O Brasil é o segundo país em maior número de população negra no mundo. Só entre 2017 e 2018 essa parcela da sociedade movimentou mais de R$ 1,6 trilhão. Mesmo assim, infelizmente, 78% dos negros e negras estão entre os mais pobres do país e são as principais vítimas de homicídios. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, sendo a população mais vitimada por índices de mortes violentas maiores que a guerra da Síria, por exemplo. Em 2018, dos cerca de 33.590 jovens de 15 a 29 anos que foram assassinados no país, 77% eram negros.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, apesar de serem 55,8% da população brasileira, os negros, que combinam pretos e pardos, representavam uma parcela maior (64,2%) dos desempregados no país em 2018. E quando empregados formalmente, recebiam em média 14,8% a menos que os brancos em postos informais. Estes números traduzem como o negro ainda sofre preconceito e é colocado de lado no mercado de trabalho neste 20 de novembro quando se comemora o Dia da Consciência Negra, data dedicada à luta contra a desigualdade racial no Brasil.
Os dados traduzem também parte da história de Luis Santana (foto), que sofreu muitas dificuldades por causa de sua cor no início de sua carreira. De origem familiar humilde, ele se formou em Análise de Sistemas e fez pós-graduação em desenvolvimento web, graças a muito esforço e dedicação. Contudo, para conquistar os seus objetivos teve que ignorar algumas situações de preconceito durante a sua trajetória.
Enquanto estudava, atuava como técnico de suporte e uma vez estava fazendo testes numa impressora fiscal. A impressora estava numa mesa conectada por um cabo num computador em outra mesa. Pelo fato de não colocar a impressora ao lado do computador, o filho do dono de um pequeno mercado disse que eu estava fazendo serviço de preto. Esse foi o que mais me marcou na época, profissionalmente”, diz Santana.
Não demorou para o analista de sistemas dar a volta por cima e se formar. Hoje é desenvolvedor líder na ROIT, uma empresa de contabilidade e tecnologia em Curitiba (PR), onde gera inovações disruptivas com Inteligência Artificial. “O preconceito ainda é uma realidade na vida do negro aqui no Brasil, infelizmente. Ainda precisamos amadurecer bastante como sociedade, muitas pessoas ainda olham o negro com dó e pena, outras com desprezo e preconceito. Nenhum desses sentimentos são bons. Enquanto isso vamos lutando pra mudar esse contexto”, afirma Santana.
Mulheres negras têm salários menores
Uma pesquisa realizada pelo órgão internacional Oxfam em fevereiro de 2019, em conjunto com o instituto de pesquisas Datafolha, mostrou que aumentou a percepção dos brasileiros em relação à discriminação que sofrem mulheres e negros no mercado de trabalho. Os resultados mostram que 64% dos entrevistados concordam com a afirmação de que “mulheres ganham menos por serem mulheres”, enquanto que 52% admitem que “negros ganham menos por serem negros”, enquanto 72% acreditam que a cor da pele influencia na contratação por empresas.
Os dados mais recentes do IBGE mostram que mulheres ganham em média, 20,5% a menos do que homens, enquanto a diferença entre negros e brancos é ainda maior: de 76%. Neste cenário adverso, uma contadora carioca conseguiu se destacar pela via do empreendedorismo. Aos 39 anos, Flávia de Araujo, especializada em Gestão de Pessoas pela UFF, conta como venceu o preconceito e abriu o próprio negócio, em uma história repleta de desafios e muita luta.
Quando decidiu empreender, Flávia não teve muito apoio, as pessoas não acreditavam, familiares davam um prazo para que a “fantasia” de empreender acabasse antes dos cinco anos. A empresária sempre trabalhou com Contabilidade e abriu mão do emprego, pediu demissão sem nenhuma garantia, nem segurança, nem tão pouco clientes.
É como se tivéssemos que seguir uma fórmula: pobres e negros não empreendem. Ouvimos: ‘estude, tente um concurso público e você vai ter estabilidade’. Ou você escuta que o que você faz não é trabalho. ‘Empreender? Quem você pensa que é? Como você pôde tomar uma decisão dessas sem falar com ninguém? Está pensando que ter alguma coisa nesse país é fácil? Como você deixa seu emprego, para fazer isso?’”, relembra.
Além de gostar de atividades ligadas à organização doméstica, Flávia se deparou com a dificuldade de encontrar bons profissionais para fazer a limpeza de sua residência, até que um casal de amigos fez o convite de conhecer uma feira de franquias, e foi assim que ela se identificou com a proposta de negócio da Mary Help, uma rede especializada em serviços de profissionais diaristas e seleção de mensalistas. Abriu a franquia em 2014 com um investimento em torno de R$ 50 mil. Hoje atende em média 750 clientes.
Não podemos negar a parcela da população composta por negros que veem no empreendedorismo a solução pela falta de opção. Não se trata aqui de uma escolha por ter inúmeras opções, trata-se em muitos casos, de uma única saída pela falta de emprego. Precisamos de políticas públicas de incentivo ao empreendedorismo, em todas as escolas, principalmente em escolas públicas”, diz ela.
Realizada não só em promover a recolocação ao mercado de trabalho, mas em capacitar profissionais para uma prestação de serviço de qualidade e segurança, Flávia comemora e se sente orgulhosa por fazer parte da história de outras pessoas:
Uma de nossas profissionais ligou dizendo que finalmente conseguiu sair da comunidade e comprar sua casa. Temos profissionais que conseguiram realizar a sonhada festa de 15 anos de suas filhas. Recentemente recebi uma carta em agradecimento de uma profissional que estava saindo da depressão. Falou da grande responsabilidade que temos sobre a vida de muitas mulheres. Me emocionei muito”, conta a empresária.
Consumidores acham ‘estranho’ ser atendidos por negros
Pesquisa recente do Grupo Croma com 1.814 pessoas mostra que 3% dos entrevistados (55, ao todo) declararam achar estranho ser atendido por um negro. Outros 56% assumem que as empresas têm preconceito ao contratar negros e 32% dizem que as marcas presentes no Brasil reproduzem comportamentos preconceituosos. Além disso, 16% acreditam que as marcas correm risco ao associar sua imagem a negros.
O levantamento revelou que 18% dos entrevistados assumiram ter tido, pelo menos uma vez, atitudes racistas. Apesar de questionável, pelo fato desse percentual ser potencialmente maior, reconhecer o preconceito racial é ponto de partida para alguma mudança. Nesse sentido, 37% concordam que a propaganda no Brasil ainda é racista.
Se o preconceito racial explícito existe, o velado parece ser igualmente presente, já que 70% acreditam que a diversidade deve fazer parte das empresas e marcas. Esse paradoxo cria uma gestão absolutamente complexa para as marcas, que são atacadas ou criticadas quando assumem ou não uma posição.
Com o passar dos anos, depois do avanço das redes sociais, as marcas começaram a dar mais atenção não só aos negros, mas ao público LGBTI em comerciais e propagandas. Para os organizadores do estudo, esses dados podem servir como mais um alerta para a quebra de padrões estéticos racistas e promover uma verdadeira inclusão social, ampliando a presença dos negros na publicidade e no quadro de funcionários das empresas.
A pesquisa Oldiversity entrevistou 1.814 pessoas, de diversas regiões do país, classes sociais (ABC), idade de 16 anos acima e opções sexuais variadas. A intenção é investigar como as marcas estão ligadas à longevidade e diversidade de orientação sexual, gênero, raça e pessoas com deficiência, e mostrar como elas estão se adequando a novos anseios e realidades sociais.
Empresas celebram a data e defendem diversidade
Aos poucos, porém, a realidade nas grandes empresas está mudando quando o assunto é igualdade racial. Na ROIT, por exemplo, a vida de Luis Santana e de outros funcionários serviu como inspiração para que a empresa iniciasse uma campanha nas redes sociais em defesa da diversidade, condenando fortemente as desigualdades e os preconceitos sociais. A campanha procura mostrar para as pessoas que o preconceito não pode ser admitido, e que as diferenças existem e precisam ser valorizadas no meio empresarial. Outros tipos de discriminação também foram abordados, como a de gênero, orientação sexual, idade, religião, deficiências e classe social.
Na ROIT o que importa é a competência profissional de cada um, uma boa relação interpessoal, trabalho em equipe, empatia e vontade de fazer acontecer. Suas características físicas, gênero ou sua orientação sexual, por exemplo, não nos dizem respeito, e a ninguém. Mas, é preciso auxiliar na conscientização porque nem todos aceitam o outro como ele é, e agem com preconceito. Se cada um fizer a sua parte, principalmente as empresas institucionalmente as quais concentram muitas pessoas, conseguiremos um grande avanço nesta área”, diz Lucas Ribeiro, sócio-diretor.
Instituído em 2011, o Dia da Consciência Negra também vem se tornando cada vez mais celebrada, inclusive no calendário das empresas. A multinacional Japan Tobacco International (JTI), que distribui produtos de tabaco para 130 países, está organizando uma série de ações para conscientizar seus colaboradores e valorizar a trajetória de personalidades negras, exaltando suas contribuições para a sociedade. Inspirada no Ubuntu, um conceito existente em línguas da África Subsaariana, que significa “humanidade para com os outros” ou “eu sou por que nós somos”, a empresa vai realizar ações durante uma semana em suas sedes em São Paulo e Santa Cruz do Sul (RS).
Em parceria com o podcast Negro na Semana, disponível no Spotify e outras plataformas digitais, cinco episódios são divulgados aos colaboradores e público em geral desde o dia 11 de novembro. Eles abordam as histórias inspiradoras de Nelson Mandela, Martin Luther King, Angela Davis, Lázaro Ramos e Luana Génot. O objetivo é empoderar as pessoas por meio do resgate dessas grandes personalidades. Outros nomes também fazem parte das ações: materiais com minibiografias de José do Patrocínio, Maria Firmina dos Reis, Teresa de Banguela, entre outros, serão compartilhados aos colaboradores, explicando seus papéis históricos.
Flavio Goulart, diretor de Assuntos Corporativos e Comunicação, diz que a essa expressão Ubuntu foi escolhida para representar a campanha por estar “conectada aos valores da organização, trazendo uma noção muito forte de comunidade, respeito, confiança, compartilhamento e generosidade’. Segundo ele, a empresa conta com milhares de pessoas de mais de 110 nacionalidades. “A JTI é o que é por causa de cada um desses colaboradores e dessa grande comunidade que se formou na qual as habilidades, diferenças, conhecimentos e trabalho têm um objetivo comum”, afirma.
A equipe da JTI em São Paulo poderá assistir a uma palestra sobre o tema dia 29 de novembro, com transmissão ao vivo para os colaboradores das demais unidades. A companhia contará ainda com uma decoração especial com tótens contendo obras e patterns da cultura africana e afro-brasileira.
É preciso mais agilidade para punir crimes de injúria e racismo
Frequentemente, diversos casos de injúria e racismo vêm à tona, repetindo uma história secular. Os episódios mais recentes foram dentro dos campos de futebol, dentro e fora do Brasil, nos quais jogadores e seguranças ouviram gritos de “macaco” ou comentários pejorativos sobre sua cor.
Pesquisa divulgada pela Rede Nossa SP, na semana passada, valida a percepção de que a existência de leis rígidas contra o racismo não consegue mudar o que está na estrutura da nossa sociedade. A maioria dos pretos e pardos da cidade de São Paulo, por exemplo, acredita que o preconceito e a discriminação contra a população negra se manteve ou aumentou nos últimos 10 anos.
Em pleno século 21, o que fazer para mudar esse cenário? Na opinião de Edson Knippel, advogado criminalista especializado em direito processual penal e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o racismo é estrutural no Brasil e precisa ser desconstruído em todas as esferas: no trabalho, na escola, no lazer, nas relações pessoais. “Não se pode tolerá-lo nem em forma de piada”, alerta.
Para o professor Yuri Sahione, também advogado criminalista, as leis que punem tanto injúria racial quanto racismo são rígidas, mas precisam de um olhar prioritário do Estado. “Estado, poder judiciário e polícia precisam estar preparados e melhor equipados para que processem esses casos de maneira ágil”, afirma.
O professor e especialista em Direito Penal, Leonardo Pantaleão, lembra que injúria racial possui pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa. “É um crime contra a honra subjetiva da vítima. Somente se processa mediante representação do ofendido”, explica. “Já o crime de racismo é quando o infrator pratica uma ofensa coletiva, atingindo um número indeterminado de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça, sendo inafiançável e imprescritível”.
O ato de impedir ou dificultar o acesso de um número indeterminado de pessoas a serviços, empregos ou estabelecimentos comerciais, por exemplo, é enquadrado no crime de racismo. Há, ainda, a previsão de crime de fabricação, distribuição ou veiculação de símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Sahione recomenda que, em caso de crime, a vítima não perca tempo em denunciar. “Se for possível, filme. Ou reúna testemunhas que possam ser intimidas a depor. Em caso da Internet, dê print na tela, anote o endereço da página. Todos esses elementos são provas e devem ser levadas às autoridades o quanto antes”, recomenda. “Se não há punição, a sociedade acaba vendo o crime de racismo ou de injúria como aceitável”, finaliza.
Dia da Consciência Negra
Idealizada pelo poeta, professor e pesquisador Oliveira Silveira – integrante do primeiro movimento a festejá-la, o Grupo Palmares, a data tem como objetivo ser um momento de reflexão sobre a inserção do negro na sociedade brasileira levantando questionamentos sobre discriminação, igualdade social, inclusão, construção de estereótipos e valorização das culturas afro-brasileira e africana. O dia foi escolhido por ser o aniversário da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares consagrado herói nacional por sua luta pela libertação dos negros escravizados.
Com Assessorias