Lugar de velho é onde ele quiser: o etarismo e suas consequências

Os 60 são os novos 40: como garantir um envelhecimento saudável. Combater o etarismo e outras formas de exclusão social é dever da sociedade

Geração prateada: cada vez mais pessoas idosas ocupam seus espaços na sociedade (Fotos: Canva)
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Segundo dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados no fim do mês passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os indicadores de envelhecimento da população aceleraram para níveis recordes e pessoas de 65 anos ou mais já representam 10,9% do total de habitantes no Brasil. O salto foi de 57,4% em relação ao recenseamento de 2010.

A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcomo, em artigo publicado em diversos sites e blogs, chama atenção para a necessidade de uma sociedade excludente como a nossa e que fatura alto com a indústria do envelhecimento se pautar por claras noções de amparo e inclusão.  “O cérebro humano permanece arguto e produtivo intelectualmente aos 70, 75 anos, mesmo que com limitações físicas, eventualmente”.

Combate ao etarismo

Para lidarmos com os impactos dessa nova configuração populacional, que fica mais semelhante à de países desenvolvidos como os EUA, precisamos de políticas públicas que combatam o etarismo (preconceito em diversos aspectos em relação às pessoas mais velhas, que as afeta especialmente no mundo do trabalho)  e viabilizem a inclusão de indivíduos dessa faixa etária no mercado de trabalho e onde eles queiram estar, realizando atividades e sonhos até quando se sentirem capazes ou quiserem, com o amparo e o cuidado que necessitam e merecem, após uma cada vez mais longa vida ativa.

No livro “Pra toda a vida valer a pena”, a gerontologista e geneticista Ana Claudia Quintana Arantes compara a velhice ao deserto do Saara, um lugar onde com sorte chegaremos um dia e do qual só sairemos para o fim da vida, a morte, que chegará para todos. O deserto é um lugar belo, mas extremo, inóspito, para o qual é preciso se preparar muito bem.  E, segundo ela,  o tempo de começar a se planejar para essa viagem é agora. A forma como cuidamos do nosso corpo, da nossa mente, das nossas relações e afetos nos prepara melhor ou pior para a travessia.

Os 60 são os novos 40

A velhice tem muitos percalços e limitações de mobilidade, de liberdade, pode nos impor uma dependência claustrofóbica. Mas ela está chegando cada vez mais tarde para muitos, em virtude dos avanços da medicina e da tecnologia.

Para perceber esse processo, não precisamos ir longe: basta olharmos para a frente e para os lados. Muitas das pessoas com as quais convivemos nas ruas, nas academias, nos cursos, nas faculdades (algumas fazendo sua segunda ou terceira graduação), nos espaços de lazer, entre outros, são mais velhas. Os antigos 60 são os novos 40, os 50, os novos 30 e assim sucessivamente.

Em um país com tantas desigualdades e carências, ranços do subdesenvolvimento, não é difícil concluir que a alta expectativa de vida também venha acompanhada de outros índices não favoráveis. Fomos considerados o terceiro pior país do mundo em qualidade de morte, atrás apenas de Uganda e da Índia, segundo estudos de 2010 da revista inglesa The Economist e passamos para 42º em pesquisa refeita em 2015, com 83 países, na qual Uganda nos ultrapassou.

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Idosos (mal) cuidando de outros

Se nada mudar, seremos um território de velhos e adoecidos, idosos (mal) cuidando de outros idosos. E, como sempre, a carga mais pesada acaba pendendo para o lado das mulheres, cujo instinto de cuidadoras e o papel cultural a que são submetidas levam a uma obrigação velada de cuidar não só dos filhos, mas dos maridos, dos seus pais, dos netos e dos pais dos seus maridos.

As estatísticas do IBGE mostram outros dados que têm impacto nessa conta. O Brasil tem, de acordo com o Censo de 2022, seis milhões a mais de mulheres do que de homens. E a situação se complica ainda mais em virtude de outros dados. Estudos recentes realizados por instituições como o Grupo Globo e o IBGE, revelam que, atualmente, mais de 48% dos lares brasileiros têm mulheres como chefes de família.

São elas as principais responsáveis pelo sustento da casa e dos filhos.  Esse número representa quase o dobro do percentual levantado em 1995 ― que era de 25% ― e tende a aumentar ainda mais quando olhamos para os 20,65 milhões de lares de baixa renda no país, dos quais 81,6% são chefiados por mulheres.

Mulheres pagam a conta

A cereja desse bolo perverso é que, embora sejam elas que pagam a conta, são também as mulheres que enfrentam o maior índice de desemprego no país (14,9% contra 12% dos homens), recebem os menores salários (20% menores em média do que os homens) e ainda lidam com até três vezes mais casos de assédio moral e sexual no trabalho, conforme indica o levantamento da Mindsight.

Uma boa travessia do Saara para essas mulheres e a sobrevivência de muitas famílias depende de ações, do poder público e da iniciativa privada, que possam reverter esse quadro, criar novas oportunidades de qualificação, empregos e atendimento médico de qualidade, que inclui, sempre que necessário, apoio psicológico.

Redes de apoio

Outro aspecto, não menos importante, para uma boa travessia, é o incentivo à criação de redes de apoio, de socialização, dessas pessoas que chegarão aos 80, 90 anos. Somos seres biopsicossociais, culturais e espirituais, vivemos em relação. Não por acaso, um dos mais importantes estudos sobre a felicidade, conduzido pela Universidade de Harvard durante 85 anos, concluiu que ela está ligada, principalmente à qualidade dos nossos relacionamentos.

O “Estudo sobre o Desenvolvimento Adulto” começou em 1938 com cerca de 700 adolescentes. Segundo Robert Waldinger, professor de psiquiatria na universidade e mestre zen,  quarto diretor do estudo, “a qualidade dos nossos relacionamentos é o principal indicador de nossa felicidade e saúde à medida que envelhecemos e nunca é tarde para “energizar” as relações ou construir novas conexões.” O estudo constatou que pessoas que têm relacionamentos mais calorosos permanecem fisicamente mais saudáveis à medida que envelhecem.

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Doenças da solidão

Outro dado desta ampla pesquisa aponta o estresse causado pela solidão e o isolamento. “Se algo incômodo, estressante, aconteceu, posso ir para casa e conversar com minha esposa ou ligar para um amigo. Se eles forem bons ouvintes, posso sentir meu nível de estresse diminuir. Mas se não tenho ninguém assim, se estou isolado e sozinho, acreditamos que o corpo permanece em um grau latente de reação de luta ou fuga, aumentando os níveis dos hormônios do estresse, como o cortisol, circulando no sangue, e de inflamação em meu corpo. Esses fatores gradualmente desgastam e atacam diferentes sistemas corporais. Dessa forma, o isolamento social e a solidão podem afetar as artérias coronárias e as articulações”, revela Waldinger.

Vida ativa, menos custo com saúde

O etarismo, que retira do mercado de trabalho e de relações sociais muitas pessoas ativas, física e mentalmente, dificulta a sensação de pertencimento a um grupo, leva ao isolamento e, consequentemente, aos sintomas físicos ligados à solidão, dificultando ainda mais a travessia do Saara. O adoecimento causado por esses fatores amplia os atendimentos de pessoas mais velhas em clínicas e hospitais, onerando o sistema de saúde.

A possibilidade de trabalhar até mais tarde tem outros aspectos positivos, como evitar a aposentadoria precoce e manter a economia aquecida por pessoas que estão no jogo da vida, com tudo o que isso significa, incluindo o consumo de produtos e serviços.

Lugar de idoso é onde ele quiser

Pessoas produtivas, que conseguem trabalhar até quando se sentirem aptas têm também mais chance de construírem redes de apoio, que incluam, para além da família, relações afetivas, colegas de trabalho, de cursos, de academia, dos espaços de lazer. Uma vida plena e mais saudável, com menos probabilidade de adoecimento, precisa incluir todos esses aspectos.

Evitar o etarismo e outras formas de exclusão social de pessoas mais velhas  é um dever da sociedade. Se tudo der certo, chegaremos nesse lugar também, e mais rápido do que gostaríamos. Podemos chegar mais ou menos preparados dependendo dos caminhos que pudermos trilhar, parte por nossa conta, mas parte em virtude de construções coletivas, como as políticas que citei anteriormente.

Parafraseando um ‘meme’ que ficou famoso e, felizmente, “pegou”, em relação às mulheres: lugar de idoso é onde ele quiser. Infelizmente, temos longas batalhas pela frente para que esse lugar possa ser plenamente conquistado.

Leia mais nossos textos na seção ‘Palavra de Especialista’

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