O número de denúncias de violações de direitos contra crianças e adolescentes vem subindo consideravelmente e uma delas chama a atenção: a violência sexual. Segundo o relatório do Disque 100, serviço de atendimento telefônico, em 2017, registraram-se 84 mil relatos, desses, mais de 20 mil são casos de violência sexual. A maioria das denúncias cita mais de um tipo de violação e mais de uma vítima, contabilizando 130 mil crianças e adolescentes.
Mas e as outras tantas vítimas de abuso e exploração que ainda são desconhecidas e sofrem em silêncio? O mês de maio é nacionalmente dedicado ao combate ao abuso sexual de crianças e à prostituição infantil, uma questão de saúde pública e de violação dos direitos humanos. A proposta é, além de prevenir, cada vez mais lidar de forma mais eficaz com o problema.
Com experiência no assunto, a psicóloga clínica Raquel Veloso explica que o ideal é priorizar o acolhimento e tratamento de toda a família da criança. “A violência sexual sofrida por uma criança ou adolescente acarreta vivências traumáticas e a família tem papel primordial para o restabelecimento emocional da criança. Além disso, a responsabilização do autor é um fator que favorece a melhora da vítima, contribuindo para que esta seja acredita em seu sofrimento”, diz.
A especialista alerta que abordar o tema com a vítima em caso de suspeita não é tarefa fácil e recomenda uma equipe multidisciplinar para a atuação. Entretanto, mesmo sem conhecimentos técnicos da psicologia, os responsáveis podem ficar atentos a alterações no comportamento ocorrida repentinamente. Segundo Raquel, as crianças, sobretudo as menores, poderão apresentar dificuldades em manifestar verbalmente o seu sofrimento devido às ameaças ou até relação com o autor.
Apenas 16% dos agressores são desconhecidos da vítima
Apenas 16% dos agressores de violência sexual contra crianças e adolescentes são desconhecidos das vítimas, segundo levantamento realizado pela Ferba/Giusti para a Childhood Brasil, com base em reportagens veiculadas na imprensa brasileira sobre o tema em 2018.
Familiares aparecem como os maiores agressores (37%), na somatória de casos praticados por padrasto, pais, mães, avós e outros parentes. Individualmente, com 35% das incidências, atos de abuso sexual praticados por “conhecidos” da vítima lideram.
O Brasil trabalha hoje com dados descentralizados entre saúde, judiciário, segurança pública e conselhos tutelares, entre outros, sendo a principal ferramenta as estatísticas do Disque 100, canal de denúncias oficial do governo federal para qualquer violação de direitos humanos.
A existência de um mapeamento sólido foi apontada recentemente pelo “Out of the Shadows Index” (Índice Fora das Sombras, em português), relatório que mostra como 40 países ao redor do mundo respondem à prevenção e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, uma importante ferramenta para o enfrentamento do tema.
Criado pela revista “The Economist”, o estudo que conta com o apoio da World Childhood Foundation, da Oak Foundation e da Carlson Family Foundation, atribuiu ao Brasil ineficiência ao tópico (Data collection: prevalence).
Apesar dos avanços conquistados nos últimos 20 anos, período em que a Childhood Brasil atua no país na proteção à infância e adolescência contra a violência sexual, entendemos que o tema ainda é tratado como um tabu na sociedade e isso contribui para uma grande subnotificação de casos. Independentemente disso, entendemos que é necessário a integração dos dados existentes – saúde, judiciário, segurança e outros – para uma melhor definição de políticas públicas. Fazer um recorte com dados publicados em reportagens visa chamar a atenção para essa questão e contribuir no enfrentamento dessa grave violação dos direitos humanos”, diz Roberta Rivellino, presidente da Childhood Brasil.
Meninas são as principais vítimas de violência sexual
O estudo aponta que as meninas são as principais vítimas de violência sexual (76%) dos casos. Já os principais locais apontados como cenário do abuso são, pela ordem: casa da vítima (38%), casa do agressor (18%), não definido na reportagem (19%) e local público (14%).
Outros locais citados pela imprensa foram escola, internet, trabalho, igreja, hospital e motel. A região que concentra o maior número de casos é o Sudeste (27%), seguido por Nordeste e Centro-Oeste (21%), Norte (17%) e Sul (14%).
Os cinco estados com maior incidência de notícias relatando abusos sexuais são: São Paulo (117 reportagens sobre abuso), Minas Gerais (69), Mato Grosso do Sul (74), Mato Grosso (71) e Paraná (67).
O levantamento analisou 933 reportagens veiculadas no online e impressos, entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2018, sendo descartadas as que tratavam do mesmo caso. A amostra inclui casos em averiguação pelas autoridades ou denúncias, não podendo-se afirmar que foram efetivamente praticados pela pessoa indicada.
Com base nas informações publicadas, foram tabuladas indicações como: perfil do agressor; local; unidade federativa; gênero e idade da vítima entre outros. Quando não havia informações suficientes para uma classificação, o item foi assinalado como Não Definido.
O papel da imprensa é fundamental para colocar luz ao tema e o Brasil, como foi relatado pelo ‘Out of the Shadows Index’, tem registrado iniciativas muito interessantes quando falamos do trabalho da mídia em levar informação e prestação de serviço relevantes sobre a causa para a população”, conclui Roberta.
Casos de violência |
2014 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
Agressão Sexual |
260 |
247 |
292 |
317 |
329 |
Agressão Física |
54 |
59 |
83 |
81 |
70 |
Agressão Psicológica |
4 |
6 |
6 |
1 |
3 |
Negligência |
52 |
89 |
142 |
172 |
163 |
Outros |
8 |
14 |
10 |
36 |
21 |
Total |
378 |
415 |
533 |
607 |
586 |
COMO RECONHECER OS SINAIS
A estratégia é observar, pois os sinais de sofrimento psíquico poderão ser expressos em distúrbios de sono (terrores noturnos) e alimentação (como anorexia e bulimia), agressividade, crises de choro constantes, episódios de xixi na cama mesmo após superado anteriormente, baixa autoestima, queda no rendimento escolar ou dificuldades importantes de aprendizado, isolamento social, além de somatizações no corpo como constantes dores de cabeça.
A criança ainda pode possuir uma importante inquietação ou querer evitar no contato de determinado sujeito ou situação, como por exemplo, ir à casa de determinada pessoa. Além disso, a manifestação de comportamentos hipersexualizados precocemente poderão ser assinaladores que o infante esteja sendo exposto à violência sexual”, lista a psicóloga.
Raquel Veloso ainda alerta para a condução dos desdobramentos após da notícia de violência sexual e de como isso pode influenciar negativamente no futuro da vítima, podendo ocasionar suicídio, distúrbios e até nas escolhas para parceiros com potencial para fazer o mesmo com uma nova geração.
“A criança não pode ser desacreditada no seu sofrimento ou esta poderá terá prejuízos na sua capacidade de percepção da realidade, logo, os vínculos de confiança nos adultos e no meio em que vive são significativamente prejudicados”, explica.
Existem pesquisas científicas que apresentam diversas desordens emocionais em pacientes expostos a situações de violência sexual. Entre tais desordens estão: vivências depressivas, maior risco de suicídio, fobias, ansiedade generalizada, distúrbios alimentares, prejuízos na maturidade sexual (impossibilidade de ter prazer na relação sexual), bloqueio sexual, promiscuidade ou prostituição, agressividade extrema, uso abusivo de drogas, entre outros.
Além disso, a experiência clínica demonstra que mulheres que foram vítimas na infância poderão apresenta dificuldades em proteger seus filhos, e até mesmo, fazer (inconscientemente) escolhas amorosas por homens agressores”, finaliza a especialista.
DICAS DE PREVENÇÃO
Neste Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18 de maio), o ChildFund Brasil, agência humanitária internacional de proteção e assistência a crianças, adolescentes, jovens e famílias em situação de pobreza, traz algumas dicas de prevenção ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Esse trabalho é feito com as crianças na tecnologia social: “Brincando nos fortalecemos para enfrentar situações difíceis”.
_Converse com a criança sobre as partes íntimas do corpo: As crianças precisam saber nomear corretamente as partes do corpo e identificar o que é íntimo, para assim, poderem relatar aos pais quando algo fora do comum acontecer.
_Explique sobre os limites do corpo: Ensine a criança a não permitir que ninguém toque as suas partes íntimas, ou ainda, que ela não toque nas partes íntimas de nenhuma pessoa, seja ela conhecida ou desconhecida.
_Incentive a criança a conversar com você: É preciso que o seu filho se sinta seguro para lhe contar qualquer coisa, inclusive uma situação de abuso. Muitas vezes, os abusadores pedem às crianças para manterem o ocorrido em segredo, seja ameaçando-a ou de maneiras lúdicas.
_Relação de auto estima com o corpo: Estimulem que os adolescentes e jovens mantenham uma relação saudável com o seu corpo. Explique que eles não precisam se sujeitar a situações desagradáveis e desconfortáveis por insegurança ou medo de não serem aceitos.
_Identifique os possíveis sinais de um abuso: Embora não seja fácil notar os sinais físicos de um abuso sexual, é possível que a criança tenha alterações no seu comportamento, como: irritação, ansiedade, dores de cabeça, alterações gastrointestinais frequentes, rebeldia, raiva, introspecção ou depressão, problemas escolares, pesadelos constantes, xixi na cama e presença de comportamentos regressivos (por exemplo, voltar a chupar o dedo). Outro sinal de alerta é quando a criança passa a falar abertamente sobre sexo, de forma não-natural para a sua idade, física e mental.
_Denuncie! No caso de qualquer suspeita de abuso ou exploração sexual infantil, não hesite em realizar uma denúncia o mais rápido possível. O Disque 100 é o canal de denúncias criado pela Secretária de Direitos Humanos está preparado.
Agenda Positiva
Hospital pediátrico promove campanha
Em 2018, o Pequeno Príncipe, maior hospital pediátrico do Brasil, que faz parte da rede de proteção à criança e ao adolescente, recebeu 586 crianças vítimas de algum tipo de violência e, em 76% desses casos, elas foram praticadas dentro da própria casa ou na rede intrafamiliar. A violência sexual corresponde a 56% dos casos que vitimam, em sua maioria (73%), as meninas.
Até os sete anos de idade as crianças ainda não entendem ao certo os sentidos figurados; estão exercitando essa linguagem, por isso, devemos desmistificar a ideia de que o agressor é um monstro. Por vezes, a dificuldade da denúncia pode estar atrelada a isso – como o tio querido por toda a família é um monstro? Como o padrasto tão carinhoso com a mãe é um monstro? O primo que promove os churrascos familiares pode ser um monstro?”, aponta a psicóloga Daniela Prestes, do uma das responsáveis por atender a crianças e adolescentes vítimas de violências no hospital.
As marcas da infância que são levadas para a vida
Um bebê de 10 dias deu entrada no Hospital Pequeno Príncipe com traumatismo craniano. As causas poderiam ser muitas; mas ele faz parte dessa estatística: é a criança mais nova recebida em 2018 vítima de violência física. A de violência sexual tinha três meses!
É um fato: 66% dos casos de violências atendidos na instituição ocorrem antes dos seis anos de vida. Isso significa marcar a primeira infância com traços de crueldade que só podem ser revertidos com investimento na recuperação social e psíquica dessa vítima.
Dependendo da idade, as crianças não sabem se comunicar verbalmente e, por isso, é de extrema importância que as pessoas próximas percebam mudanças de comportamento, marcas pelo corpo ou indícios de que ela está sofrendo algum tipo de agressão.
Muita gente acha que os pais são ‘donos’ da criança. Mas isso não é verdade. É responsabilidade de toda sociedade proteger estas crianças e adolescentes”, lembra a psicóloga.
Autoagressão pode estar ligada a outras violências
Quando uma criança ou um adolescente sofre algum tipo de violência, ela pode perder a percepção da construção de valores e da maneira que lida com as dores. O Pequeno Príncipe, recebe, ano a ano, cada vez mais adolescentes que praticam a autoagressão (automutilação).
Além de questões ligadas ao pertencimento a algum grupo ou depressão, por exemplo, esse escape para a dor de se automutilar ou modificar o próprio corpo pode estar ligado a uma desestrutura vivida pelos meninos e meninas.
A violência contra a criança e o adolescente é crescente. Ou seja, pode começar com uma humilhação e passar ao terrorismo psicológico; ir de denegrir a imagem à violência física. Quando essa criança chega à adolescência e passa a fazer a apropriação do próprio corpo, ela pode ter dificuldade de externar e verbalizar esses sentimentos antes subjetivos e então, pode sim comunicar esse sofrimento de diversas maneiras. É preciso interromper esse ciclo e lembrar que, negligenciar isso também é um tipo de violência”, pondera Daniela.
Hospital promove a ‘Campanha Pra Toda Vida’
O Hospital Pequeno Príncipe, que completa 100 anos em outubro, trabalha para combater os casos de agressões diversas contra meninos e meninas, e, desde a década de 1970, mobiliza a sociedade na luta contra a violação dos direitos do público infanto-juvenil.
Além de fazer parte da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência, realiza há 13 anos a Campanha Pra Toda Vida – A violência não pode marcar o futuro das crianças e adolescentes.
A iniciativa, inclusive, foi contemplada com o Prêmio Criança 2016, concedido pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente a projetos inovadores voltados à Primeira Infância.
A meta é reforçar a ideia de que o cuidado e a proteção das crianças e adolescentes são de responsabilidade de toda a sociedade, e que em uma atuação conjunta é possível transformar a vida de cada um deles.
Além disso, a instituição destaca a importância da denúncia, que pode ser feita à prefeitura de Curitiba, pelo telefone 156; ao Governo do Estado, pelo número 181; e ao governo federal, pelo Disque 100.
Paralelamente, o Pequeno Príncipe mantém a constante capacitação e atualização dos profissionais que atuam no atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência. E lembra que toda a sociedade é responsável pelos meninos e meninas vítimas de violências psicológica, física e sexual.
Evento enfatiza prevenção
Há 46 anos o dia 18 de maio foi instituído como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data serve para relembrar e discutir a importância do tema, o ChildFund Brasil, agência humanitária internacional de proteção e assistência a crianças, adolescentes, jovens e famílias em situação de pobreza, realiza o evento gratuito: “Prevenção: Cuidado de quem ama – Enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil”.
O evento aberto aos pais, educadores, estudantes e comunidade acontecerá no próprio dia 18, sábado, das 9h às 12h, no auditório do Museu Inimá de Paula. Serão discutidos os fatores de risco, sintomas e respostas para a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Para enriquecer a discussão, o ChildFund Brasil preparou uma programação ampla. Além de apresentações e mesa redonda, incluindo a participação de representantes do Ministério Público e do Conselho Tutelar, haverá uma palestra abordando os prejuízos da violência sexual no desenvolvimento infantil.
A explanação será realizada por um dos nomes mais respeitados no Brasil sobre o assunto: a psicóloga Joelma Correia, coordenadora do Centro de estudo, pesquisa e atendimento relativo à violência contra crianças e adolescentes da Universidade Fafire / Recife.
SOBRE A DATA
O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes foi criado em 2000 para lembrar um caso que marcou a década de 70. A menina Araceli, do Espírito Santo, tinha 8 anos quando foi raptada, torturada, estuprada e morta.
Os acusados de seu crime foram absolvidos pela Justiça e tudo indica que ficaram impunes por serem de classe média alta e terem influências políticas. O tema do abuso sexual infantil é objeto de estudos recentes inclusive do Ministério da Saúde e Fiocruz.
Da Redação, com Assessorias