O Brasil tem cerca de 11,4 milhões de habitantes (6% da população) vivendo em “aglomerados subnormais”. A expressão usada no último Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, se refere à ocupação irregular de terrenos em áreas urbanas para habitação, com carência de serviços públicos essenciais e padrão urbanístico, e localização em áreas restritas.

Foram identificadas pelo IBGE 6.329 favelas em todo o país, somando 323 dos 5.565 municípios do território nacional. De acordo com o resultado do Censo de 2010, Marituba, no Pará, é a cidade com maior número proporcional de favelas. Quase 80% da população mora em condições inadequadas. Em números absolutos, Rio de Janeiro e São Paulo são os municípios que concentram maior número dessa população e somam juntos cerca de 40% do contingente de favelas do Brasil.

A Covid-19, que chegou ao Brasil pela classe alta, vai impactar ainda mais a vida já vulnerável dos grupos pobres e extremamente pobres do país. No Rio, o avanço do Covid-19 em favelas já começou, conforme dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde que registrou casos confirmados em comunidades da capital, como o Complexo da Maré, conglomerado com 16 comunidades na Zona Norte.

Trabalho informal dificulta o ‘ficar em casa’

Ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Marchiori Buss, alerta para a relação entre determinantes sociais, econômicos e ambientais e pandemia. “Haverá uma explosão de casos e óbitos nas comunidades”, diz o médico sanitarista, que é professor emérito da Fiocruz e membro titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil.

Segundo ele, a população que vive nas comunidades tem pouco ou nenhum acesso aos métodos de prevenção para se proteger da contaminação pelo SARS-CoV-2, como passou a ser chamado o novo coronavírus.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), divulgada pelo IBGE em janeiro deste ano, na média nacional, a taxa de trabalhadores informais é de 41,1%. Os trabalhadores informais são aqueles que trabalham sem carteira registrada e que não contam com direitos como salário fixo e férias remuneradas.

Falta de saneamento, custo dos produtos de higiene e impossibilidade de trabalhar de casa, seja pela falta de liberação dos empregadores ou pela informalidade do trabalho, são fatores que não permitem moradores de favelas acatarem orientações das autoridades quanto à higiene pessoal e ao isolamento social.

“A recomendação de ficar em casa, tanto no asfalto quanto na favela, é importante, mas é praticamente impossível, porque as pessoas vão tirar seus sustentos de onde? De dentro de casa? Então não há muito como a gente deixar de reconhecer que, se a gente quer que as pessoas fiquem em casa, vamos ter que criar uma renda adicional para as pessoas”, reforça.

Oferta de transporte público

O sanitarista defende que o Poder Público, entre outras ações, amplie programas sociais para que ausências no trabalho e gastos com produtos de higiene não ameacem a subsistência das famílias, e amplie também a oferta de transportes públicos, a fim de evitar a lotação desses meios dos quais dependem, principalmente, moradores de periferia e favelas.

O transporte para o trabalho é outra preocupação. “Muitas pessoas, provavelmente, vão se contaminar nesse transporte público de má qualidade que nós temos, apinhado de gente, sem o menor respeito pelo conforto e pela distância necessária entre as pessoas”, diz.

A previsão de uma forte pressão sobre o sistema público de saúde também é um alerta. “Provavelmente, 5% ou 6%, ou seja, menos de uma em cada dez, 15, 20 pessoas que estiverem contagiadas com o vírus vai precisar de um hospital. Mas isso multiplicado pelo número de habitantes que a gente tem na cidade vai gerar um caos muito grande no serviço público, que não tem leitos suficientes para uma explosão de necessidade”, explica.

É preciso que cidadãos e poder público tenham esse cenário claro e busquem colaborar com aqueles que mais precisam. E que essa preocupação vá para além do período de pandemia de Covid-19. Ele aponta que parte da solução depende da consciência de empresários e famílias que empregam moradores de favelas.

 “É muito difícil encontrar a solução mágica. Teremos que encontrar diversas soluções que precisam ser construídas ouvindo as lideranças comunitárias, Precisaremos de um novo fórceps, que certamente virá, para extrair de governos e da sociedade políticas públicas definitivamente comprometidas com a saúde humana e planetária?”, questiona Buss.

Confira no artigo abaixo

  • Por Paulo Buss*

Muito já se tem falado sobre o vírus, a doença, sua epidemiologia, os cuidados higiênicos, e os procedimentos médicos para quem fica doente. Mas a “causa das causas” da enfermidade está esquecida e é importantíssimo que a recordemos: são os determinantes sociais, econômicos e ambientais da saúde!

Há mais de 150 anos, médicos e políticos defendem que a saúde e as doenças entre os humanos não são apenas uma expressão da complexidade biológica da natureza. Nossa complexidade biológica interage todo o tempo com os ambientes físicos, sociais e econômicos.

Dependemos de condições ambientais físicas para bem viver. Temperaturas extremas têm matado milhares de pessoas ao longo dos anos, seja no frio extremo dos polos e em cidades das zonas temperadas, seja pelas ondas de calor intenso que acometem inúmeros países em zonas tropicais.

Dependemos também de outras condições ambientais: as casas em que moramos e as condições que as cercam. As favelas e comunidades pobres – as mais ameaçadas, na medida em que a epidemia evoluir – com seus aglomerados de casas pequenas, grudadas umas nas outras, com muitos moradores, sem água corrente, com esgoto a céu aberto e sem coleta de lixo são territórios muito favoráveis à disseminação do coronavírus.

Sônia Fleury e eu descrevemos esta situação e propusemos “um plano de emergência já!”, assim como outros autores o fizeram, para evitar um genocídio que pode vir quando estes territórios receberem o impacto das possíveis ondas que, qual tsunamis, poderão devastar suas populações.

Na base determinante de todas estas condições está a posição das pessoas e das famílias no gradiente social. A distância entre os que têm muito e os que nada têm é obscena no Brasil e nos países pobres de todo o mundo, seja ela medida pela expectativa de vida, mortalidade infantil e materna, prevalência da desnutrição, acidentes e violências, doenças não-transmissíveis, saúde mental, saúde bucal, adicções, falta de acesso à informação em saúde e enfermidades transmissíveis (malária, hepatites, aids e também as doenças respiratórias, como a tuberculose, a gripe, o sarampo e… a Covid-19).

Estão excluídas da economia formal, padecem da absoluta insegurança da economia informal, não têm qualquer proteção social, são os trabalhadores de carteira assinada mais mal pagos e têm sido espoliados dos raros programas sociais que os amparavam, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e alguns outros, bem como do acesso aos serviços públicos de educação e saúde.

Tudo justificado por um “ajuste estrutural”, que coloca a justiça do social de joelhos para a vilania de uma economia imperial e absoluta. O SUS vem perdendo orçamento sistematicamente, desde que o Governo Temer instituiu a PEC do limite de gastos e, por isso, fechando inúmeras equipes de saúde da família e serviços essenciais de saúde, acesso a medicamentos e outros insumos essenciais, e tal abandono continuava no governo atual.

Mas então nos abate a pandemia pelo novo coronavírus! Entrando no Brasil pelos territórios habitados pelas classes abastadas e médias, que podiam viajar ao exterior, mostrou como uma simples doença, produzida por um vírus que mede não mais do que 1 bilionésimo de milímetro, oriundo possivelmente dos intestinos e da baba das colônias de morcegos que vivem nas profundezas de uma caverna da remota China rural, passando por algum outro animal silvestre (talvez o pangolim, parecido como o nosso tatu) e comercializado indevidamente, pode produzir cataclismas econômicos, só imagináveis em conflitos bélicos letais, caso das duas guerras mundiais do século 20. A Terra emitiu um grito lancinante de socorro!

Então, uma estratégia propugnada e reiterada, há século e meio, pelos sanitaristas – que tomou nomes variados ao longo do tempo – as “políticas públicas saudáveis” – se impõe neste momento; “todas as políticas deveriam tomar em conta seu impacto sobre a saúde humana e do ambiente” é arrancada a fórceps (o coronavírus) de governos e sociedades. Uma correria desabalada para anunciar políticas e medidas “urgentes” para enfrentar a nova enfermidade se estabelece entre os poderes executivos, legislativos e judiciário; os mesmos poderes que, até há pouco, ignoravam o sistema de saúde e, particularmente, seus determinantes sociais, políticos, econômicos e ambientais.

Contudo, vencida a crise aguda da pandemia, persistirão tais políticas pró-saúde hoje aplaudidas? O mantra repetido é que todos os esforços de agora servirão para mais rapidamente recuperar a “normalidade”. Mas que normalidade? A que nos trouxe até aqui? A normalidade que favorece pandemias, que destrói ecosistemas, que provoca mudanças climáticas, que gera desigualdade social e se baseia num modelo econômico insustentável? Ou precisaremos de um novo fórceps, que certamente virá, para extrair de governos e da sociedade políticas públicas definitivamente comprometidas com a saúde humana e planetária?

Paulo Buss é médico sanitarista, mestre, doutor em Ciências pela USP, professor emérito da Fiocruz e membro titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil

Com informações da Fiocruz  e Observatório do Terceiro Setor 

 

 

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