O 8 de março é um dia de homenagens, mas acima de tudo, de luta. Ainda hoje, mulheres enfrentam mais obstáculos na vida profissional: disparidades salariais, assédio e dificuldade em acessar os principais cargos de chefia. E não é diferente no mundo da Ciência e da Saúde, onde as mulheres ainda enfrentam muitos desafios.
Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das principais instituições científicas do país, as mulheres já são a maior parte da força de trabalho. Segundo dados da Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas (Cogepe) de 2021, dos 4.653 profissionais, 56,3% são mulheres e 43,7% homens. Dentre os 4.926 trabalhadores terceirizados, 55,6% são do sexo feminino e 44,4% do sexo masculino. Apesar da diferença expressiva no corpo de trabalho, homens ainda predominam na alta gestão.
“Nesta instituição, que é formada em sua maioria por mulheres, elas têm uma centralidade muito grande e já constituem mais 60% dos estudantes. Na pandemia vimos o destaque que as mulheres tiveram no desenvolvimento tecnológico, na assistência, na pesquisa, na divulgação científica e em todos os setores, desempenhando um forte protagonismo”, afirma a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima.
Desigualdade racial também é alta
Analisando-se dados étnico-raciais é possível extrapolar ainda mais as desigualdades presentes na sociedade. Segundo o IBGE, a população brasileira é formada por 56% de pessoas negras, entre pretos e pardos, mas até que haja equidade de acesso profissional, há um longo caminho.
Na Fiocruz, 68,2% (3.175) dos servidores se autodeclaram brancos. Isso significa que, apesar de serem maioria na população, pretos e pardos somam apenas 23,3% (1.084) dos servidores da Fundação. Pessoas que se declararam amarelas ou indígenas são 1,8% (83).
Com o objetivo de fortalecer os temas étnico-raciais e de gênero na Fundação, atualizar e orientar políticas e ações, seja nas relações de trabalho, no atendimento ao público ou na produção e popularização do conhecimento, foi criado, em 2009, o Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz.
Em 2018, o grupo passou a ser gerido por uma coordenação colegiada e composto por representantes de diferentes unidades e escritórios da instituição, que se reúnem, regularmente, a fim de contribuir para o planejamento e implementação de ações pela valorização da diversidade.
Uma das medidas adotadas a partir da implementação dos Comitês (Pró-Equidade de Gênero e Raça e Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência) foi a implantação de ações afirmativas – políticas públicas voltadas para grupos que sofrem discriminação étnica, racial, de gênero ou religiosa.
O intuito era o de promover a inclusão socioeconômica de populações historicamente privadas do acesso a oportunidades, como as cotas raciais, por exemplo. Tais políticas, fundamentais para a equidade nos espaços públicos, foram potencializadas nos últimos dois anos a partir de reuniões dos comitês com a Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação (Vpeic/Fiocruz), resultando na Portaria 491, de setembro de 2021.
Mulheres em ação na pandemia
A Fiocruz deu início às atividades em homenagem às mulheres ainda em 11 de fevereiro, quando se comemorou o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. Nesta terça-feira (8/3) o Dia Internacional das Mulheres, foi marcado pelo debate Mulheres em ação na pandemia, que reuniu, em uma plataforma online, pesquisadoras, gestoras e estudantes, que apresentaram suas trajetórias e conquistas e comentaram os desafios que ainda persistem para milhões de mulheres em todo o mundo.
Em vídeo gravado e exibido logo no início do debate, Nísia Trindade sublinhou que mulheres e homens precisam estar juntos na luta por uma vida com mais equidade e democracia. “Este é um dia em que celebramos o empenho por um mundo com mais igualdade e lembramos as lutas pioneiras do passado que nos trouxeram até aqui”.
Para a vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Vieira Machado, o 8 de março serve para recordar as lutas e vitórias e apontar as muitas injustiças que teimam em permanecer. “Há ainda fortes desigualdades de gênero, raça, classe e também na questão campo/cidade. Todas essas barreiras limitam as pessoas, em especial as mulheres, e impedem o desenvolvimento de seus potenciais”.
Segundo ela, na Fiocruz muito já foi conquistado, mas ainda há muito o que fazer e avançar. Cristiani fez uma homenagem às trabalhadoras do SUS, que estiveram na linha de frente contra a pandemia de Covid-19. Ela também lembrou o acúmulo de serviços das mulheres e dos índices de violência doméstica, que aumentaram após a pandemia.
Pretas e pobres são as mais excluídas
O evento, mediado pela coordenadora de Divulgação Científica da Fiocruz, Cristina Araripe, ressaltou a luta diária e os enormes desafios que as mulheres ainda enfrentam. A pesquisadora e professora Laís Costa, integrante do Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência e cofundadora do AcolheDown, destacou as dificuldades vividas pelas pessoas nessa condição. “Existem muitos desafios, que são ainda maiores para as mulheres com deficiência. São as mais excluídas, sobretudo as pretas e pobres”.
A fisioterapeuta e doutoranda em Saúde Pública Elizabeth Leite Barbosa, representando a Associação de Pós-Graduandos da Fiocruz (APG), disse que o dia é simbólico e necessário e traz à pauta temas como as jornadas duplas ou triplas de muitas mulheres pesquisadoras, a questão das bolsas defasadas e o problema vivido por muitas mulheres, em especial as negras, indígenas e LGBTI+ não apenas de entrar nas instituições de ensino mas também de nelas permanecer, tendo em vista os muitos desafios.
Fátima Loroza, do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, ressaltou que “a luta deve ser pela promoção da igualdade, da aceitação da diversidade de gênero e pela pluralidade do povo brasileiro”. Ela disse que o Comitê tem debatido e apoiado as políticas afirmativas na Fundação e está na linha de frente da implantação da Política de Equidade de Gênero e Raça. “As barreiras são muitas, mas juntas conseguimos enfrentá-las”.
A coordenadora-geral de Gestão de Pessoas (Cogepe/Fiocruz), Andréa da Luz, comentou que a luta não de um grupo ou de alguns grupos, mas de todas as mulheres. “Tivemos êxitos, mas existe ainda um longo caminho pela frente na superação de preconceitos e discriminações variados, em todos os níveis. Precisamos de mais ações inclusivas em todas as instituições e empresas. É importante celebrar os desafios que foram superados, mas continuar unidas para enfrentar as barreiras que ainda estão por aí”.
Desigualdades sociais na área de Saúde
A fisioterapeuta Roberta Correia, do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), fez um breve relato sobre mulheres ativistas de décadas passadas, como Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Rosa Parks, a freira Dorothy Stang, Maria da Penha, Malala Yousafzai e Marielle Franco. Ela também apresentou uma pesquisa que ela conduziu, sobre como as desigualdades sociais impactam negativamente diferentes grupos de trabalhadores da saúde no Rio de Janeiro.
“A pandemia acirrou as desigualdades num país que já tinha uma imensa desigualdade. Se a desigualdade é o ‘vírus’ mais letal do mundo, é provável que a solidariedade seja o antídoto e precise ser incorporada às políticas sociais, econômicas, de saúde, educação, ambientais e de afeto”, explicou ela.
A enfermeira Hamyla Trindade, da Fiocruz Amazônia, tocou na questão da discriminação sofrida pelas mulheres indígenas. “Essa repressão vem desde os tempos da colonização e mesmo no Amazonas, um estado com forte presença de indígenas e imensa cobertura florestal, há muito preconceito. Somos cidadãs de segunda classe”, pontuou Hamyla, que faz parte da Comissão Nacional de Enfermagem de Minorias, que também atua nas fronteiras, junto aos imigrantes.
Em seguida interveio a estudante de Medicina Ana Luísa Ferreira, que atua em um comitê comunitário vinculado ao Laboratório de DST/Aids do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz). Ela relatou as discriminações sofridas por ser mulher trans e apresentou dados sobre a transfobia no Brasil.
“Na sociedade capitalista em que vivemos faltam oportunidades para as trans. Cerca de 90% vivem da prostituição por total falta de outras perspectivas. E nessa sociedade, quem não tem dinheiro não vive”. Ela também citou a questão do uso dos pronomes pessoais como uma batalha diária.
Meninas na Ciência
Estudantes também falaram no evento. Duda Bento, de 19 anos, que participou da Agenda Laranja do IFF/Fiocruz e dos eventos do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, a partir do qual as oportunidades se abriram, se prepara para começar a cursar Enfermagem na Uerj.
As estudantes Victória e Isabelle, ambas de 16 anos e alunas do Colégio Clóvis Monteiro, em Higienópolis, participaram do HackGirls, uma maratona para 60 meninas das escolas públicas do Rio de Janeiro que fez parte da programação Mais Meninas na Ciência, da Fiocruz.
Durante a maratona, as equipes pensaram e propuseram soluções tecnológicas para o enfrentamento de desafios que fazem parte de suas realidades. Elas vão desenvolver um aplicativo em conjunto com a equipe do Laboratório de Inovação do Instituto de Ciência e Tecnologia em Biomodelos (ICTB/Fiocruz).
Foi apresentado um vídeo de 6 minutos com depoimentos de pesquisadoras, gestoras, estudantes, funcionárias e tecnologistas de diversas unidades e setores da Fiocruz. A última atividade foi a apresentação de um outro vídeo, em homenagem às trabalhadoras e alunas da Fiocruz. A mensagem foi: “Somos mulheres, somos Fiocruz”. Em diversas unidades da Fundação pelo país, trabalhadoras também se mobilizaram e fizeram fotos para marcar a data.