O 19 de junho tem uma razão especial para o ex-relojoeiro goiano Elvis Magalhães. Em 18 de junho de 1988, aos 21 anos, ele estava internado no Hospital Universitário de Brasília (HUB), por causa da anemia falciforme – – hoje chamada de Doença Falciforme –, e não deixou em paz a médica até que ela permitisse que ele fosse para o show de sua banda favorita no Estádio Mané Garrincha, com cerca de 50 mil pessoas.

Mas a apresentação da banda Legião Urbana terminou em confusão e antes do tempo previsto. O jovem radicado em Brasília e com nome de astro do rock saiu encolhido. Teve medo. Além da situação, sentia as dores no corpo causadas pela doença. Mas não se arrepende. “Nem foi tempo perdido. Somos tão jovens”, cantou Renato Russo, para alegria de Elvis.

Ele também queria cantar, se divertir. “A música da minha vida é aquela. Quem acredita sempre alcança” (Mais uma vez, da Legião Urbana). Além das lembranças do show, junho virou um mês forte para ele por outro motivo. O dia 19 viria a ser, a partir de 2008, o Dia Mundial da Conscientização sobre a Doença Falciforme. E junho se tornou o mês de cantar mais alto.

Hoje atuando como coordenador científico da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal), Elvis defende políticas públicas e, assim como outros pacientes, a maior parte deles da raça negra, denuncia que a doença é invisibilizada pelo racismo estrutural existente no país e está presente também nas políticas públicas de saúde.

“A doença foi diagnosticada há mais de um século e só foi avançar nas políticas públicas em 2005”, afirma Elvis. Para ele, o racismo e a invisibilidade ainda comprometem o atendimento no sistema público.  Hoje, aos 56 anos, o ex-relojoeiro diz que nunca deixou de acreditar e insistir com outras pessoas na luta contra a doença, que causa dores fortes e que pode levar à morte.

Primeiro paciente a receber transfusão no Brasil

Brasília (DF) - Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, Elvis com seu irmão Elder. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Aos 38 anos, Elvis recebeu o transplante de medula óssea do irmão Elder. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

Os pais de Elvis descobriram a doença falciforme quando ele ainda era criança. Ele conviveu com dores indefiníveis e incontáveis internações demoradas. Fã de rock e com nome de um ídolo, ele se tornou o paciente mais velho do Brasil a receber um transplante de medula óssea para se curar da enfermidade. Tinha 38 anos de idade quando se submeteu ao procedimento para colocar fim às crises em que precisava até de morfina.

“Após centenas de internações, fui indicado porque tinha muita crise de dor”, conta. Em 2005, fez o procedimento na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de Ribeirão Preto (SP). Para realizar o transplante, ele descobriu que o irmão, Elder, quatro anos mais novo (que não tinha a doença) era 100% compatível.

Mais tarde, Elvis também precisou receber um fígado em outro transplante. Outra terapia que o relojoeiro descobriu foi escrever. Fez uma autobiografia: Quatro décadas de lua minguante. Páginas especiais são dedicadas ao irmão.

“Nunca briguei na vida com ele. Sempre foi um amigo. Tinha certeza de que ele era compatível”. O irmão, Elder, sabe que Elvis faria o mesmo por ele se precisasse. “Foi emocionante quando soube que poderia ajudá-lo”.

Atualmente, o dirigente da Fenafal explica que o transplante de medula tem sido feito até com compatibilidade de 50% entre paciente e doador. No Distrito Federal, por exemplo, o hemocentro cadastrou, durante o ano de 2023, 26.510 doadores de sangue.

Já as pessoas cadastradas no banco de doadores de medula óssea foram 1.283 pessoas. Cabe ao hemocentro “o fornecimento de todos os hemocomponentes necessários para as transfusões demandadas no tratamento dos pacientes com doença falciforme”.

A Fundação Hemocentro explica que o candidato à doação pode colher sangue e se cadastrar como doador de medula óssea no mesmo dia. “Nesse caso, basta agendar a doação e, no dia do atendimento, informar logo na primeira etapa que também deseja se cadastrar como doador de medula”, esclareceu a entidade em nota.

‘Minha sorte é que meu diagnóstico foi bem precoce’

Já o servidor público paraibano Dalmo Oliveira, de 56 anos, nascido em Guarabira e radicado em João Pessoa, aprecia o forró e as festas de São João, que ocorrem nesta época do ano, principalmente em Campina Grande (PB). Diagnosticado com a doença falciforme quando era criança, hoje ele faz parte da Associação Paraibana dos Portadores de Anemias Hereditárias.

“Só descobrimos porque minha mãe me levou para fazer exames em João Pessoa. A minha sorte é que o diagnóstico foi bem precoce para aquele momento. E isso me salvou e me deu uma qualidade de vida até hoje”, conta.

O tratamento limitava-se à transfusão de sangue. Dalmo se lembra- que precisou fazer transfusão de sangue até os 15 anos de idade. As crises foram diminuindo à medida que foi envelhecendo. Ele então resolveu depois ajudar pessoas que entendiam pouco sobre a doença.

“Como a doença atinge mais fortemente as pessoas negras, existe ainda hoje uma negligência. Nos estados brasileiros onde a população negra é mais presente, a doença também é mais presente. Mesmo assim, a gente ainda encontra médicos e enfermeiros desinformados sem saber como tratar o paciente que chega à unidade”, afirma.

Aconselhamento genético aos pacientes que querem filhos

A anemia falciforme tem característica hereditária (pode passar de pais para filhos, se ambos os genitores tiverem o traço da doença). Ocorre por causa de uma mutação genética, com a alteração no formato das hemácias (formato de meia-lua ou foice).

Isso gera um problema na produção da hemoglobina, proteína que dá a cor vermelha ao sangue e é responsável por transportar o oxigênio pelo corpo. A doença ocorre por lesões vasculares e anormalidade na coagulação. Entre os sintomas, dores fortes pelo corpo e cansaço.

Pai de cinco filhos, nenhum deles com anemia falciforme, Dalmo cobra das autoridades médicas que proporcionem e conscientizem sobre o aconselhamento genético para casais que pretendem ter filhos. “Um exame de sangue simples, que é a eletroforese da hemoglobina, gratuita pelo SUS, pode identificar se os pais carregam genes com a possibilidade de ter um filho com a doença”.

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Impacto social da doença falciforme

A médica Joice Aragão de Jesus, coordenadora de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, também entende que a história do cuidado com a doença falciforme mostra que o problema não ganhou a atenção devida em vista de os pacientes serem da população negra e de maior vulnerabilidade.

“O racismo institucional é um processo sutil na população brasileira. Isso tem impacto também na qualidade da assistência prestada a essa população”, ressalta.

Ela diz que até 2005 não existiam protocolos no Sistema Único de Saúde (SUS), com orientação de tratamentos. “Naquele ano foi publicada a primeira portaria criando a Política Nacional de Atenção Integral às pessoas com Doença Falciforme”.

Daí em diante, foram estabelecidos protocolos de tratamento de cuidados na rede de hemocentros. “De 2005 a 2015, houve participação e realização de simpósios internacionais e nacionais. Então a doença ganhou mais visibilidade dentro da emergência dos hospitais e nos ambulatórios”.

Ela considera que, nos últimos anos, houve uma desativação de políticas públicas e menos atividades de capacitação e pesquisa. “De fato, há um impacto não só pela pandemia. Houve um arrefecimento nas atividades referentes às políticas públicas”.

A médica diz que o atual programa é uma referência como política de qualidade dentro do SUS.

“Nós tivemos uma projeção internacional em cooperação com países da África, por exemplo (leia mais aqui sobre o tema). Agora, estamos retomando. A ciência tem possibilitado melhoria na qualidade de vida. Nós mudamos a história natural da doença, que era de morrer até os cinco anos de idade”.

Doença ainda tem pouca divulgação

A cientista social Maria Renó Soares, coordenadora da Fenafal, que reside em Belo Horizonte (MG), lamenta a baixa visibilidade da enfermidade. “Mesmo sendo a doença hereditária com maior prevalência no Brasil, pouco se fala. Por ser prevalente na população negra, é pouco divulgada. A gente ainda tem muita dificuldade de acesso ao tratamento. E isso se dá devido ao racismo”, avalia.

Brasília (DF) - Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, Maria Soares Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Anemia falciforme foi invisibilizada pelo racismo, diz a cientista social Maria Soares (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

Ela explica que há uma estimativa de mais de 100 mil pessoas com a doença: “95% das pessoas com a doença são negras e a maioria é beneficiária do Bolsa Família. A maior dificuldade é de acesso ao tratamento, às medicações, às novas tecnologias. Principalmente no que diz respeito à urgência e emergência”.

A cientista social lamenta que  a mortalidade pela doença no Brasil ainda é muito alta. “Há sobrevida de pessoas de até 42 anos e a morte de mais de 30 mil pessoas por ano no Brasil, que poderiam ser evitadas se tivessem acesso ao tratamento adequado”.

Um dos medicamentos utilizados é a hidroxiureia, de alto custo e que deve ser distribuído pelos poderes públicos. A coordenadora da Fenafal diz que uma demanda importante é a autorização para que o Ministério da Saúde autorize o remédio já fracionado para a criança, a fim de evitar que haja a manipulação incorreta do medicamento a partir do mesmo remédio dado ao adulto.

Uma política pública importante foi a possibilidade de o Teste de Pezinho poder fazer o diagnóstico precoce. Isso pode salvar a vida da criança, já que o tratamento pode ser iniciado mais cedo.

Agenda Positiva

Para proporcionar mais conhecimento sobre a doença falciforme, o Ministério da Saúde promove, nesta segunda-feira (19), em Brasília, quatro palestras, das 9h às 12h, com profissionais de saúde especialistas no tema. O encontro será no auditório PO 700, na Avenida W5.

No dia 22 (quinta-feira), no mesmo local, a coordenação da Fenafal promove seminário nacional, das 13h às 17h, e uma audiência pública no Senado, de manhã (a partir das 9h). O telefone para informações é o (31) 99199.6985.

Da Agência Nacional, com Redação

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