Imagine que você tem um filho pequeno e que, à medida em que ele cresce, começam a ser observadas algumas diferenças no desenvolvimento em comparação com outras crianças. Você passa em médicos especialistas, faz uma série de exames, mas o diagnóstico final demora de 4 a 5 anos e, ainda assim, os desafios são inúmeros. Essa é, em geral, a jornada dos pacientes com doenças raras.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem de 6 a 8 mil doenças raras no mundo; destas, apenas 4% contam com algum tipo de tratamento e 30% dos pacientes morrem antes dos cinco anos de idade. No Brasil, estima-se que 13 milhões de pessoas tenham alguma doença rara.
Um exemplo são as Mucopolissacaridoses (MPS), doenças genéticas que fazem parte do grupo dos erros inatos do metabolismo. Essas doenças metabólicas raras, graves e de herança genética atingem cerca de um caso a cada 22.500 nascidos vivos no mundo todo.
As MPSs podem causar aumento dos órgãos (fígado e baço), problemas respiratórios, circulatórios, cardíacos e esqueléticos, limitações articulares, perda auditiva, além de déficit no desenvolvimento neurológico nas suas formas graves. Sem o tratamento adequado, pode causar a morte do paciente precocemente.
Pai luta por medicamento inovador para o filho
Entre as diversas variações, a tipo II (também chamada de Síndrome de Hunter ou MPS-II) é a que apresenta maior prevalência no Brasil. São 0,48 para cada 100 mil nascidos vivos, com uma média de 13 novos casos ao ano. De acordo com dados da Rede MPS Brasil, entre os anos 1982 e 2019, apenas 493 pacientes com a MPS tipo II foram diagnosticados no país.
Um desses pacientes é Anthony, diagnosticado aos três anos de idade com Mucopolissacaridose II, também conhecida como Síndrome de Hunter. Apesar de ter um tratamento no Brasil, essa medicação não previne os problemas neurológicos associados aos casos graves da doença, como o de Anthony, como afirma Antonie Daher, presidente da Casa Hunter, instituição fundada por ele em 2013 para ajudar famílias que enfrentam doenças raras no Brasil.
O medicamento que havia disponível no Brasil era eficiente apenas para tratar os efeitos físicos provocados pela doença, o que trazia melhora para o desenvolvimento do meu filho, mas, ao mesmo tempo, não conseguia controlar a piora no quadro em relação ao sistema neurológico”, lembra Daher.
A situação levou o empresário a realizar por conta própria pesquisas incessantes na busca de uma medicação. Até que ele conheceu um tratamento inovador e, desde então, vem atuando para tentar convencer a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a aprovar a medicação.
A ideia é permitir que o tratamento – já usado no Japão – se torne uma realidade para todos os pacientes com MPS II no Brasil, e não apenas o seu filho que está participando de uma pesquisa clínica pela qual tem acesso ao remédio, junto com outros pacientes.
Celebrado em 15 de maio, o Dia Internacional de Conscientização das Mucopolissacaridoses (MPSs) tem como objetivo trazer maior conscientização e conhecimento acerca dessas patologias, reforçando a importância do diagnóstico precoce, por meio da expansão do teste do pezinho, e do tratamento mais adequado.
Nosso objetivo é aumentar o conhecimento a respeito da patologia, facilitando o diagnóstico e o tratamento dos pacientes. Somente dando visibilidade ao tema temos a oportunidade de advogar em favor dos pacientes”, explica Antonie.
Novo medicamento pode revolucionar tratamento da MPS tipo II
Medicamento que aguarda aprovação da Anvisa é capaz de tratar os efeitos neurológicos da MPS- II, diz geneticista
Atualmente, o tratamento disponível no Brasil para a MPS-II não é capaz de tratar os efeitos neurológicos da doença por causa da chamada “barreira sangue-cérebro”, formada por um conjunto de células que atuam como um filtro altamente seletivo, que protege o sistema nervoso central de ataques de microrganismos e impede que medicamentos administrados por via oral ou injetados no sangue cheguem até o cérebro.
Frente a esse cenário que impacta a qualidade de vida de diversos pacientes, existe um tratamento inovador que representa uma esperança concreta para quem convive com MPS tipo II. Trata-se de uma terapia enzimática pioneira, já aprovada no Japão desde 2021, que é capaz de atravessar a barreira hematoencefálica – o que permite agir diretamente no sistema nervoso central, onde os medicamentos convencionais não atuam.
Um dos primeiros medicamentos a usar essa tecnologia é o alfapabinafuspe. A partir de uma administração intravenosa se distribui a enzima similar à deficiente para todo o organismo, incluindo o sistema nervoso. Pesquisadores, médicos e pacientes de MPS II aguardam com grande expectativa a aprovação do alfapabinafuspe pela Anvisa.
Aprovado desde 2021 no Japão, o mais novo tratamento para a MPS II pode revolucionar o curso da doença e representa uma esperança no curto prazo, especialmente para 70% dos paciente que têm a forma grave da doença. A tecnologia está em fase final de análise pela Anvisa para ser oferecida no Brasil. A sociedade, inclusive, tem se mobilizado a favor da aprovação por meio da campanha #AprovaAnvisa, que busca conscientizar sobre a importância do novo tratamento.
Pesquisa clínica no Brasil é realizada desde 2018
Geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor titular do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Roberto Giugliani é o médico responsável pela pesquisa com alfapabinafuspe no Brasil.
Head de Doenças Raras da Dasa Genômica e co-fundador da Casa dos Raros, ele lembra que o Brasil está participando ativamente dessa revolução da medicina. A pesquisa clínica sobre a utilização do alfapabinafuspe para o tratamento de pacientes com MPS II também está sendo realizada no país desde 2018.
Nos estudos clínicos, os indicadores de eficácia foram bem evidentes, com redução dos biomarcadores da doença no sangue, na urina e no líquido céfalo-raquidiano (que indica a atuação junto ao sistema nervoso central). Observamos diversos outros fatores positivos como melhora cognitiva, diminuição da medida do fígado e do baço, melhora da respiração e da interação social, entre outros, que o medicamento se mostrou muito eficaz, fazendo uma grande diferença na qualidade de vida dos pacientes e dos familiares”.
Os pacientes e cuidadores relataram melhora dos indivíduos em atividades como caminhada (78%), agarrar objetos sem dismetria ou tremor (55%), interação social (55%) e qualidade do sono (33%).
Quando pensamos que a MPS II é uma doença rara, com cerca de apenas dois novos casos diagnosticados no país a cada mês e que os pacientes que estão fora do estudo não estão recebendo o tratamento e que pioram a cada dia no seu quadro neurológico, entendemos que se torna necessária e urgente a aprovação do novo medicamento pela Anvisa”, afirmou Roberto Giugliani.
Os resultados da fase II revelaram que o tratamento pode ser benéfico para manter ou estabilizar o desenvolvimento neurocognitivo em pacientes com a forma grave da doença. Além disso, promove a melhora dos sintomas corporais e da atenção em pacientes com a forma atenuada, podendo ser utilizado para o tratamento de ambas as formas, tanto das manifestações neurológicas quanto dos sintomas que ocorrem em todos os outros órgãos dos pacientes levando a falha desses órgãos com o passar do tempo.
Saiba mais sobre as mucopolissacaridoses
As mucopolissacaridoses (MPSs) são doenças genéticas raras e progressivas. A condição é causada por uma falha genética que afeta a produção de uma enzima essencial para o metabolismo celular, responsáveis pela degradação dos glicosaminoglicanos (GAGs) e acomete quase exclusivamente meninos, provocando acúmulo de substâncias tóxicas no organismo.
De acordo com a enzima que se encontra deficiente, as Mucopolissacaridoses podem ser classificadas em 11 tipos diferentes. O tipo II (também chamado de Síndrome de Hunter ou MPS-II) é o que tem mais pacientes no Brasil.
A falha em um gene localizado no cromossomo X (razão pela qual a MPS-II afeta quase exclusivamente os meninos) leva à deficiência na produção de uma das enzimas responsáveis pela degradação dos glicosaminoglicanos (GAGs), substâncias do nosso corpo presentes em quase todos os tecidos.
Quando não são degradadas, essas substâncias se acumulam nas células do organismo, comprometendo a qualidade de vida e reduzindo a expectativa de vida dos pacientes afetados. O quadro clínico inclui aumento de órgãos, dificuldades respiratórias, alterações cognitivas e deterioração neurológica progressiva.
Importância do diagnóstico precoce e tratamento adequado
Assim como nas demais doenças raras, as MPS são de difícil diagnóstico, uma vez que há múltiplos sintomas e muitos são comuns a outras patologias. O diagnóstico correto e precoce das MPS é fundamental para propiciar uma melhor qualidade de vida aos pacientes.
Com o Teste do Pezinho ampliado, permitindo o diagnóstico precoce, associado ao tratamento com o medicamento ainda em teste, Antoine acredita que será possível, no futuro, o tratamento precoce dos pacientes, assim prevenindo os quadros mais graves da doença e trazendo mais qualidade de vida aos pacientes.
A expansão do teste do pezinho para incluir as MPS seria uma maneira de detectar rapidamente a MPS-II, além de outras doenças raras, garantindo o tratamento adequado para minimizar os efeitos dessas patologias nos pacientes. O exame já é previsto em lei desde 2021, mas o Brasil ainda enfrenta dificuldades para efetivar sua implantação em toda a rede do SUS.
A MPS não tem cura, mas com tratamento adequado é possível controlar a doença e aumentar a expectativa de vida do paciente. Segundo o geneticista e professor Roberto Giugliani, a Terapia de Reposição Enzimática (TRE) foi um importante avanço no tratamento das MPS, embora tenha algumas limitações, como o fato de não penetrar no sistema nervoso.
Apesar dos avanços no conhecimento sobre essas patologias, a conscientização, o diagnóstico precoce e a adoção de tratamentos adequados continuam sendo grandes desafios. A difusão de informações sobre MPS II, a implementação de um teste do pezinho ampliado que inclua essa doença, e disponibilização de tratamentos que tenham impacto sobre as suas manifestações neurológicas, são medidas importantes para mudar esse cenário.
Novas enzimas capazes de cruzar a barreira sangue-cérebro permitem tratar as manifestações neurológicas a partir de uma enzima administrada na veia. A combinação dessas novas tecnologias de tratamento com o diagnóstico precoce, idealmente através do teste do pezinho, trará um ganho significativo na qualidade de vida dos pacientes com MPS”, explica Dr. Roberto Giugliani.
Saiba mais sobre a história de Anthony
Foram mudanças no comportamento e atrasos no desenvolvimento e aprendizagem que fizeram Antoine e a esposa desconfiarem que havia algo de errado com a saúde do filho. Ele conta que a voz de Anthony começou a ficar mais grossa e muitos pelos começaram a nascer pelo corpo, ainda muito pequeno. O ano era 2012 e alí começava uma jornada para descobrir a doença.
“Durante um ano, todos os médicos que procurei me disseram que a causa era a falta de interação social”, lembra. Insatisfeito com a resposta, ele gastou mais de R$10 mil em exames, feitos em vários hospitais e laboratórios Até sair o diagnóstico, foram noites mal dormidas, dias no hospital e centenas de exames até chegar ao nome difícil da doença.
Não existia, até então, nenhum centro brasileiro especializado na Síndrome de Hunter, e muito menos medicamentos para tratar os pacientes. Daher conta que precisou entrar na Justiça para garantir o tratamento do filho no Hospital das Clínicas e a compra do remédio nos Estados Unidos. “Venci a ação e, seis meses depois, o Anthony já apresentava uma melhora surpreendente”, afirma.
Obstinados em encontrar um tratamento eficaz para seu filho, os pais Antoine Daher e Fernanda Dauerbach descobriram, por meio da internet, que a farmacêutica japonesa JCR trabalhava no desenvolvimento de uma tecnologia com potencial chance de ajudar seu filho. Era uma luta contra o tempo, já que a doença avançava rapidamente sobre o sistema nervoso da criança.
Sempre fui em busca de novidades terapêuticas no mundo inteiro, aí descobri a JCR, que tem uma enzima que penetra a barreira hematoencefálica e neutraliza os efeitos da doença no cérebro, algo que os outros medicamentos não conseguiam”, conta Daher, que foi convidado pela empresa a conhecer as instalações no Japão.
O pai de Anthony atravessou o oceano acompanhado do médico geneticista Roberto Giugliani, reconhecido como um dos maiores especialistas em doenças raras no Brasil. Durante a visita, ao descobrir que os testes do novo medicamento seriam feitos apenas nos Estados Unidos e no Japão, Daher iniciou um trabalho de convencimento para que o laboratório incluísse o Brasil na pesquisa.
“Caso não conseguisse convencê-los, sabia que a vida de muitos, que têm a esperança de viver mais e com melhor qualidade de vida no Brasil, seria prejudicada, incluindo meu filho. Tentei resumir minha batalha de anos pelo meu filho, a luta com a Casa Hunter por políticas públicas de tratamentos de doenças raras. Por fim, consegui convencer os executivos a incluir nosso país na pesquisa”.
No mesmo encontro, estudos apresentados por Giugliani também ajudaram a mostrar como o estudo das MPS está avançado no Brasil e fizeram com que a JCR mudasse todo o planejamento da pesquisa para trazer os testes para o nosso país. “O Brasil tem potencial para pesquisas tendo em vista o número de pacientes e a necessidade de se ter um tratamento que atinja o sistema nervoso central”, explica Dr. Roberto Giugliani.
Testes no Brasil
De volta ao Brasil, Antoine ajudou a identificar 19 pacientes, além do filho, que poderiam participar da pesquisa clínica no Brasil. A pesquisa iniciou em setembro de 2018 (fase II) e segue com o estudo de extensão, além do novo estudo (fase III).
Anthony faz tratamento no IGEIM/UNIFESP sob a coordenação da geneticista Ana Maria Martins, professora da Unifesp e membro da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM).
“O comportamento do meu filho ao longo dos últimos três anos mudou completamente. Ele começou a entender quando explicamos algo, a dormir melhor e passou a se sentar conosco à mesa para as refeições. Isso antes da medicação era impossível, porque ele não ficava quieto em nenhum lugar”, lembra o pai. “Além disso, os exames laboratoriais comprovaram a redução no acúmulo que havia no sistema nervoso central provocado pela falta da enzima”.
A CEO da JCR Farmacêutica no Brasil, Vanessa Tubel, lembra que, em um primeiro momento, a pesquisa não seria realizada no Brasil, e sim no Japão e Estados Unidos, o primeiro destino internacional naturalmente escolhido por indústrias farmacêuticas. Porém, na reunião com Antoine, os executivos japoneses se comoveram com a sua luta e decidiram desviar a rota que passava pelos EUA e trazer a pesquisa sobre MPS II para o Brasil.
O propósito da JCR é melhorar a vida dos pacientes aplicando nosso conhecimento científico e tecnologias exclusivas para pesquisar, desenvolver e fornecer terapias de última geração. A determinação do Antonie Daher em busca de um tratamento para o filho motivou toda diretoria da JCR no Japão, que tomou a decisão de vir para o Brasil para mudar a vida não só do pequeno Anthony, mas de outras crianças com doenças raras”, explica Vanessa Tubel.
Casa Hunter
Depois de ter passado por toda essa jornada para obter o diagnóstico e o tratamento, Daher decidiu fundar, em 2013, a Casa Hunter, junto com outros pais de crianças com a síndrome e médicos focados em estudos genéticos. Hoje, ele é presidente da entidade e dedica sua vida a ajudar brasileiros com doenças raras.
O espaço oferece atendimento gratuito multidisciplinar (dentista, psicólogo e fisioterapeuta) para até 300 pessoas por mês, desde bebês até adultos com 50 anos. A instituição fundada em 2013 presta todo tipo de apoio – acesso a especialistas, aparelhos e exames para os que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Saiba mais:
A Casa Hunter é uma instituição focada no apoio aos pacientes com doenças raras e seus familiares. Homens, mulheres e crianças lutam por direitos básicos, como o diagnóstico preciso e o acesso a tratamento.
Lutamos por visibilidade e equidade, a garantia dos direitos de todo Brasileiro. Acesso a diagnóstico e tratamento, conquistas básicas, mas complexas quando falamos de doenças raras” complementa Antoine.
O presidente da entidade tem forte atuação com diversas autoridades e órgãos governamentais para o desenvolvimento de novas políticas públicas que visem melhorar todo este cenário das doenças raras no país, uma atividade que, segundo ele, é essencial para conseguir avanços no tratamento de doenças raras. Ele também preside a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas), instituição com 57 federados espalhados em todos os estados do país.
Agenda Positiva
MPS Week conscientiza sobre a doença e novo tratamento
O dia 15 de maio é marcado pelo Dia Internacional de Conscientização das Mucopolissacaridoses, doenças genéticas raras, progressivas e que impactam profundamente a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias.
A data foi criada para fomentar discussões e ampliar o conhecimento das pessoas sobre essa condição, proporcionando mais visibilidade à doença e disseminar informações para familiares, cuidadores, sociedade em geral e para a comunidade médica.
Enquanto a aprovação do novo medicamento para o uso no Brasil enfrenta uma série de dificuldades, a maioria delas relacionadas à própria gravidade da doença, que degrada os pacientes, a MPS Week reforça não apenas a importância da informação e do diagnóstico precoce, mas também o direito dos pacientes de doenças raras a um tratamento digno, eficaz e acessível”, diz Vanessa Tubel, CEO da JCR Farmacêutica, empresa que desenvolve o novo medicamento;
Celebramos a MPS Week todos os anos pois o nosso propósito é melhorar a vida dos pacientes aplicando conhecimento científico e tecnologias exclusivas para pesquisar, desenvolver e fornecer terapias de última geração, ampliando o conhecimento sobre a doença para a sociedade”, afirma.
Com informações de Assessorias e do Portal Hospitais Brasil