo é incentivar que o aluno se interesse por uma queixa prevalente com a qual ele terá que lidar após a sua graduação. “Além disso, os projetos científicos de uma forma geral auxiliam a formação do aluno no que tange à elaboração de um projeto de pesquisa, vivenciando as fases do projeto, as dificuldades que possam ocorrer durante a sua execução, a experiência da confecção de um manuscrito e, sobretudo, ajudam a formação de um espírito crítico na análise dos trabalhos publicados”, afirma a vice-diretora da FMJ, Ana Carolina Marchesini de Camargo, mestre e doutora em Medicina pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP, professora adjunta da disciplina de Ginecologia.

Para a dra. Ana Carolina, no campo assistencial, as respostas que o projeto traz ajudam a nortear a formação dos futuros médicos, pois podem apontar falhas ou acertos na abordagem da dor crônica, guiando para soluções. “Sendo um projeto pautado no escopo pessoal de qualidade de vida e autopercepção, particularmente este estudo reforça a necessidade da formação de um profissional empático, atento às causas orgânicas e inorgânicas do sintoma, e principalmente preparado para interagir de maneira humanista e ética com seus pacientes”. A doutora informa que os dados coletados estão sendo trabalhados e cuidadosamente interpretados para que que sejam apresentados em eventos científicos e publicados em revistas renomadas.

Como foi feita a pesquisa 

Os dados foram coletados entre outubro e novembro de 2020, por meio de um questionário veiculado online pelo Google Forms, sob a supervisão do autor e do blog Dor Crônica, pelo acessou a sua base mensal de 80 mil visitantes, bem como as maiores plataformas de mídia social (Google, Facebook, Instagram, LinkedIn e WhatsApp). Para promover a participação no estudo, as participantes ganharam um ebook inédito (“Dores Femininas”, 250 págs.).

Ao todo 37 questões foram divididas em quatro domínios: informações demográficas, percepção de aspectos do atendimento fornecido pelo médico e pela equipe médica que sugerem valorização, informações sobre dor (intensidade, informação); e Escala Multidimensional de Lócus de Controle. Das 1.022 mulheres, dois terços delas têm curso superior e as demais 2º grau incompleto a superior incompleto.

Estudos internacionais confirmam

Os resultados do novo estudo se assemelham aos de uma pesquisa de 17 artigos sobre queixas de 204.586 pacientes, feitas via online em cinco países – EUA, Reino Unido, Alemanha, Canadá e China (2000/ 2018), na qual a metade dos pacientes (49,71%) criticava atitudes ou comportamentos da equipe médica relativos ao paciente, tais como não levar em conta suas preferências, suporte emocional, informação e educação, entre os mais relevantes.

Das mais de 2.400 mulheres americanas com dor crônica entrevistadas online pelo National Pain Report (2014), 65% acha que os médicos levavam a sua dor menos a sério por serem mulheres; e 84% foi tratada de forma diferente pelos médicos por causa de seu sexo. Aproximadamente a metade ouviu dos médicos as suas dores “estarem apenas nas suas cabeças” (saiba mais aqui).

Segundo Julio, como se pode notar, o assunto já é motivo, há mais de uma década, de pesquisas e de um movimento muito forte em países desenvolvidos. Mas até o momento, não tem sido pesquisado no Brasil.

Nos últimos 50 anos, em diversos países desenvolvidos têm sido progressivamente apontada a disparidade de gênero que caracteriza os serviços de saúde, seja no atendimento clínico, na pesquisa, na farmacologia, e até no reconhecimento das profissionais de saúde mulheres. Disparidades que, ao afetar o acesso da mulher a recursos de promoção da saúde, prejudicam a sua saúde e bem-estar. Dessa evolução pouco se sabe no Brasil, onde o tema em pauta não tem sido pesquisado”, conta.

Um pequeno estudo abrangendo mulheres fibromiálgicas, admitiu que “na maioria das vezes elas sofrem caladas, enfrentam discriminação, preconceitos e exclusão. Nesse caso, possuem vulnerabilidade física e social aumentada.”

Projeto conscientiza sobre Dor Crônica

Após sofrer por 25 anos de dor cervical, Julio Troncoso passou a se dedicar à pesquisa sobre dor crônica, e desenvolveu uma estratégia de vida e um tratamento multifatorial capaz de controlá-la. Os projetos de Julio convergem para um foco: ajudar a construir uma conscientização sobre Dor Crônica no Brasil, entre pacientes e profissionais de saúde. Esse foi um dos motivos de ter criado o Dor Crônica – O Blog (https://dorcronica.blog.br), projeto filantrópico de educação em dor no Brasil que reúne artigos, posts, e-books, vídeos, questionários médicos, aplicativos, cartuns, lâminas pedagógicas e outros conteúdos nas redes sociais.

Pelo fato de o blog ter muitos acessos de pessoas de outros países, a maior parte de seu conteúdo já se encontra para o inglês e espanhol. Pesquisador profissional e estudioso da área de dor, Julio já lançou 10 e-books e dois aplicativos relacionados à esta temática e o fato de falar quatro idiomas facilitou interpretar, compilar e analisar as mais diversas pesquisas realizadas no mundo sobre a dor feminina e o viés de gênero na saúde.

Como resultado, foi criado o e-book ‘O Paradoxo de Eva’, juntamente com o aplicativo gratuito ‘Alívio Mulher’ e também o ‘Alívio Coronavírus’, terceiro aplicativo desenvolvido pelo pesquisador. O projeto tem consultoria de Rosana Pereira, administradora de empresas com pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas.

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