

Eu entendi que eu estava muito adoecido tentando sufocar isso em mim. Eu questionava há muito tempo, mas eu nunca dava vazão porque eu não tinha estabilidade financeira e tinha medo da transfobia que eu sofreria por parte da minha família”, revela à Agência Brasil.
Foi só quando se mudou para outro estado e retomou a psicoterapia ao começar o tratamento contra o câncer que as coisas mudaram “Nesse processo, eu fui conseguindo colocar para fora”, relembra.
Diagnóstico tardio por medo de transfobia
O tumor de Erick era agressivo. Quando ele procurou ajuda, já tinha três centímetros. Pouco tempo depois, ao iniciar o tratamento, havia duplicado de tamanho.
O sistema não está preparado para a gente, da comunidade LGBTQIA+. A gente é excluído desses espaços, porque não existe um letramento dos profissionais e porque a gente vive nessa sociedade e sabe o que a gente passa”, critica.
Ele admite que não tinha o costume de procurar os serviços de saúde de forma preventiva, o que poderia ter permitido o diagnóstico precoce. Mas uma das grandes razões para isso era o receio que sentia do tratamento que receberia.
Isso me afastava da saúde, assim como sempre afastou outras pessoas, amigos… Eu já fui para consultas ginecológicas e sofri violências por eles não saberem lidar com a mulher cis lésbica, imagina com uma pessoa trans”.
Erick conseguiu retirar totalmente as mamas durante a cirurgia para a remoção do tumor, mas ainda não pode utilizar a medicação hormonal que promove outras modificações corporais que ele gostaria de fazer.
Eu vejo, na prática, o quão doloroso é você chegar para o seu oncologista e falar: ‘Eu vou poder tomar hormônio?’. E ele dizer: ‘Não sei’. É complicado porque eu não sou o primeiro homem trans a ter câncer de mama. Já deveriam ter estudos”.
Erick Venceslau, que utiliza as redes sociais para falar sobre o tratamento do câncer e também sobre o seu processo transexualizador confirma a diferença que o acolhimento faz:
Eu tenho certeza que 80% do sucesso do meu tratamento se deve à minha esposa me ajudando e, claro, à Medicina. Mas os outros 20% vieram do apoio que eu tive das pessoas nas redes. Pessoas que eu nem conhecia, às vezes, vinham falar comigo, falar coisas muito importantes para mim. Esse apoio foi uma ferramenta de transformação”.
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Estigma vai do segurança ao médicos nas unidades de saúde
Casos como o de Erick não são incomuns na prática clínica de muitos médicos especializados em câncer A presidente regional da Sociedade Brasileira de Mastologia no Rio de Janeiro, Maria Julia Calas, já ouviu depoimentos semelhantes em seu consultório inúmeras vezes.
É uma população extremamente estigmatizada. Eles sofrem inúmeros preconceitos por todos, desde o segurança da porta até, infelizmente, o profissional da área de saúde, incluindo o médico”, enfatiza.
Como consequência, muitos não sabem como prevenir ou rastrear o câncer adequadamente, ou preferem não passar pelas consultas ou exames, para evitar violências, mesmo quando não se trata das regiões genitais.
Mulheres trans correm risco de desenvolver câncer de próstata
A pessoa, sendo maltratada, tratada de forma inadequada, não vai pro procurar ajuda, e se ela procurar e isso acontecer, ela não vai aderir ao tratamento, não vai fazer os exames, não vai voltar pra outra consulta”, comenta a médica.
Embora essa lacuna de informações exista, a especialista reforça que os médicos precisam se capacitar de acordo com o que já é sabido. Mulheres trans, por exemplo, também correm risco de desenvolver câncer de próstata, e ele pode ser maior ou menor, de acordo com o momento da vida em que elas começaram o tratamento para inibir o hormônio masculino.
Embora a inibição reduza o estímulo sobre a próstata, ela não elimina o risco. Mas o PSA [exame de sangue que pode detectar alterações no órgão], não é um exame tão eficiente nas mulheres, porque, como elas inibem o hormônio, esse valor é mais baixo. E a próstata também tende a diminuir, então o exame de toque também não é padrão”, explica ela.
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Quanto ao câncer de mama, a mastologista Maria Julia Calas explica que a mamografia continua sendo necessária para todos os homens trans que não tenham feito mastectomia e também para as mulheres trans que passam a ter glândulas mamárias após utilizar hormônios.
Além disso, toda pessoa com útero precisa fazer o rastreio de HPV, principal causa do câncer de colo de útero, mas como lembra Maria Julia:
Você vai numa clínica ginecológica, e ela costuma ser toda rosinha, tudo de menina, tudo fofo. Então, um homem trans não se sente absolutamente representado nem acolhido. A gente precisa de um serviço mais neutro.”
Novas diretrizes para câncer de mama e guia oncológico para pessoas trans
A Sociedade Brasileira de Mastologi (SBM) está preparando um conjunto de diretrizes de rastreio de câncer de mama na população trans, em parceria com o Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CDRDI) e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). O documento deve ser publicado no início do ano que vem e pode servir de inspiração para publicações semelhantes voltadas para outro tipo de câncer.
Em parceria com a oncologista Sabrina Chagas, a mastologista Maria Julia Callas, também decidiu organizar um guia oncológico para pacientes LGBTQIAPN+, echamado “Nosso Papo Colorido”, que está sendo lançado este mês.
Sabrina ressalta que questões relacionadas a gênero, raça e etnia muitas vezes são negligenciadas na área da saúde, o que, para pessoas trans, se traduz em barreiras de acesso, preconceito institucional e falta de protocolos adaptados às suas necessidades.
A oncologia tem avançado muito nos últimos anos, mas ainda existem lacunas significativas no cuidado de populações historicamente marginalizadas”, destaca Sabrina.
As especialistas defendem que o tratamento acolhedor, que respeite a identidade de gênero dos pacientes, e considere suas especificidades, já pode evitar que elas descubram a doença em estágios avançados, por medo do preconceito.
Da Agência Brasil, com Redação




