Pai de seis filhos biológicos e três adotivos, avô de 29 netos “e bisnetos a perder de vista”, Nelson Sargento passou o Dia dos Avós (26 de julho) neste domingo no sossego de seu apartamento numa rua tradicional da Tijuca, Zona Norte do Rio. Ali, do alto de seus 96 anos, completados na véspera, o presidente de honra da Mangueira leva uma vida simples ao lado da mulher, Evonete. No sábado, entretanto, a rotina imposta pelo necessário isolamento social em tempos de pandemia foi quebrada por uma boa causa: era dia de festejar quase um século de vida! E que vida!
Uma roda de samba de raiz na porta do prédio verde onde mora fez o velho baluarte da Verde e Rosa sorrir. Cultuado como ‘a mais alta patente do samba’ e celebrado no Brasil e no mundo por sua obra que reúne mais de 400 composições, Nelson não se aguentou da janela de tanta emoção. Fez questão de descer até a entrada do edifício para receber as reverências de um pequeno grupo que, respeitando as ‘regras de ouro’ do distanciamento social, participou da serenata.
Usando andador e amparado pela esposa e amigos, o mangueirense foi saudado com o tradicional ‘Parabéns pra você’ e uma de suas maiores composições: a bela e antológica ‘Agoniza, mas não morre’. Nelson parecia feliz da vida. E estava. Sua vitalidade é impressionante. Fez ‘estripulia’, cantou, brincou e deu uma ‘palinha’ de fazer arrepiar todos os presentes. Ou melhor, várias palinhas.
‘Sambistas do meu Brasil’, bradou ao pedir a nota para puxar uma sequência de sambas de sua autoria. Nada menos que grandes sucessos como ‘Primavera’, ‘Falso amor sincero’ e ‘Sinfonia imortal’. Cercado por equipes de TVs, Nelson entoava as letras com voz baixinha, abafada pela máscara verde e rosa. E quem estava preocupado com isso? O importante era ver o ídolo de perto. Que honra estar ali. Do meu lado na calçada, um senhorzinho mascarado, lágrimas nos olhos, se emocionava em ‘conhecer pessoalmente’ o vizinho famoso. “Ele está muito bem pra idade dele”, dizia.
Mas qual seria o segredo da longevidade de Nelson Sargento? Ao ViDA & Ação, o multifacetado artista revelou o segredo para viver tanto e tão bem: “É difícil, muito difícil manter a saúde. Mas a palavra certa é Deus!”, entregou o devoto mangueirense, quase inaudível em meio à percussão e à animação dos presentes. Perguntado se o samba o ajudava a viver melhor, fez de pronto uma poesia: “
O samba é música. E música é o beijo da alma” (Nelson Sargento).
Veja aqui a cobertura da homenagem no RJTV
Homenagem criada pelo JornalistasRJ vira evento histórico
Era só um bolinho pra não deixar a data passar em branco em plena pandemia. Mas a homenagem a Nelson Sargento em seus 96 anos ganhou ares de evento histórico para o mundo do samba. A ideia surgiu no dia 2 de julho, no Grupo JornalistasRJ que completa uma década este ano no Facebook. Sensibilizada pela tristeza do mestre Nelson Sargento em meio ao confinamento compulsório por conta da pandemia, Zilda Raggio puxou a mobilização dos colegas no grupo do Whatsapp que reúne mais de 250 jornalistas, na maioria, veteranos da imprensa.
Nelson saiu de Copacabana para Tijuca e com essa pandemia está cada vez com menos vontade de sair e está tristinho. O aniversário dele vem aí, no dia 25 de julho. Evonete falou que ele pediu um bolo e ela não tem muita ideia do que fazer nesse período. O que proponho é uma união entre nós, da imprensa, para fazer algo significativo para ele que merece tanto e passa por dificuldades financeiras. Uma tristeza imensa ver o Brasil tratar assim suas lendas vivas. (…) Fiquei sensibilizada e pensei em fazer um bolo e levar. Mas ele é tão suntuoso que acho que juntos faríamos algo do tamanho que imagino.”, escreveu Zilda.
Rapidamente a ideia foi encampada por diversos jornalistas do grupo, que resolveram botar a ‘mão na massa’ para preparar uma homenagem em tempo recorde para um dos maiores cantores e compositores da nossa MPB. Ana Condeixa assumiu a produção, com apoio de Zilmar Basílio, amiga e madrinha de casamento de Nelson e Evonete. E assim o ‘bolo’ de solidariedade foi crescendo, crescendo, crescendo a cada dia, incorporando novos apoiadores e muitas novas ideias para homenagear o mestre à altura.
‘Serenata’ de roda de samba na porta de casa
A festa no sábado (25) começou bem antes de a roda de samba chegar até a porta do prédio. Pela manhã já circulava nos ‘grupos de zap’, nas redes sociais e nas TVs a ‘cantata virtual’ em homenagem a Nelson. Um time de primeira, escalado pelos integrantes do JornalistasRJ, com apoio de amigos e redes de contato, gravou trechos da clássica ‘Agoniza, Mas Não Morre’.
O vídeo em homenagem ao sambista contou com a participação de vários músicos, cantores e compositores. Era gente da estatura de Alcione, Monarco, Paulinho da Viola, Tia Surica, Tereza Cristina, Mar’tnália, Xande de Pilares, Tânia Malheiros e muitos outros artistas. Todos os vídeos gravados estão na fanpage A Mais Alta Patente do Samba.
O grupo Saracoteando, formado por funcionários da Comlurb e do Corpo de Bombeiros, foi chamado – e aceitou de pronto – o desafio de fazer a roda de samba especial de aniversário na porta do prédio de Nelson. “É uma grande honra para nós”, disse Diogo, o gari-percussionista de Magé, porta-voz do grupo que tem se dedicado a prestar homenagens a nomes importantes do mundo do samba. O jornalista e poeta Sérgio Gramático Filho, do Rebarbas, conhecido bloco do Carnaval de rua da zona sul carioca, também fez questão de participar desse “momento histórico”.
Camisa do Vasco e empadas de bacalhau como presentes
Um dos presentes para o aniversariante ilustre foi uma camisa do Vasco da Gama, seu (nosso) time de coração, autografada por vários jogadores, com seu nome e a idade. Um vizinho desceu com um presente em mãos e aproveitou pra fazer uma selfie ao lado do ilustre morador.
Encomendado pela jornalista Célia Abend, o bolo nas cores verde e rosa, com um bonequinho caricaturizado de Nelson, também chamava a atenção. O jornalista e radialista Paulo Marinho foi levar empadinhas de bacalhau, as preferidas de Nelson. Mimos mais do que merecidos. As principais emissoras de TV do país também estavam lá. Aliás, vários veículos de rádio, jornal e internet registraram e cobriram.
Foi lindo demais, gente! E prova viva de que o Jornalismo pode e deve andar junto com a Cultura. Orgulho de ser JornalistasRJ, orgulho de ser mangueirense (com um pezinho no Salgueiro e uma admiração pela Portela). Viva o samba, viva a Mangueira, viva Nelson Sargento! Vida longa para todos que fazem cultura em nosso país!!! 🙏🎂🎁🎊🍀👏
‘Carioca-raiz’, criado nos morros
Carioca de carteirinha, de alma e coração, Nelson Sargento nasceu como Nelson Mattos em 25 de julho de 1924 na Santa Casa de Misericórdia, na Praça XV. Filho de uma doméstica e um cozinheiro, vivia na Região Portuária até se mudar com a mãe para o Morro do Salgueiro e, depois, na Mangueira. Na carreira musical, incorporou o ‘Sargento’, referência à maior graduação a que chegou quando serviu o Exército.
Nelson é o que podemos chamar de um artista completo. Mais conhecido como cantor, compositor e pesquisador da MPB, é também ator, escritor e até artista plástico – seus quadros enfeitam as paredes de seu apartamento. Começou a carreira musical ainda na adolescência, apoiado pelo padrasto, Alfredo Português. Em 1955, compunha com ele a bela ‘Primavera’, obra-prima do samba.
Em 1960, integrou o conjunto A Voz do Morro, ao lado de Paulinho da Viola, Zé Kéti, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, José da Cruz e Anescarzinho. Entre os parceiros na longa carreira musical estão Cartola, Carlos Cachaça, Darcy da Mangueira, João de Aquino, Pedro Amorim, Daniel Gonzaga e Rô Fonseca, entre outros.
“Sua trajetória na música, na literatura e nas artes são suficientes para vários carnavais”, diz a Wikipedia. O integrante mais longevo da Velha Guarda da Mangueira já é cotado para ser enredo do Carnaval 2021 – se é que a pandemia vai permitir.
Um dos últimos remanescentes de uma época em que o samba era marginalizado, o ícone da MPB escreveu ainda os livros ‘Prisioneiro do Mundo’ e ‘Um certo Geraldo Pereira’. Em janeiro de 2018, lançou-se no Youtube – sim, Sargento, então aos 93, virou youtuber! O canal oficial, infelizmente, está parado há dois anos. Mas a memória do Nelson – e sua rica contribuição para a cultura brasileira – essa não pode parar. E se depender de seus milhares de fãs, ficará para sempre como seu legado.
Parabéns, muita saúde e felicidade para a maior autoridade viva do nosso samba!