A Polícia Civil do Rio de Janeiro investiga um grupo de estudantes de um colégio particular tradicional de um bairro de classe média e alta na zona oeste carioca acusado de adulterar fotos de colegas da turma e de meninas de outras escolas com uso de inteligência artificial para expô-las no whatsapp como se estivessem nuas. Mas, afinal, o que levaria esses adolescentes a praticarem esse ato e quais as consequências? Diante do caso que repercutiu esta semana na internet, fizemos esta pergunta a profissionais de saúde mental que colaboram para a seção Palavra de Especialista, do Portal ViDA & Ação.
Para Andrea Ladislau, doutora em Psicanálise, a exposição dessas fotos íntimas, ainda que falsas, é muito séria. “O crime é muito grave, é horrendo e deve ser visto por dois vieses: o viés dos criminosos, que são jovens, e das meninas, que também são jovens. Segundo ela, tornando-se públicas, essas imagens podem fazer com que a vítima adoeça mentalmente e tenha sintomas característicos até irreversíveis, com maior dificuldade de serem controlados, e desenvolver doenças psíquicas sérias, dependendo se já tiverem outros sintomas, e se não for tratada, pode atpe levar ao suicídio.
“Do ponto de vista da psicologia, da psicanálise, da saúde mental, pode ter consequências muito graves, transtornos emocionais severos, como estresse pós-traumático, ansiedade generalizada, alucinações, fobias intensas e depressão. Se não tiver um acolhimento, uma rede de apoio muito presente, em alguns casos a vítima pode até encontrar necessidade de tentativa de tirar a própria vida. Algumas meninas tentam se esconder do mundo, têm impulsos de se isolar. Enfim, muitas consequências muito desagradáveis e que fazem com que elas enxerguem que o mundo acabou, não conseguem mais se relacionar, situações que as levam a perceber que a vida começa a perder o sentido, que o mundo começa a perder a cor”.
A psiquiatra Danielle Admoni, especialista na Infância e Adolescência pela Unifesp, confirma que em episódios como este, o maior dano é mesmo para as meninas. Segundo a psiquiatra, esta exposição inadequada nas redes sociais causa enorme constrangimento, que pode se refletir no comportamento e na saúde mental das vítimas durante a adolescência, uma fase de muitas transformações.
“É uma baita exposição digital, uma vergonha, porque isso fica aí rodando durante muito tempo. Isso é um cyberbullying, na verdade. Não nesse caso especificamente, mas a gente sabe de meninas que tiveram nudes expostos, reais ou não, que deixaram de frequentar a escola, deixaram de sair de casa. Imagina na adolescência que é um período que todo mundo é insegura com a sua personalidade, sua aparência, seu corpo”, ressalta.
Danielle Admoni também comenta em relação a possíveis danos à saúde mental nas meninas que foram vítimas. “Realmente, isso tem consequências muito graves para essas meninas que foram expostas. Se futuramente essas meninas acabarem evoluindo com alguma coisa, daí sim precisa tratar, mas ainda é muito cedo para falar. Agora é muito mais acolher essas meninas e conversar muito com essas crianças, para que isso não aconteça de novo ou nada semelhante”, destaca.
Falta de empatia, mente perversa ou só brincadeira?
Mas o que poderia motivar esses meninos a realizar esse ato? Para a psicóloga Verônica Coutinho, “comportamentos como esse são preocupantes pela falta de empatia e de percepção das consequências nas vítimas, cujas vidas poderão ser marcadas para sempre”. Ela chama atenção para o fato de o crime ter partido de “crianças e adolescentes esclarecidos, estudantes de uma escola tradicional”, e para o uso indevido das tecnologias.
“O que vai para a rede sai do controle e não há desmentidos, desculpas que possam mudar essa realidade. A evolução da tecnologia nos permite desenvolver em diversos aspectos, mas é preciso muita responsabilidade para utilizá-la”, ressaltou.
Para a psicanalista Andrea Ladislau, do ponto de vista da psicanálise, “é muito mais do ego do que qualquer outra questão”. O episódio mostra a fragilidade do ser humano e a necessidade, pelo ponto de vista psicológico, de pertencimento dos criminosos. O que motiva isso, no caso dos criminosos, é o desejo de pertencimento, a necessidade de pertencimento, que é inerente a todo e qualquer ser humano. E, no caso deles, faz com que eles se sintam poderosos, com necessidade de mostrar que são capazes de criar e de alterar fotos, imagens, expor pessoas no desejo de mostrar que eles podem, que eles têm poder”, ressalta.
Segundo ela, esse desejo é em busca de prazer. “De alguma forma, na mente deles, podem alterar, criar, produzir, mesmo a partir de uma tecnologia, por pura perversidade, só que todo esse conjunto, todo esse combo gera prazer. Esse prazer está motivado por autonomia, essa autonomia gera prazer, é um círculo, é um vício. Isso os alimenta e faz com que eles usem tudo isso para atingir a fragilidade dessas vítimas. Com isso eles criam essa exposição, uma exposição para o mundo, eles colocam essas meninas numa vitrine, expõem para o mundo, expõem isso na internet, nas redes sociais, não importa, colocam elas lá publicamente. Então é muito sério, são dois mundos”, analisa.
Já a psiquiatra Danielle Admoni considera que o ato praticado pelos meninos é fruto de imaturidade, impulsividade e inconsequência, comuns da adolescência. “Foi algo bem, bem imaturo e provavelmente eles haviam achado que era uma brincadeira. Talvez eles não tivessem noção da extensão de tudo isso e, obviamente, não podem fazer isso, mas entra bastante na questão da adolescência. Assim, ‘vamos fazer e junta todo mundo, fazem e tá tudo certo’. É uma coisa bastante impulsiva e sem conseguir pensar muito na consequência que isso pode trazer tanto pra eles como pras outras pessoas”.
O que pais e escola devem fazer?
Andrea Ladislau classifica o episódio como “um crime horrendo”, muito sério e grave e diz que medidas punitivas devem ser tomadas. “Precisa ter uma punição significativa. E que seja exemplar”, comenta.
Para a psiquiatra, neste momento, mais do que discutir formas de punição e pensar em tratamento, é preciso trabalhar sob a perspectiva da educação de crianças e adolescentes. “Não sei o quanto eles tinham crítica do que que aconteceu em relação a eles, essas meninas, até de chegar num processo criminal, enfim. Não tem muito o que fazer do ponto de vista clínico. Então, por enquanto, é muito mais uma questão educacional do que uma questão clínica. Acho que não tem nada do ponto de vista psiquiátrico a ser feito agora”.
Para as especialistas, escolas e pais devem ficar atentos para a prevenção desses atos, esclarecendo sobre possíveis danos para os próprios autores e as vítimas. “O que precisa realmente ser feito é dentro da escola, orientar essas crianças que tudo que a gente faz tem consequência. O que eles causaram a essas meninas? O que eles causaram para eles mesmos? Inclusive esse processo criminal”, ressalta Danielle. E alertam para a importância de os pais redobrarem a atenção sobre o uso da internet e das redes sociais pelos filhos.
“Precisamos, todos, pais, familiares, instituições de ensino e sociedade discutirmos mecanismos mais eficazes de prevenção à violência, seja ela física ou virtual dessa natureza. Infelizmente, enquanto não temos êxito nessa empreitada, fazer cumprir a Lei é o caminho, da mesma forma que já ocorre como outros crimes como racismo e homofobia”, destaca Verônica.
Uso indevido da inteligência artificial
Danielle destaca que a inteligência artificial ainda é uma coisa muito nova e a gente precisa tomar muito cuidado com o uso que é feito disso. “É claro que tem coisas maravilhosas que vêm daí – para estudo, para medicina, para várias coisas, mas na mão errada ou na mão de alguém imaturo, a gente está falando de jovens, de adolescentes, que nem sempre conseguem pensar na consequência total do que eles fazem. Então isso é importante, a gente pensar na mão de quem cai isso e que uso que vai ser feito da inteligência artificial, apesar dela ter muitas vantagens”.
“Eu falo que tem a tecnologia, tem as coisas modernas, elas correm na nossa frente. Antes a gente tinha menos coisas para conversar com as crianças, e agora é o tempo todo mudando. Então a gente precisa ficar em cima, para ver o que que eles estão fazendo, com quem eles estão falando, nesse caso, o que eles estão inventando. E ficar em cima e orientar”, diz Danielle.”
Ainda de acordo com a psiquiatra, esse tipo de exposição também atinge pessoas adultas. “Nosso pior sonho é quando a gente sonha que tá pelado na frente de todo mundo. É uma exposição mesmo. E, de repente, tudo isso aparece, é exposto no whatsapp”. A especialista também lembra casos de mulheres famosas que foram expostas nas redes. “Acontece até com algumas atrizes, que acabam acionando advogados e tal. Mas elas são adultas, elas têm outros recursos. Mas isso, por uma adolescente acaba sendo bastante complicado”, completa.
Entenda o caso
Policiais investigam estudantes acusados de simular nudes de meninas
Policiais da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) já identificaram alguns dos estudantes suspeitos de usar fotos de pelo menos 20 meninas de 15 a 16 anos, publicadas por elas em redes sociais, para fazer montagens para que elas parecessem estar nuas e distribuí-las em grupos de whatsapp. Se confirmada a denúncia, os estudantes denunciados podem responder por atos infracionais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com pena de um a três anos e multa.
O Artigo 241C do ECA descreve como crime “simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual.” Assim, os suspeitos – que são estudantes do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental – poderão ser enquadrados como menores infratores.
Parte das meninas que tiveram seus corpos expostos nus, com uso de um aplicativo de inteligência artificial, estudam com os suspeitos numa classe do Colégio Santo Agostinho Novo Leblon, da Barra da Tijuca, e outras são amigas delas e estudam em outras escolas. Pais e responsáveis das vítimas procuraram a DPCA para denunciar.
Em nota, a Polícia Civil disse que faz diligências para esclarecer os fatos. “A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) instaurou procedimento para apurar os fatos. Todos os envolvidos estão sendo chamados para serem ouvidos na especializada. Diligências seguem para identificar a autoria do crime e esclarecer o caso.”