Na última sexta-feira, dia 14 de outubro, foi publicada no Diário Oficial da União a nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM Nº 2.324, de 11 de outubro de 2022) que limita o uso da cannabis medicinal para o tratamento exclusivo de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou Complexo de Esclerose Tuberosa. Com validade de 3 anos a partir de sua publicação no DO, a resolução proíbe a indicação de cannabidiol (CBD) para qualquer outra patologia, como transtorno do espectro autista, Alzheimer e Parkinson.

Para especialistas e familiares de pacientes que fazem uso do CBD com fins terapêuticos, se nada for feito, centenas de milhares de brasileiros terão que parar seus tratamentos com cannabis medicinal, utilizada, por exemplo, para a melhoria na vida de pessoas que sofrem com problemas no sistema nervoso central e periférico, imunológico, endócrino e cardiovascular.

Nas redes sociais, o badalado chef de cozinha Henrique Fogaça, comentou a nova resolução. Sua filha Olívia, de 14 anos, faz uso de cannabidiol há cerca de 3 anos para tratar uma síndrome rara.

“A resolução é muito errada, pois muitas patologias que necessitam e estão sendo tratadas com cannabis medicinal. A Olívia, por exemplo, tem uma síndrome rara não definida, e está sendo tratada há três anos com cannabidiol. Ela melhorou muito. Não podemos nos calar, nos privar e tirar a liberdade de pacientes que precisam da cannabis medicinal”, destacou Fogaça.

A médica Amanda Medeiros Dias confirma. “Os pacientes estão desesperados, mandando mensagens em busca de mais informações”. Na sua avaliação, o médico tem o direito de prescrição, indicando aos seus pacientes aquilo que achar mais eficiente para cada caso. Além disso, existe a autorização da Anvisa.

A resolução foi feita sem embasamento nenhum. Ela traz, inclusive, nomes de moléculas que nem existem. Quem fez a resolução não sabe nem do que está falando. Ela é um absurdo, que não pode ser levada em consideração, propondo, inclusive, uma censura ao conhecimento. A medicina endocanabinoide existe em todo o mundo e temos que nos unir em torno dessa causa coletiva”, ressaltou.

A “CFM Nº 2.324” destaca a proibição da prescrição de cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o cannabidiol. Na tentativa de evitar a difusão do tema, a resolução veta a realização de palestras e cursos sobre o uso do cannabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como divulgações publicitárias. Com a publicação, fica revogada a resolução “CFM Nº 2113”, publicada no dia 16 de dezembro de 2014.

Indústria acusa retrocesso

Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), já existem mais de 35 mil validações da cannabis medicinal à saúde, com efeitos positivos de muitas das 500 moléculas atribuídas à planta. Para Kathleen Fornari, especialista em cannabis medicinal e empresária do setor, a resolução é um retrocesso à medicina brasileira e à ciência mundial.

“O Brasil, mais uma vez, deixa de lado uma tendência global que tem ajudado milhões de pessoas ao redor do planeta. Estão tentando impedir intervenções médicas com base científica em pacientes que fazem tratamento com este fitofármaco, condenando-os a uma rotina estressante e precária”, diz ela.

A especialista ressalta que a quantidade de tetrahidrocanabinol (THC) existente nos produtos importados com extração full spectrum, aprovados pela Anvisa, não produz os efeitos típicos da maconha, mas sim tem o objetivo de tratar ou amenizar sintomas diversos, como espasmos, tremores, convulsões e enjoos.

O advogado William Romero, especialista em direito administrativo, diz que a antiga resolução já apontava o uso exclusivo para tratamento de epilepsia refratária na infância e adolescência, a diferença agora é o termo, que veda a prescrição. “Na prática, o que muda é que, até o momento, o médico tinha liberdade para prescrever o medicamento para outros casos, a seu critério, mas agora isso pode infringir em uma quebra da ética profissional”, explica.

Para Kathleen Fornari, a resolução vai na contramão de uma das principais tendências mundiais na área da saúde. “Frente às decisões recentes durante a pandemia, como a liberação da prescrição de cloroquina e ivermectina a ser administrada a critério médico – remédios que comprovadamente não auxiliam no tratamento da Covid-19, me parece mais uma medida ideológica de ‘caça às bruxas’ do que algo pensado em benefício dos pacientes”, complementa a empresária.

Batalha entre CFM e indústria canabinoide

Em julho, a Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides, a BRCANN, enviou uma solicitação para ampliar o prazo de consulta pública que visa atualizar a Resolução 2.113/2014 que restringe a prescrição de cannabis medicinal a produtos de canabidiol para crianças com epilepsia refratária por médicos de apenas três especialidades: neurologia, psiquiatria e neurocirurgia. Aberta no dia 1 de julho, a consulta pública que se encerraria no dia 15 de julho teve seu prazo estendido por mais 15 dias.

“É um debate muito importante para a saúde pública brasileira e por isso precisa ser feito com intensa participação da comunidade médica. O prazo maior permitirá a contribuição de mais profissionais de saúde”, avaliou, na ocasião, o diretor executivo da BRCANN, Tarso Araujo.

A Resolução 2.113/2014 previa uma atualização com base em novos estudos até dezembro de 2016 — o que não ocorreu. De 2014 até julho deste ano, a Anvisa havia autorizado a venda de mais de 20 produtos de Cannabis em farmácias. Eles já são prescritos por médicos de diversas especialidades, para uma variedade de indicações, com base em evidências científicas que vêm se acumulando desde então. O entendimento geral é de que a norma desatualizada do ponto de vista clínico e científico traz insegurança jurídica para os médicos e impede as prescrições.

“Com uma resolução tão restritiva como a atual, os médicos ficam inseguros para prescrever, dificultando o acesso ao tratamento para grupos importantes, como adultos e idosos portadores de doenças como autismo, dores crônicas e ansiedade, que têm seus sintomas bem controlados por produtos de cannabis medicinal”, analisa Araujo.

Segundo a norma atual, médicos não podem prescrever produtos à base de canabinoides para nenhum desses pacientes. Além disso, a resolução atual veda a prescrição de produtos com THC, ingrediente da maioria dos produtos de cannabis medicinal, inclusive entre os vendidos na farmácia. Atualmente, há inclusive um produto registrado no Brasil com teores igual de THC e CBD.

“Sabemos que os canabinoides são a única alternativa disponível para pessoas com algumas condições refratárias. Logo, se o CFM ampliar as possibilidades de prescrição, teremos um grande benefício para a saúde de milhares, talvez milhões de pacientes idosos e portadores de doenças crônicas”, destacou.

A revisão também pode influenciar o custeio dos tratamentos por planos de saúde. Desde a decisão do STJ a favor do rol taxativo, apenas tratamentos presentes na lista de referência da Agência Nacional de Saúde (ANS) devem ser automaticamente bancados pelos planos. As exceções, serão decididas caso a caso, levando em conta, por exemplo as orientações do CFM sobre cada terapia.

Médicos puxam abaixo-assinado

Um abaixo assinado puxado por um grupo de médicos começou a circular no dia 15 de julho, reivindicando que a consulta pública seja mais abrangente e aceite contribuições de cientistas, pesquisadores, pacientes e demais integrantes da sociedade civil.
De acordo com a BRCANN, as vendas de produtos à base de cannabis medicinal via importação, regulamentado pela RDC 660/2022, da Anvisa, apresentou alta de 110% em 2021 em relação a 2020. Foram concedidas 40.191 novas autorizações para importação destes produtos no ano passado contra 19.150 em 2020, o que representa um crescimento de 21.041 mil em números absolutos.

“O Brasil soma mais de 75 mil pacientes e deve ultrapassar 100 mil até o final de 2022. O tema merece total atenção por parte do CFM”, conclui.

Com Assessorias

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