No Brasil, 13 milhões de pessoas convivem com algum tipo de doença rara – que afeta até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos. A singularidade não está apenas no tipo de doença, mas na luta diária por acesso a diagnósticos precisos, tratamentos e manutenção de qualidade de vida. É o caso da Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença genética de diferentes manifestações clínicas.

Embora haja tecnologias para controle da progressão da AME, a desinformação e a dificuldade de acesso a diagnóstico precoce e tratamento ainda são barreiras em todo o país. Fabricante do Spinraza (nusinersena), medicamento que mudou a vida da cantora Daniela Bublitz aos 22 anos, a Biogen fez recentemente um alerta sobre as dificuldades de diagnóstico em pacientes jovens e adultos.

Segundo a biofarmacêutica com foco em neurociência, apesar de ser mais mais frequente e severa em bebês, a doença pode apresentar seus primeiros sintomas em qualquer momento da vida – cerca de 35% dos casos ocorrem após os 18 meses. Os tipos 3 e 4 da AME podem ocorrer na segunda ou terceira década de vida. Esses pacientes apresentam maior sobrevida e desenvolvimento motor.

“Quando ocorre em jovens e adultos, a AME apresenta progressivo comprometimento de autonomia e habilidades motoras. Os sintomas manifestam por meio de fraquezas musculares que podem evoluir para perda de reflexos, incapacidade de locomoção e dificuldades ortopédicas, como a escoliose”, explica Tatiana Branco, especialista em epidemiologia e gestão da saúde e diretora médica da Biogen.

Segundo ela, a falta de conhecimento é o principal desafio para a pessoa com AME. O diagnóstico é difícil porque os sintomas iniciais são muito parecidos com uma série de outras patologias (veja mais abaixo). “Por isso, a importância de considerar AME de início tardio nas hipóteses diagnósticas. Para o paciente que está em contínua perda de função motora, cada dia é fundamental”, avalia.

Diagnóstico: AME é confundida com ELA e outras doenças

O diagnóstico da AME em jovens e adultos ocorre por meio de avaliação clínica – que afere as capacidades motoras mais altas alcançadas pelo paciente, caraterísticas e progressão dos sintomas e histórico familiar – e testes genéticos moleculares que avaliam a presença dos genes responsáveis pela síntese da proteína de sobrevivência do neurônio motor.

Os sintomas iniciais costumam ser fraqueza muscular progressiva, podendo estar associado a presença de atrofia muscular, arreflexia, fadiga, fasciculações (pequena contração muscular momentânea e involuntária).

Além de haver outras patologias com sintomas semelhantes, características como fadiga e fasciculação podem ser confundidas com manifestações ligadas à estresse e ansiedade – gerando maior tempo para o paciente buscar um diagnóstico específico. Tatiana Branco defende que diante de quadro de fraqueza muscular progressiva, deve-se procurar atendimento especializado.

No processo de identificação diagnóstica de AME, é comum o profissional especialidade investigar diagnósticos diferenciais como doenças do músculo esquelético (como as miopatias inflamatórias, distrofias musculares, miopatias metabólicas hereditárias), doenças da junção neuromuscular (miastenia grave), Síndrome de Eaton-Lambert e outras doenças no neurônio motor, como Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)

Ainda de acordo com Tatiana, a medicação pode estabilizar a doença, melhorar as funções motoras, reduzir a fadiga e evitar a perda de habilidades sutis e cotidianas, ajudando a aumento da qualidade de vida dos pacientes. “Estamos falando sobre a autonomia para caminhar, vestir sua roupa, escovar os dentes, lavar os cabelos. São conquistas que fazem toda a diferença na qualidade de vida do paciente”, comenta.

Medicação custa cerca de R$ 320 mil e está no SUS

Spinraza (nusinersena) – que custa cerca de R$ 320 mil cada dose – foi a primeira medicação para o tratamento da AME que chegou ao Brasil, sendo o único no mercado que pode ser aplicado em todos os subtipos da doença. Ele é fabricado fora do país, pelas empresas Vetter Pharma – Fertigung GmbH & Co. KG (Alemanha) e Patheon Itália S.PA (Itália). No Brasil, a detentora do registro do medicamento no Brasil é a empresa Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda.

Em 2019, o SUS incorporou o tratamento, inicialmente apenas para o tipo 1, diagnosticado até os 6 meses de idade e considerado a forma mais grave e comum da doença, representando 58% dos casos. Em agosto de 2022, a a Anvisa publicou a autorização para comercialização da medicação. (Entenda mais abaixo como foi o processo de aprovação de medicação para os tipos tardios da doença).

“Esse foi um marco muito importante para o paciente de AME, familiares e profissionais de saúde. Nosso desafio agora, enquanto comunidade médica, é possibilitar que a terapia esteja disponível além dos grandes centros e regiões metropolitanas. Essa capilarização é de extrema importância para o acesso e adesão ao tratamento. Estamos falando de um país continental onde, por vezes, um paciente está a 200, ou 500 quilômetros de um centro médico especializado”, pondera Tatiana.

O medicamento precisa ser administrado em unidades médicas especializadas, sendo as quatro primeiras doses em intervalos de 14 dias e as seguintes em periodicidade quadrimestral. Ela lembra que o tratamento da doença também abrange cuidados nutricionais, respiratórios e ortopédicos.

Doença sem cura e maior causa genética de morte até 2 anos

De acordo com o Ministério da Saúde, a Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma doença genética que interfere na capacidade do corpo em produzir uma proteína essencial para a sobrevivência dos neurônios motores. Sem ela, estes neurônios morrem e os pacientes perdem progressivamente o controle e força musculares. A doença é degenerativa e não possui cura, sendo a maior causa genética de morte em crianças de até dois anos.

Por ser rara, a incidência é de 1 caso para cada 6 a 11 mil nascidos vivos. Segundo o MS, a doença pode receber até cinco classificações clínicas (que vão do tipo 0 ao 4), de acordo com a idade de início dos sintomas. Segundo a Biogen, também é levada em conta a máxima função motora atingida pelos pacientes.

No tipo 2 – cujos sintomas surgem entre 6 e 18 meses – geralmente os pacientes “não ficam em pé de maneira independente, enunciam ausência de reflexos, escoliose e dificuldade de deglutição”. Já os tipos 3 e 4 surgem após os 18 meses de idade e muitas vezes na segunda ou terceira década de vida. Esses pacientes apresentam maior sobrevida e desenvolvimento motor.

Conheça os cinco diferentes tipos de AME

Veja abaixo a classificação de cada tipo, de acordo com o Instituto Nacional de Atrofia Muscular Espinhal (Iname).

Tipo 0 – forma pré-natal, também conhecida como Tipo 1A

Os sintomas aparecem ainda durante a gestação, como a baixa movimentação fetal. Os bebês já nascem com fraqueza muscular e insuficiência respiratória grave e defeitos cardíacos. Costumam não resistir além do primeiro mês. Em geral, esses bebês possuem apenas uma cópia do gene SMN2.

Tipo 1 – forma infantil grave

Os sintomas aparecem até o sexto mês de vida. A criança apresenta movimentos fracos e necessita de auxílio para respirar (suporte de ventilação) normalmente antes de completar um ano de vida. Geralmente não conseguem sustentar o pescoço e não atingem o marco motor de sentar sem apoio. Também apresentam dificuldade de engolir (o que resulta em engasgos frequentes). A criança apresenta fasciculação (tremor) na língua e normalmente tem choro e tosse fracos, e, devido à hipotonia, é comum ficar na postura de “perna de sapinho”.

Tipo 2 – forma intermediária

O início dos sintomas e da fraqueza muscular ocorre entre os 6 e os 18 meses. A criança consegue sentar sem apoio, porém, não chega a andar. Também pode apresentar dificuldade respiratória em graus variados e problemas de deglutição, mas em menor grau do que no Tipo I. Ao longo de seu desenvolvimento, podem surgir anomalias esqueléticas como escoliose, deslocamento de quadril e deformidades articulares.

Tipo 3 – forma juvenil moderada

O surgimento dos sintomas acontece após os 18 meses de idade. Os pacientes apresentam capacidade de ficar em pé e andar, mas devido à progressão da doença podem perder essa habilidade ao longo da vida. As pernas são mais gravemente afetadas do que os braços.

Tipo 4 – forma adulta

Tem início na vida adulta e o paciente apresenta fraqueza que predomina em membros inferiores, levando a dificuldade para andar. “Atualmente, em função do surgimento de tratamentos com medicações capazes de mudar o curso da doença, temos vivido uma transformação em relação à ‘classificação original’ do pacientes”, diz o Iname.

Por exemplo, pacientes AME tipo 1 que iniciam o tratamento cedo têm apresentado resposta excelente, e passam a conseguir sentar sem apoio – o que seria impossível dentro do curso natural da doença. Então, para estes pacientes, muitas vezes as suas necessidades poderão se aproximar daquelas de pacientes AME tipo 2.

Como foi a aprovação de medicação para os tipos tardios da doença

O processo para aprovação do registro de Spinraza no Brasil iniciado em maio de 2017, quando a Biogen entrou com pedido na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que emitiu a aprovação em tempo recorde, em agosto do mesmo ano. 

Para garantir o acesso pelo SUS, pacientes tiveram que entrar na Justiça para o Ministério da Saúde custear o medicamento, que chegava a custar mais de R$ 200 mil o frasco – o tratamento por paciente custava R$ 1,3 milhão por ano.

De acordo com a pasta, 106 pacientes – entre os quais, Daniela Bublitz – foram atendidos por determinação da Justiça em 2018, somando gastos R$ 115,9 milhões com a compra de Spinraza, como informou a Agência Senado.

Somente em abril de 2019, o medicamento passou a ser oferecido pelo SUS, mas apenas para pacientes do tipo 1, com sintomas até seis meses de idade. A inclusão de Spinraza no SUS para pacientes com AME com sintomas detectados acima dos 18 meses, não foi fácil.

Em junho de 2019, o Ministério da Saúde aprovou a  oferta do medicamento para os tipos 2 e 3 da doença, mas pela modalidade de “compartilhamento de risco” – ou seja, o governo só pagaria pelo remédio se houvesse melhora do paciente. Foi a primeira medicação incluída no SUS pela nova modalidade.

Em dezembro de 2019, a medicação chegou então aos centros de referência para o tratamento da doença na fase tardia, com a disponibilização de cuidados multidisciplinares. Mas faltava a incorporação definitiva de Spinraza para todos os tipos de AME.

Em setembro de 2020, o Ministério da Saúde informou que “aguardava estudos da empresa (Biogen) sobre evidências econômicas e científicas para a incorporação do medicamento também para os tipos II e III da doença”.

Em outubro daquele ano, a Biogen anunciou que submeteu, ainda em 25 de setembro, à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), um novo “dossiê com evidências científicas robustas” que solicitava a inclusão do Spinraza no SUS para AME 5q tipos II e III, de forma ampla – ou seja, fora da modalidade de compartilhamento de risco.

A empresa lembrava ainda que a sua medicação era “o único tratamento modificador aprovado pela Anvisa para AME 5q sem distinção de subtipos, peso, idade ou condição clínica”. Em novembro de 2020, no entanto, a Conitec deu parecer desfavorável à ampliação do uso de Spinraza para os tipos tardios da doença, alegando falta de evidências científicas suficientes.

Porém, a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE), do Ministério da Saúde, decidiu que a Conitec ouvisse a população a respeito. O medicamento foi o primeiro a passar por uma audiência pública desde o início das atividades da Conitec, em março de 2021.

Após amplo debate com pacientes e familiares de pacientes com a doença, em junho do mesmo ano, a SCTIE publicou a portaria aprovando a ampliação da medicação, mas apenas para pacientes com AME 5q tipo II – com diagnóstico até os 18 meses de idade – e conforme protocolo clínico do Ministério da Saúde. O prazo para chegar ao SUS era de 180 dias – ou seja, janeiro de 2022.

A Biogen informou, entretanto, que, apesar da decisão do governo, continuaria a fornecer a medicação para todos os subtipos da doença – ou seja, incluindo também pacientes dos tipos 3 e 4, muitos deles com início dos sintomas depois dos 20 ou 30 anos.

“Respeitamos o processo de avaliação de tecnologia em saúde do Ministério da Saúde, mas reforçamos nosso compromisso com todos os pacientes, independente do subtipo da doença. O nosso objetivo, que é o acesso amplo para todos os pacientes elegíveis, permanece”, disse à época Tatiana Rivas Marante, gerente geral da Biogen Brasil, em comunicado à imprensa.

Com informações da Biogen, Ministério da Saúde e  Anvisa

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