O primeiro transplante de rim de um porco para um humano, anunciado esta semana nos Estados Unidos, despertou a curiosidade de muitas pessoas no Brasil e acendeu uma luz no fim do túnel a quem espera pela doação de um órgão. Mas por aqui essa novidade está bem perto de ser usada na prática. A tecnologia brasileira desenvolvida em estudos realizados há mais de cinco anos na Universidade de São Paulo (USP) permitirá a realização de xenotransplantes – transplante de órgãos entre duas espécies diferentes, nesse caso o Sus scrofa domesticus e o Homo sapiens, porco e homem.

Se bem-sucedida, essa técnica poderá ser usada em transplantes de rim, coração, pele, córnea e talvez fígado de suínos, contribuindo para mitigar – ou mesmo resolver – o principal gargalo para os procedimentos, que é a falta de órgãos disponíveis para doação. Os doadores suínos de órgãos serão gerados a partir de embriões com DNA silenciado, implantados em ‘barrigas de aluguel’, que darão origem a leitões geneticamente modificados.

Os suínos têm os órgãos muito semelhantes aos dos humanos e há uma compatibilidade de 98% entre o genoma das duas espécies. Mas os transplantes de órgãos de suínos normais (não geneticamente modificados) são rejeitados pelo organismo humano.

Os pesquisadores do Programa de Xenotransplante do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP então, conseguiram alterar os genes dos suínos que provocam rejeição aguda de órgãos transplantados para humanos.

“Apesar de os órgãos de suínos serem os mais semelhantes aos dos homens, transplantá-los poderia causar uma rejeição aguda no organismo. No entanto, com as novas tecnologias eles podem ser silenciados”, explica Mayana Zatz, bióloga diretora do Programa de Xenotransplante do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP.

Eles já conseguiram criar embriões de suínos com esses genes silenciados, que estão armazenados no laboratório. No ano passado, foram construídos dois biotérios de suínos com estrito nível de segurança contra infecções, as chamadas pig facilities – uma menor, ligada ao Instituto de Biociências (IB) da USP e outra mais ampla no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), também localizado no campus da universidade.

A previsão é que os experimentos de inseminação das porcas aconteçam a partir de 2024. “O próximo passo será inserir esses embriões em barrigas de aluguel, no útero de porcas”, diz a bióloga.

Leia mais

Médico brasileiro faz 1º transplante de rim de porco para humano
Transplante de rim: uma nova chance na insuficiência renal crônica 
Maioria de pacientes em fila de transplante espera por rim

Da ovelha Dolly aos porcos doadores de órgãos

Nos últimos 27 anos, desde a Ovelha Dolly, o primeiro animal clonado geneticamente que surpreendeu o mundo e virou lenda, algumas tecnologias têm avançado na área genética, como o Centro de Estudos do Genoma Humano, as células IPS  e a técnica Crispr (em inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), ou Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas.

A revolucionária ferramenta  foi desenvolvida pela cientista francesa Emmanuelle Charpentier e pela norte-americana Jennifer Doudna, o que lhes valeu o Prêmio Nobel em 2020.

O Crispr somou-se a outras técnicas já conhecidas de edição, como a do DNA recombinante, ampliando as possibilidades do que no passado era conhecido como “engenharia genética”: a modificação do DNA, o ácido desoxirribonucleico, que armazena a informação genética dos seres vivos.

A Crispr está por trás dos estudos com suínos realizados na USP. Por meio da técnica, os pesquisadores do CEGH-CEL silenciaram os genes dos suínos que provocam a rejeição aguda de órgãos transplantados para humanos. Eles já conseguiram criar embriões de suínos com esses genes silenciados, que estão armazenados no laboratório.

Transplantes de órgãos para humanos já realizados

Antes do xenotransplante realizado com sucesso esta semana em Boston (EUA),houve dois transplantes de órgãos de porcos para humanos. No primeiro caso, também nos Estados Unidos, um paciente em morte cerebral recebeu rins de suínos, que funcionaram durante três dias.  No segundo caso, um paciente em fase terminal, ligado a aparelhos, sobreviveu por 60 dias com o coração de um suíno geneticamente modificado.

“O resultado foi considerado muito positivo, quando comparado à sobrevida de só 18 dias do paciente do primeiro transplante de coração (de humano para humano) em 1967. Nosso Programa de Xenotransplante, que foi iniciado como uma coisa bastante futurística, se mostrou muito mais próximo da realidade”, afirma Mayana Zatz.

Ela fala sobre o Programa de Xenotransplante em vídeo produzido pelo Conselho Regional de Biologia (CRBio-01). 

CRISPR – técnica de edição genética ganhou Nobel de 2020

Ernesto Goulart, pós-doutorando no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células Tronco da Universidade de São Paulo (USP), explica que três genes que provocam a rejeição são bem conhecidos. Desativando-os por meio desta solução de edição gênica conhecida como CRISPR-Cas9, é possível fazer com que o sistema imunológico humano não rejeite os órgãos.

“O objetivo do nosso grupo, liderado pelo professor Silvano Raia, é modificar o genoma de porcos para tornar os órgãos desses animais compatíveis para o transplante em humanos, a partir de técnicas inovadoras como CRISPR. Queremos ser o primeiro grupo do mundo a fazer um xenotransplante. E acredito que vamos fazer isso em cinco anos”, explica Goulart.

A partir da CRISPR, uma técnica de edição genética baseada num sistema defensivo de bactérias, coordenado pela professora Mayana Zattz, é possível inativar, retirar ou substituir pedacinhos de genes. As células destes porcos serão testadas com o soro de pessoas que estão na fila de transplante de rim na população brasileira, a fim de verificar se escapam de anticorpos pré-existentes que podem levar à rejeição dos órgãos suínos.

A Thermo Fisher Scientific apoia este projeto, a partir da Linha de cultivo celular Gibco (meios de cultivo para crescimento das células em cultura); Linha de produtos de edição genômica (reagentes necessários para realização da técnica de edição genica por CRISPR Cas9), Linha de microscópios EVOS (utilizados para visualização das células em cultivo e também para ensaios de fluorescência) e Citometro de Fluxo – Attune (usado para análise das células).

Hoje, mesmo transplantes entre humanos exigem que o transplantado tome medicamentos imunossupressores, alguns para o resto da vida, a fim de combater a rejeição. No caso dos que precisam de transplante de rim, há ainda um custo elevado em hemodiálise daqueles que esperam por um novo órgão.

Hoje, o Brasil ocupa a segunda posição em número absoluto de transplantes, atrás apenas dos Estados Unidos, segundo dados do International Registry in Organ Donation and Transplantation (IRODAT). No entanto, segundo o Ministério da Saúde, a fila de espera por órgãos ultrapassou 60 mil pacientes em 2023, sendo mais de 32 mil somente à espera de um rim.

Para os pesquisadores, o xenotransplante pode mudar esta realidade e reduzir ou mesmo acabar com a fila de transplante de órgãos no Brasil. Milagre ou Medicina aliada a Ciência?

Com informações do CRBio-01

Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!
Shares:

Related Posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *