Medicamentos originalmente desenvolvidos para o tratamento do diabetes tipo 2 e também usados na perda de peso vêm demonstrando efeitos além do controle glicêmico. A semaglutida, princípio ativo do Ozempic e Wegovy, tem despertado interesse em novas áreas de aplicação médica. A medicação também já é indicada de modo off label (sem inclusão na bula) para perda de peso, porém, há evidências de que a semaglutida pode reduzir significativamente o desejo e o consumo de álcool
Primeiro ensaio clínico randomizado controlado sobre o tema, um estudo publicado pelo JAMA Psychiatry em fevereiro avaliou ao longo de dois meses 48 participantes que não estavam em tratamento formal e trouxe resultados animadores. O estudo concluiu que os pacientes que receberam o medicamento reduziram em 30% seu consumo de bebidas alcoólicas, enquanto o grupo placebo apresentou diminuição de apenas 2%.
Outra pesquisa publicada em 2024 na revista científica Nature Communications, revelou o potencial benefício da semaglutida no tratamento do transtorno por uso de álcool. Pacientes submetidos a intervenções terapêuticas com medicamentos como Ozempic e Wegovy, tanto para controle de peso quanto para tratamento de diabetes tipo 2, demonstraram uma diminuição no desejo de consumir bebidas alcoólicas.
O estudo, conduzido por cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade Case Western Reserve, nos Estados Unidos, acompanhou registros eletrônicos de saúde de 83.825 pacientes com obesidade. Segundo esses dados, o transtorno por uso e dependência de álcool, bem como a recorrência, diminuiu entre 50% e 56% no ano seguinte. Resultados semelhantes foram observados na análise dos registros de 598.803 pacientes com diabetes tipo 2 tratados com semaglutida.
Endocrinologista nota redução no consumo de álcool em 6 dentre 10 pacientes
Para a endocrinologista Alessandra Rascovski, diretora clínica da Atma Soma e presidente do Instituto Rascovski, essa percepção tem se confirmado nos consultórios, “em média 60% dos pacientes que realizam o tratamento com semaglutida diminuíram a ingestão de álcool expressivamente”. A especialista notou a perda da vontade e da tolerância a bebidas alcoólicas, segundo os relatos de pacientes que fazem uso de medicamentos à base de semaglutida.
Investigações pré-clínicas vêm mostrando que essa substância altera o mecanismo metabólico da dopamina, conhecido como hormônio do prazer, reduzindo o prazer ao consumir álcool, semelhante ao que acontece com a comida”, explica Alessandra. Os pesquisadores acreditam que o mecanismo de ação da semaglutida pode estar relacionado às vias de recompensa do cérebro, diminuindo o apelo do álcool de maneira similar à redução do interesse por alimentos.
A endocrinologista Lorena Lima Amato também percebeu a redução no consumo de bebidas alcoólicas entre os seus pacientes. /’Nós, médicos que indicamos a semaglutida para os pacientes elegíveis, notamos essa redução do desejo de consumir bebida alcoólica. Estudos recentes em modelos animais também reforçam essa possibilidade, mostrando que quanto maior a dose de semaglutida, menor o consumo de álcool em ratos que tinham dependência”.
Segundo Alessandra, a semaglutida está sendo associada também como um potencial redutor de comportamentos relacionados à dependência em geral, como drogas e nicotina. “Existem outros estudos expondo que moléculas agonistas do GLP-1 (estudo fase 2) promovem uma redução do consumo, suprimindo a motivação e a vontade”, aponta.
Potencial para reduzir o consumo de álcool em pacientes com transtorno por uso da substância
Medicamentos são promissores, mas ainda carecem de mais estudos para uma aplicação segura e ampla
Agora, as atenções se voltam para o Mounjaro (tirzepatida), que chega às farmácias brasileiras em junho. Além de promover uma perda de peso até 47% maior que a semaglutida, estudos sugerem que ele também pode ajudar a reduzir o desejo por álcool, ampliando os benefícios dessa classe de medicamentos.
Tanto a semaglutida quanto a tirzepatida imitam os hormônios GLP-1 e GIP, que aumentam a saciedade e retardam a digestão, reduzindo a fome e o consumo calórico. De acordo com a Bariatric News, ambas demonstraram impacto na redução do consumo de álcool, o que pode abrir novas possibilidades terapêuticas.
Camila Magalhães, médica psiquiatra e cofundadora da Caliandra Saúde Mental, destaca que os participantes do estudo que utilizaram semaglutida não apenas beberam menos, mas também relataram uma redução significativa no desejo por bebidas alcoólicas, além da diminuição na frequência e na quantidade ingerida.
Esse achado é especialmente relevante, pois sugere um efeito potencial da semaglutida na modulação do comportamento em relação ao álcool“, afirma.
Ainda é cedo para vincular remédios ao combate ao alcoolismo
Apesar dos achados promissores, os cientistas alertam que ainda não há dados suficientes para prescrever o medicamento especificamente para transtorno por uso de álcool. Embora essas descobertas sejam promissoras, ainda é muito precoce falar que Ozempic e Mounjaro terão indicação para o tratamento do alcoolismo.
“Mas não deixa de ser uma perspectiva, que pode ajudar pacientes a perder peso, controlar o diabetes e talvez ainda diminuir o consumo do álcool”, analisa a endocrinologista Lorena Amato. Essa indicação seria especialmente relevante para pacientes pós-bariátricos, que podem ter maior predisposição ao alcoolismo.
Alessandra ressalta que, apesar dos resultados promissores, ainda há um longo caminho a percorrer. “O tempo de estudo foi curto e as evidências, por enquanto, são limitadas. Ainda não podemos considerar a semaglutida como uma alternativa segura e eficaz para tratar o transtorno por uso de álcool”, explica
Para a psiquiatra Camila Magalhães, se estudos adicionais confirmarem esses efeitos, os impactos podem ser significativos tanto para a psiquiatria quanto para a indústria farmacêutica. “Se, no longo prazo, ensaios clínicos comprovarem que a semaglutida ou a tirzepatida podem realmente auxiliar no tratamento desse transtorno, estaremos diante de uma mudança importante na forma como lidamos com essa condição. Isso, sim, será uma grande notícia”, conclui.
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Melhora da fertilidade e uso de fórmulas manipuladas
Embora não haja estudos científicos específicos ligando diretamente a semaglutida à fertilidade, Dra. Lorena comenta que “tem muita evidência que a perda de peso melhora a fertilidade de homens e mulheres”. Com tantos benefícios, alguns já comprovados cientificamente e outros ainda não, a semaglutida é vista por muitos como a “salvação – a solução de todos os problemas”.
Mas é bom ter cuidado. Para a endocrinologista Alessandra Rascovski, o futuro da semaglutida aqui no Brasil parece promissor, mas exige um equilíbrio entre inovação, acesso e segurança.
A popularização do medicamento como auxiliar na perda de peso deve ser acompanhada de estudos rigorosos e políticas públicas que garantam seu uso responsável, além de rigorosa supervisão médica para maximizar seus benefícios e minimizar riscos”, finaliza.
Lorena Amato destaca também os riscos associados à compra de Ozempic e Monjaro manipulados, que têm sido promovidos sem limites nas redes sociais.
A manipulação desses medicamentos ainda não tem a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), tornando-se um perigo potencial para a saúde, ocasionando reações indesejadas e até desconhecidas pelos médicos, colocando em risco a segurança e a eficácia do tratamento”, esclarece.
Indicado para diabetes, Ozempic também tem efeito na perda de peso
Ozempic (semaglutida) no Brasil tem ganhado destaque como um tratamento eficaz para o diabetes tipo 2. Este medicamento, inicialmente desenvolvido para o controle glicêmico, age estimulando a secreção de insulina e reduzindo a produção de glucagon, ajudando a controlar os níveis de açúcar no sangue.
Porém, além do controle do diabetes, estudos têm mostrado que o medicamento pode contribuir para a perda de peso, mesmo em indivíduos sem a condição. “Este efeito se dá, também, devido à ação do medicamento no centro de saciedade do cérebro, o que reduz o apetite e a ingestão calórica”, explica a diretora clínica da Atma Soma.
No Brasil, esta aplicação tem atraído a atenção de pacientes e profissionais de saúde, que buscam alternativas eficazes e seguras para o tratamento da obesidade, um problema crescente no país. De acordo com estudo recente, apresentado no Congresso Internacional sobre Obesidade 2024 (ICO), até 2044, cerca de 48% dos brasileiros terão obesidade e mais de 27% irão ter sobrepeso.
Contudo, a semaglutida na dose 2,9g, o Wegovy, chegará nas farmácias, possivelmente em agosto, com indicação para a obesidade.
90 mil brasileiros morrem por ano em decorrência do alcoolismo
Consumo excessivo de bebidas alcóolicas levou à morte de 2 milhões pessoas no mundo
Segundo um levantamento de 2023 da Covitel, realizado em conjunto com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a taxa de indivíduos adultos que consomem álcool de forma abusiva no Brasil é de 4%, cerca de 6 milhões de pessoas, sendo 6,6% homens e 1,7% mulheres.
Segundo o último relatório sobre a situação mundial de álcool, saúde e o tratamento de transtornos por uso de substâncias, produzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), dois milhões de mortes são atribuídas ao consumo de álcool e 500 mil mortes estão relacionadas ao uso de drogas psicoativas, por ano.
Já o Relatório Mundial sobre Drogas 2024, World Drug Report, realizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), aponta aumento do consumo de drogas e álcool no mundo. O agravamento pode estar relacionado ao mercado de drogas, a oferta e o acesso a novos opioides, substâncias analgésicas potentes que atuam no sistema nervoso central, segundo o estudo.
Ainda segundo o levantamento, no mundo, cerca de 292 milhões de pessoas usaram drogas em 2022, um aumento de 20% em relação à década anterior. Com 228 milhões de usuários a canabis representa a maior parcela entre os usuários, na sequência os opioides com 60 milhões, anfetaminas (30 milhões), cocaína (23 milhões) e ecstasy (20 milhões de usuários).
O uso de drogas impacta a saúde de 64 milhões de pessoas em todo o mundo, contudo apenas uma em cada 11 pessoas recebem tratamento adequado. O relatório indica ainda que as mulheres têm menos acesso a cuidados comparado com os homens, a cada sete homens uma mulher recebe atendimento terapêutico.
Com Assessorias