A pandemia do novo coronavírus tem trazido novas descobertas a cada dia. Todos sabemos que a Covid-19, doença causada pelo Sars-Cov-2, afeta principalmente o sistema respiratório. Mas passados alguns meses após o início da pandemia, a nova literatura médica mundial tem descrito um número considerável de casos em que há também o comprometimento das funções neurológicas do paciente.
A morte do jornalista Rodrigo Rodrigues esta semana no Rio de Janeiro, por causada por trombose venosa cerebral pela Covid-19, reforça as evidências sobre a gravidade da Covid-19 também no sistema nervoso central. Apesar de inúmeras pesquisas a respeito, pouco se sabe sobre a influência do vírus SARS Cov-2 nas células nervosas.
Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) confirmaram, por meio de experimentos feitos com cultura de células, que o novo coronavírus (Sars-Cov-2) é capaz de infectar neurônios humanos. Estima-se que 30% dos pacientes com Covid-19 apresentem algum tipo de sintoma no sistema nervoso. Porém, não se sabe ainda se esses distúrbios são causados pelo ataque direto do vírus, pela reação descontrolada do sistema imunológico em resposta a ele ou às duas coisas.
Neurocientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assinam um artigo, publicado na revista Trends in Neurosciences, chamando a atenção para o fato de que o sistema nervoso central pode ser afetado pela Covid-19, junto com uma série grande de publicações internacionais. Já há relatos que vão desde crises convulsivas, encefalite, além de outras manifestações decorrentes da evolução da doença causada pelo vírus, como a síndrome de Guillain-Barré.
Sintomas inespecíficos como dor de cabeça e tontura, além de implicações mais graves como alterações de consciência, crises convulsivas, acidentes vasculares cerebrais (AVC), incoordenação motora e fraqueza muscular, fazem parte do panorama clínico da doença.
Coronavírus pode causar danos neurológicos irreversíveis
De acordo com Ronaldo Abraham, diretor científico da Associação Paulista de Neurologia (APAN), é possível dizer que o novo coronavírus tem afinidade e atração pelo sistema nervoso. “O vírus age no aumento da expressão de um receptor de invasão celular, o ACE2 (enzima conversora da angiotensina), responsável por facilitar o processo de infecção das células pulmonares. O ACE2 existe em todo o organismo, sendo abundante no sistema nervoso”, explica o neurologista.
Um dos sinais mais marcantes é a perda do olfato, que provavelmente indica o caminho traçado pelo agente invasor até as funções neurológicas. Complicações mais graves nesse sentido poderão contribuir para a ampliação das taxas de mortalidade, assim como o desenvolvimento de algumas deficiências (sequelas).
Os estudos a respeito da interseção entre a Covid-19 e a Neurologia começam a se avolumar na literatura, e isso trará um conhecimento cada vez maior”, aposta dr. Abraham. No Brasil, os médicos começam a se organizar na tentativa de unificar protocolos e agrupar as manifestações neurológicas que aqui ocorrerem. “Felizmente, como não temos tantos casos quanto outros países, ainda não há material suficiente para publicação de novas pesquisas. O que nós, neurologistas, estamos fazendo é auxiliar na divulgação de informações e orientações”, afirma o especialista.
Covid-19 pode afetar sistema nervoso central
Segundo o patologista Carlos Senne, presidente do Senne Liquor Diagnóstico, centro de referência no Brasil em coleta e análise de líquido cefalorraquiano, observa-se aumento no número de pacientes que, após desenvolver a Covid-19, têm apresentado sintomas neurológicos como, por exemplo, cefaleia, fadiga generalizada, crises convulsivas, além de outras manifestações decorrentes da evolução da doença causada pelo vírus, como a síndrome de Guillain-Barré.
A encefalite, que resulta da inflamação do parênquima cerebral e pode ser causada por infecções ou condições auto-imunes, já foi descrita por estar associada à Covid-19. Uma recente publicação associa a encefalopatia hemorrágica aguda necrosante com a doença. Nessa publicação os pesquisadores fazem uma alerta aos médicos e radiologistas em relação aos pacientes que apresentam a Covid-19 e estado mental alterado.
“Em casos onde o paciente apresenta esses sintomas, é necessária investigação profunda utilizando diagnóstico por imagem, preferencialmente ressonância magnética, junto com análise laboratorial do líquido cefalorraquiano ou liquor. Essa avaliação é fundamental para o diagnóstico de doenças que atuam no sistema nervoso central”, explica. Testes moleculares como PCR em tempo real realizado no líquor, auxiliam no diagnóstico e detecção da presença de agentes infecciosos causadores da Covid-19.
Diagnóstico
O procedimento mais utilizado para fazer a coleta do liquor é através da punção na região lombar. A coleta do liquor realizado por médico especialista, traz benefícios, minimiza riscos garantindo a segurança do paciente. “Como a evolução dos quadros geralmente é rápida, a agilidade do diagnóstico para o início do tratamento adequado é fundamental para evitar sequelas neurológicas irreversíveis e salvar vidas”, alerta o patologista clínico, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial.
O exame é realizado em equipamentos de alta tecnologia, como é o caso do sistema BD MAX™. Trata-se de uma plataforma automatizada que realiza extração de ácidos nucleicos e PCR em tempo real. Com automação total do processo, o fluxo é padronizado, reduzindo chance de erros e com liberação de resultados mais rápidos e os erros diminuem. Nele é possível executar testes simultaneamente para até 24 tipos de amostras de várias síndromes e fornecer os resultados em até quatro horas e meia.
A solução permite otimizar o fluxo de trabalho das equipes envolvidas com o diagnóstico, diminui o tempo de resposta para tomada de decisão na escolha do tratamento apropriado, sendo possível reduzir o custo total de tratamento do paciente”, pontua Senne.
Alerta para importância de exame que detecta complicações
A Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) alerta sobre a importância do exame do Líquido Cefalorraqueano em casos de Covid-19. O novo coronavírus tem como sintomas característicos febre, tosse e dificuldades respiratórias. Alguns pacientes evoluem para o quadro de pneumonia, podendo culminar com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-Cov-2).
Alguns estudos internacionais resolveram testar se, assim como outros vírus respiratórios, o SARS-Cov-2 também poderia causar complicações neurológicas. O que se confirmou no primeiro relato de manifestações neurológicas relacionadas à Covid-19, em fevereiro de 2020, quando Mao e cols. publicaram na China uma série retrospectiva de 214 pacientes internados, dos quais 78 (36,4%) apresentavam sintomatologia neurológica.
As alterações de sistema nervoso central (SNC) ocorreram em 24,8% dos casos, sendo as mais frequentes tontura (16,8%) e cefaleia (13,1%). As manifestações mais comuns de sistema nervoso periférico (SNP), que ocorreram em 8,9%, foram hipogeusia e hiposmia. Alterações de enzimas musculares foram encontradas em 10,7%. Neste estudo não foram analisados dados de neuroimagem nem liquóricos.
Ao longo de março de 2020, surgiram relatos de possíveis casos de encefalopatia e/ou encefalite associadas à Covid-19. Sun e Guan relataram que um paciente atendido em Beijing que teve a doença identificado em amostra de LCR. Poyiadji e cols. Descreveram caso de paciente com síndrome respiratória aguda e sintomas neurológicos, cuja ressonância de crânio mostrou lesões hemorrágicas talâmicas bilaterais, em regiões mesiais temporais e subinsulares, compatíveis com encefalopatia necro-hemorrágica. O LCR não foi testado para Covid-19 nem para o vírus HSV.
Morigushi e col. relataram caso de provável encefalite associada à Covid-19, em paciente que iniciou com crises epilépticas refratárias após 9 dias de sintomas respiratórios. A ressonância mostrou lesão compatível com encefalite ou esclerose mesial temporal. O LCR tinha 32cm H20 de pressão de abertura, 12 células/mm3, sendo 10 linfócitos e 2 polimorfonucleares e PCR positivo para Covid-19. Não há outros dados liquóricos e o LCR não foi testado para outros vírus.
Os estudos mencionados indicam a possibilidade de uma associação entre o COVID-19 e o SNC – Sistema Nervoso Central. Tal associação foi demonstrada com outros Coronavírus. Tanto o SARS-CoV quanto o MERS-CoV foram identificados em tecido cerebral, dentro de neurônios. O SARS-CoV e Covid-19 compartilham o mesmo receptor para entrada nas células, o receptor de enzima conversora de angiotensina (ACE-2), que está presente em vários tipos celulares, incluindo neurônios. Foi demonstrada experimentalmente a transferência transináptica destes vírus. Portanto, embora os relatos sejam poucos, é possível que pelo menos em alguns casos, o COVID-19 atravesse a barreira hematoencefálica e penetre no SNC, causando lesão neuronal.
Segundo Carlos Senne, ex-presidente da SBPC/ML, como o paciente crônico é entubado, em estado de sedação, a capacidade de análise do seu lado cognitivo fica muito comprometida e pode “mascarar” um estado que merece a atenção da equipe médica.
É necessário conhecer melhor a relação entre o COVID-19 e o SNC. Isso só será possível através da investigação dos casos com manifestações neurológicas através de neuroimagem, preferencialmente ressonância, e LCR, incluindo a investigação da imunoprodução intratecal (para conhecermos a resposta imune ao vírus no SNC) e PCR para COVID-19 e outros vírus neurotrópicos. A inclusão de painel de vírus é importante para afastar diagnósticos diferenciais e melhor caracterizar a relação causa efeito entre o COVID-19 e o quadro neurológico. Por isso a recomendação de realizar PCR em LCR para meningites e meningoencefalire.
Impactos em longo prazo nos casos da doença de Parkinson
Até 2040, a doença de Parkinson (DP) deve atingir mais de 14 milhões de casos em todo o mundo. O cenário pode ser ainda mais agravante, uma vez que cientistas do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) destacam que a pandemia da covid-19 poderia contribuir, por diferentes formas, com o crescimento exponencial da doença e consequentemente nos impactos econômicos e sociais relacionados.
Em artigo publicado pelo periódico científico Journal of Parkinson’s Disease (JPD), os pesquisadores discorrem que as potenciais manifestações neurológicas a longo prazo da infecção por covid-19 ainda são desconhecidas. No entanto, sintomas clínicos como perda de olfato, paladar e encefalite sugerem que o vírus Sars-CoV-2 pode ter a capacidade de invadir o sistema nervoso central.
“O aspecto interessante da hipótese da via olfativa para a neuroinvasão do Sars-CoV-2 é a presença potencial do vírus no tronco cerebral, que contém os núcleos respiratórios responsáveis pelo ritmo da respiração”, explica a autora sênior Carla Alessandra Scorza, professora da Disciplina de Neurociência do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo. Ela cita estudos que descobriram que pacientes com a forma grave da infecção por covid-19 eram mais propensos a desenvolver doença cerebrovascular aguda, bem como estudos que encontraram evidências de encefalopatia e hemorragia intracerebral em exames cerebrais de pacientes com a infecção.
As primeiras evidências de uma ligação potencial entre o novo coronavírus e a DP decorrem de uma epidemia de encefalite letárgica após o surto de influenza em 1918. Na ocasião, quase todos os pacientes que tiveram um surto de encefalite letárgica desenvolveram parkinsonismo pós-encefalítico, uma condição que se assemelhava ao quadro clínico da DP. A professora Scorza observa que, embora as evidências que ligam esse surto de influenza à patogênese do parkinsonismo tenham sido correlacionais, isso levou a novas investigações. Alguns dos principais sintomas motores e características histológicas da DP têm sido associados ao vírus influenza H1N1 e a outros vírus, como o Coxsackie, do Nilo Ocidental, da encefalite japonesa B e o HIV.
Embora os autores reconheçam que são necessárias mais pesquisas para entender o papel dos vírus na patogênese da DP, eles acreditam que os resultados sugerem que os vírus neurotrópicos e não neurotrópicos podem contribuir para o início da DP, diretamente pela presença física do vírus no sistema nervoso central, ou indiretamente, como, por exemplo, induzindo um processo inflamatório duradouro no cérebro.
Além disso, estudos anteriores in vitro descobriram que outros coronavírus humanos podem permanecer latentes nas células sanguíneas e, portanto, podem induzir infecções no sistema nervoso central posteriormente. Embora os sinais clínicos de parkinsonismo e DP não tenham sido associados a surtos anteriores de coronavírus, anticorpos para coronavírus foram detectados em amostras de líquido cefalorraquidiano em pessoas com DP.
Impactos econômicos e sociais
Os cientistas também especulam se os sobreviventes da covid-19 poderiam representar uma fração desproporcionalmente grande da futura população de pacientes com DP, levando a maiores impactos socioeconômicos. Embora as evidências ainda sejam inconclusivas, as pessoas que nasceram ou eram jovens na época do surto de influenza de 1918 tiveram um risco duas a três vezes maior de desenvolver a DP do que aquelas nascidas antes de 1888 ou após 1924.
O co-editor-chefe do Journal of Parkinson’s Disease (JPD), Patrik Brundin, do Instituto Van Andel, comenta: “Embora seja obviamente muito cedo para saber quais serão as consequências a longo prazo da covid-19 no cérebro, as comunidades de pesquisa em psiquiatria clínica e neurologia definitivamente precisam estar vigilantes no acompanhamento daqueles pacientes que se recuperaram de covid-19 moderado e grave para saber dos possíveis impactos futuros. Além disso, estudos realizados em animais experimentais indicam que outros vírus infiltrados no material genético (RNA) estão ligados aos aumentos acentuados da alfa-sinucleína no cérebro, acrescentando uma preocupação adicional a respeito dos efeitos a longo prazo do Sars-CoV-2 no cérebro “.
Observando que a DP já é o distúrbio neurológico de mais rápido crescimento, sustentado por uma população em envelhecimento contínuo, Daniella Balduino Victorino, autora e doutoranda do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), adverte: “Como outras pandemias globais no passado, a pandemia de covid-19 provavelmente durará um período limitado. No entanto, já é hora de reconhecermos que a pandemia de DP não vai desaparecer tão cedo.
Toda a ciência de ponta que busca vacinas e terapias viáveis contra a infecção por Sars-CoV-2 / covid-19 foi feita graças a uma tremenda quantidade de esforços científicos iniciais. No ano passado, por exemplo, enquanto o NIH destinou mais de US ﹩ 6 bilhões em pesquisas sobre doenças infecciosas, foram gastos menos de US ﹩ 300 milhões em pesquisas sobre DP. Os avanços nos estudos em DP dependem da destinação de mais recursos para esse campo de pesquisa”.