Na contramão do mundo inteiro, do próprio Ministério da Saúde e de seus aliados no Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro voltou a colocar a economia em primeiro lugar, em detrimento das vidas humanas. E isso um dia depois de o Brasil bater um novo e triste recorde, com 3.870 mortes em 24 horas – o que corresponde a 27% de todas as mortes diárias por Covid-19 hoje no mundo e mais do que o dobro de mortes registradas nos Estados Unidos.

“O Brasil tem que voltar a trabalhar. A fome está batendo cada vez mais forte na casa destas pessoas. Eu temo por problemas sociais gravíssimos no Brasil. Ficar em casa não é a solução para a pandemia. As pessoas querem trabalhar, está faltando comida”, disse o presidente nesta quarta-feira (31/3), ao convocar a população a “enfrentar com galhardia” essa pandemia e “ter fé em Deus’.

Novamente desafiando a ciência, Bolsonaro voltou a falar que a fome mata mais que o novo coronavírus e que as pessoas precisam ter sua liberdade de ir e vir respeitada. E ainda apelou para que governadores e prefeitos não adotem medidas mais restritivas para conter o avanço do Sars-Cov-2 e suas variantes.

Ao incitar trabalhadores a descumprir as orientações sanitárias e as regras adotadas em estados e municípios que enfrentam um colapso na saúde, Bolsonaro dá novamente demonstrações explícitas que lhe valeram o título de pior gestor da crise sanitária em todo o mundo. Alheio à dor de mais de 315 mil famílias que perderam seus entes queridos -, ele ignora que outros países adotaram medidas até mais restritivas das que vêm sendo implementadas aqui e hoje estão conseguindo controlar seus números.

Auxílio emergencial – Depois de três meses sem liberar um tostão para as famílias mais vulneráveis em meio à pandemia, Bolsonaro anunciou nesta quarta uma nova rodada do Auxílio Emergencial. Os valores do benefício, a ser pago a partir de 6 de abril, são de R$ 150 para quem vive sozinho; R$ 250 para famílias consideradas ‘normais’ e R$ 37 para a mulheres que são chefes de família. Serão quatro parcelas para 40 milhões de brasileiros – Nenhuma palavra de compaixão. “É um alento, [o valor do auxílio] é pouco, reconheço, mas é o quanto a nação pode dispensar para sua população”.

Falta de alinhamento nos discursos

Presidente Jair Bolsonaro, em anúncio sobre segunda rodada do Auxílio Emergencial (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)

Minutos antes da fala de Bolsonaro, durante o primeiro encontro do Comitê Nacional de Enfrentamento à Covid também no Palácio do Planalto, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, defendeu justamente o contrário, como manda a ciência. “As pessoas devem observar o uso de máscaras, é importante, fundamental, guardar distanciamento entre si. Se fizermos todas essas ações de maneira correta, teremos melhores resultados”, disse. Sem citar a palavra “lockdown” – que parece ter virado palavrão no vocabulário do governo -, disse que a população tem dificuldade em aderir a medidas mais duras, mas pediu que as pessoas mantivessem o distanciamento social durante o feriadão da Semana Santa.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, indicado como interlocutor junto aos governadores para construir um consenso em torno do combate à pandemia, defendeu a unidade entre União, estados e municípios. Disse que só há dois caminhos: unidade ou caos. Mas diante da falta de alinhamento nos discursos observada nesta quarta, o que podemos esperar é somente o caos. E cobrou que a assessoria de comunicação do presidente Jair Bolsonaro alinhasse o discurso. Mas não foi ouvido.

Minutos depois da fala de Queiroga, Pacheco e Lira, Bolsonaro fez o lamentável discurso, seguindo na direção contrária, criticando novamente o isolamento social e criando novo embate com governadores e prefeitos que impõem medidas mais restritivas, mesmo que impopulares, para defender suas populações. comparando erroneamente a um estado de sítio. 

Átila Iamarino: ‘Teremos surtos e surtos de Covid, apesar da vacinação’

Mas, afinal, em que mundo Bolsonaro vive? Como voltar ao trabalho sem vacina, sem UTI, sem oxigênio, sem kit-intubação? Nem covas hoje estão disponíveis em cemitérios para o grande número de pessoas que estão morrendo de Covid-19. “O presidente está nos mandando para a morte? O que mais precisa de terror para entender o que estamos vivendo?”, questionou a jornalista Miriam Leitão, em entrevista ao doutor em Microbiologia, Átila Iamarino, na Globonews.

Para o especialista, mesmo se o Brasil tivesse hoje 400 milhões de doses de vacinas à disposição, não resolveria o problema a curto prazo nada. Ele lembrou que o imunizante da Janssen, aprovado pela Anvisa nesta quarta para uso emergencial, é uma das quatro vacinas testadas no Brasil, mas o governo federal se recusou a comprar em 2020 e a entrega dessas doses só chega no segundo semestre.

Com as aglomerações, o Brasil pode criar novas variantes. Nosso futuro é previsível: o vírus não vai embora e o controle depende da ação do governo. Tem que haver uso de máscaras, distanciamento, readequação de hábitos. Caso contrário, teremos surtos e surtos de Covid, apesar da vacinação”, disse Átila Iamarino, em entrevista à Globonews.

Para evitar isso, ele afirma que o Brasil precisa de ação coordenada nacionalmente. “Mas o país não se mobiliza. Criou só agora um Comitê de Covid, mas não tem plano de combate, de testes. Só tem o PNI, com falhas porque não inclui, por exemplo, a população negra, que é a mais atingida”, criticou. “Hoje o critério único é a idade e agora a iniciativa privada quer furar a fila e vacinar funcionários. Dessa maneira, a gente não sai desse buraco”, avaliou o especialista.

Nova variante em SP – Ainda nesta quarta, o Governo de São Paulo anunciou que identificou uma nova variante em Sorocaba, parecida com a da África do Sul. Segundo Iamarino, a nova variante pode competir com a P1, identificada inicialmente no Amazonas e já espalhada por todo o Brasil. Segundo ele, as vacinas, mesmo as mais eficazes, não são nem serão suficientes para deter as novas variantes que continuarão a surgir. “Para isso, seria necessário imunizar mais de 90% da população e mais de 90% de eficácia”, comentou.

Compra de vacinas por empresas

A Câmara dos Deputados começou a discutir novo projeto de lei para permitir que empresas possam adquirir vacinas para imunizar seus funcionários e até familiares. Texto anterior, aprovado no início de março, previa que as empresas doassem 100% para o PNI – Programa Nacional de Imunização, do Sistema Único.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, defendeu que as empresas possam adquirir vacinas e ficar com metade dos estoques para aplicar em seus funcionários. A proposta não foi muito bem esclarecida. Afinal, permitir que a iniciativa privada assuma essa responsabilidade vai proporcionar que pessoas que tenham condições de pagar pela vacina sejam, mais uma vez, privilegiadas no país.

“Vacina é obrigação constitucional do SUS. É ao governo federal que cabe comprar vacinas”, disse a pneumologista Margareth Dalcolmo. Ela destacou que dar essa prerrogativa à iniciativa privada acentuaria a questão da desigualdade social no Brasil, num momento dramático de pandemia, como já alertaram várias sociedades médicas, contrárias à medida.

No entanto, isso não impede que futuramente as vacinas sejam oferecidas por clínicas de vacinação, como ocorre hoje com a vacina da gripe. “Neste momento, a iniciativa privada pode contribuir com logística. Precisamos vacinar muita gente e muito rápido, para interromper a cadeia de transmissão”, disse a médica, ao lembrar que já existe um movimento, liderado por Luiza Trajano (Magazine Luiza), para colaborar com a distribuição de vacinas em todo o país.

Cuidados durante o feriadão da Semana Santa

Até o momento, segundo Queiroga, os estados receberam cerca de 35 milhões de doses, das quais 13 milhões foram aplicadas. “Até sábado, nós vamos entregar mais 11 milhões de doses”, disse o ministro, que espera cumprir a meta de 1 milhão de doses aplicadas por dia em abril. “Dez países já compraram 75% das vacinas disponíveis. O mecanismo da OMS (Covax Facility) é que vai salvar a pátria”, disse Margareth Dalcolmo.

O ministro voltou a afirmar que a pasta não pretende adotar um lockdown nacional como uma resposta para conter a disseminação do vírus. “O Ministério da Saúde vai trabalhar fortemente para que não seja necessário o lockdown, mesmo assim, os nossos protocolos, não só em relação à conduta médica propriamente dita, mas em relações a outras questões [como] mobilidade urbana, transportes públicos, em parceria com outros ministérios, nós vamos discutir”, disse.

Ele apelou para que a população evite aglomerações, use máscaras e mantenha o distanciamento social para evitar o aumento dos casos de covid-19 durante o feriado. “Não há o que comemorar com a nossa sociedade tão fragilizada. [Vamos] usar as máscaras. Vamos começar, desde já, a adotar essas medidas sanitárias que são tão importantes quanto a vacina e as ações de assistência à saúde”, disse o ministro, durante audiência pública virtual das comissões de Seguridade Social e Família, e de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Com Agência Brasil

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