Mais de sete semanas depois de ter solicitado ao Estado, menina de 11 anos que engravidou após ser vítima de um estupro, conseguiu acessar seu direito e realizar o procedimento para interromper a gestação. O Ministério Público Federal (MPF) informou, no começo da tarde desta quinta-feira (23), que o procedimento de interrupção de gestação foi realizado.

De acordo com a assessoria de imprensa do MPF, o aborto foi realizado na quarta-feira (22). Em comunicado, o MPF informou que o hospital “comunicou à Procuradoria da República, no prazo estabelecido, que foi procurado pela paciente e sua representante legal e adotou as providências para a interrupção da gestação da menor”.

A decisão judicial dada pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, da Vara Cível da Comarca de Tijuca, em Santa Catarina, gerou enorme controvérsia, sobretudo nas mídias sociais, esta semana. Tudo porque a magistrada negou a uma menina de 11 anos, vítima de estupro, a possibilidade de realizar um aborto, que é consentido por lei, porém, ainda moralmente condenado pela sociedade.

De imediato, grupos de opiniões distintas passaram a comentar a decisão, muitas vezes com acusações a quem pense de forma diferente. Grupos que são contra o aborto saudaram a decisão judicial, ressaltando que a vida do feto deve ser preservada como qualquer vida humana. Para esse grupo, quem pensa de forma diferente colabora para interromper uma gestação natural e comete um homicídio, o que é condenável perante as leis dos homens e de Deus.

Do outro lado, os grupos favoráveis ao aborto entendem que houve um abuso por parte da Juíza, que teria induzido a menina a não realizar a interrupção da gestação. Argumentam que a mulher deve dispor de seu corpo e ter a liberdade de optar pela manutenção da gravidez ou não e ainda, no caso específico, estamos analisando o caso de uma menina de 11 anos, uma criança sem condições de saber qual a melhor opção para si, mas que terá que arcar com a decisão que for tomada.

Em casos de estupro, não precisa de decisão judicial

Para o advogado cível Francisco Gomes Junior, não se trata de uma questão opinativa, mas legal. “Discussões à parte, o aborto atualmente não é permitido no Brasil, com algumas exceções expressamente previstas, dentre elas em caso de gravidez decorrente de estupro e risco à vida da gestante. Comprovada a exceção, a lei permite o aborto que é oferecido gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Portanto, cabe aos magistrados aplicar a lei e no caso específico, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina analisará comportamento e decisão da juíza”.

Para evitar a realização do aborto, a juíza Joana Ribeiro teria determinado que a menina permanecesse em um abrigo. Esta decisão já foi revogada e a menina saiu do abrigo e voltou para a mãe. A família definirá sobre a interrupção da gravidez, como deve ocorrer.

“É importante destacar que em casos de estupro não há necessidade de decisão judicial para realizar o aborto. Os próprios hospitais credenciados podem realizar o aborto nesses casos previstos em lei. Por fim, vale ressaltar que não há limite de idade gestacional para a realização do aborto”, avalia Gomes Júnior.

Segundo ele, deve ser tomada a melhor decisão para a menina pensando-se no seu passado (sofreu abuso com 10 anos de idade), seu presente (foi colocada em um abrigo e afastada da família) e seu futuro (as consequências em caso de manutenção da gravidez e em caso de interrupção).

Cartilha sobre aborto desinforma e provoca medo nas vítimas

Uma nova cartilha elaborada pelo Ministério da Saúde afirma que não existe aborto legalizado no Brasil e que, portanto, toda prática de aborto constitui crime. “Não existe aborto legal. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”, diz o texto da cartilha.

O texto indica que mulheres que invocarem o direito legal para realizar o procedimento serão investigadas pela polícia. A jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles, do Escritório Valles & Valles, explica que quando qualquer pessoa denuncia um crime, todos os envolvidos no fato são investigados. “A polícia verifica todas as informações de todos os envolvidos, mas isso não quer dizer que as vítimas serão tratadas como suspeitas em investigações de estupro“, diz.

Aborto para vítimas de estupro é legalizado no Brasil

Quando uma mulher é violentada e procura atendimento médico, o fato já é comunicado à polícia, que elabora um boletim de ocorrência. A vítima passa por exames de corpo de delito para coletar vestígios e resíduos que permitam a futura identificação do criminoso.

“Esse boletim de ocorrência vira um inquérito policial porque estupro é um crime de ação penal pública incondicionada, não depende de representação da vítima. Mesmo que ela não queira dar continuidade a essa investigação, isso não a impede de ter o direito de abortar”, completa a advogada.

Mesmo quando a vítima de estupro não denuncia o crime e descobre a gravidez posteriormente, afirma Jacqueline, ela também tem direito ao aborto.

“Só que quando é iniciado o processo para a realização do aborto, é feita a investigação. Mas não é a mulher que é investigada e, sim, a autoria do crime. Ainda assim a vítima não precisa que a investigação seja concluída para que ela tenha direito a realizar o procedimento previsto na lei. A cartilha do Ministério da Saúde mais confunde que explica e tem um jogo de palavras que gera desinformação e pode desestimular ainda mais as denúncias de estupro, um crime que já é subnotificado no Brasil”, afirma.

Dados do Ministério da Saúde divulgados na imprensa mostram que, entre janeiro de 2021 e fevereiro deste ano, foram realizados 1.823 procedimentos de aborto autorizados por lei no Brasil. A advogada criminalista esclarece que todo aborto feito dentro das regras da legislação é legal.

“O aborto no Brasil é legalizado em três circunstâncias: duas estão no Artigo 128 do Código Penal – estupro e risco à vida da mãe; e uma é jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) – fetos anencéfalos. Então esse jogo de palavras usado na cartilha não corresponde à realidade. Só serve para confundir e vitimizar ainda mais as mulheres”, explica.

A jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles (Foto: Divulgação)

Mais de 56 mil estupros em 2021

 

Em 2021, o Brasil registrou 56.098 estupros de mulheres. A cada 10 minutos, uma mulher foi violentada. E, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ainda há uma subnotificação considerável no registro dos casos. Os dados revelam que durante a pandemia (entre março de 2020 e dezembro de 2021) houve um aumento significativo dos casos de violência sexual contra meninas e mulheres, chegando a um total de 100.398 registros.

“As vítimas precisam se sentir seguras e acolhidas para denunciar os crimes. Espalhar desinformação contribui para que crimes e criminosos não sejam investigados e permaneçam impunes. A sociedade, os entes jurídicos e o governo têm que garantir que as vítimas tenham segurança para denunciar e recebam o acolhimento necessário em um dos momentos mais difíceis das vidas dessas mulheres”, finaliza a jurista.

Com Assessorias

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