Se o volume de estímulos tem colocado à prova a capacidade de concentração dos adultos, imagine o efeito desse turbilhão desafiando a mentalidade de crianças e adolescentes, cujo discernimento ainda está em construção?  “Após uma distração, um estudante leva até 20 minutos para restaurar o foco e a atenção, diz a pediatra Anna Bohn, especialista pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Quando se descobre que, após olhar o celular, o cérebro humano leva 14 minutos para entrar em atenção plena de novo, torna-se natural pensar medidas que estanquem este e outros sintomas até piores causados principalmente em crianças e adolescentes. O Grupo de Saúde Digital da SBP alerta: a dependência virtual é um problema crescente que pode afetar o padrão de sono e a fisiologia da produção hormonal dos neurotransmissores, como a dopamina e o cortisol, que influenciam diretamente nas etapas de crescimento e desenvolvimento cerebral e mental.

Vivemos em uma era digital, em que a tecnologia faz parte do nosso dia a dia, mas infelizmente temos que assumir que fomos negligentes quanto ao letramento digital, nosso e de nossos filhos”, reflete o pediatra Paulo Telles. Ele lembra que, segundo dados do IBGE, 90% das crianças e adolescentes estão conectadas à internet, dos quais 95% usam celular como fonte principal de navegação.

O médico faz parte do Movimento Desconecta, que debate a regulamentação do uso de celulares nas escolas, visando barrar os efeitos negativos na formação das crianças e adolescentes. “O uso adequado pela escola é importante e pode ajudar no processo educacional, mas, da forma que temos visto, certamente atrapalha o desenvolvimento emocional, cognitivo e social dos nossos filhos”, observa.

Em sua visão, o assunto abarca a necessidade de muitas frentes conjuntas de ação, e o pontapé inicial é dado em casa. “Precisamos de muito mais que um simples alerta na capa dos aparelhos ou jogos, afinal já temos isso e seria só olhar a faixa etária indicativa de cada jogo ou app antes de baixar. Mas, a realidade é outra: os pais não checam e nem seguem as orientações. Letramento digital também é essencial para que pais possam iniciar toda esta proteção dentro de casa”, enfatiza o Dr. Paulo.

Não podemos mais uma vez falhar neste processo, como fizemos ao liberar o uso para nossos filhos, é absolutamente primordial educar, orientar, informar e conduzir este processo com pais, alunos, e escola, estabelecendo limites, restrições e regras para garantir um ambiente saudável e propício ao desenvolvimento de nossos filhos”, pontua o pediatra.

Sociabilização e saúde mental em risco

Dr. Paulo reflete que a escola é um lugar de convívio, interação e aprendizado, onde crianças e adolescentes devem desenvolver habilidades sociais e emocionais fundamentais para a vida. Ele enxerga o celular como uma distração, um obstáculo para a concentração e o aprendizado. É nosso papel como pais e educadores orientar nossos filhos sobre o uso responsável da tecnologia”, convida o médico.

Vamos incentivar mais momentos de contato humano, mais conversas olho no olho, mais interações reais. Vamos ajudar nossos filhos a enxergarem a importância de estabelecer conexões verdadeiras, de viver o momento presente e de se desenvolver plenamente, longe das telas.”, receita o Dr. Paulo.

Por fim, o especialista em pacientes infantis e adolescentes lembra a complexidade que é característica da própria vida e precisa ocupar seu espaço na vivência do ser humano desde pequeno.

A vida real tem um algoritmo muito mais complexo, com frustrações, emoções variadas, relações boas e ruins, quedas, acertos e erros, ganhos e perdas. Estar muito conectado atrapalha a forma que as crianças encaram o mundo real, deixando a realidade parecer dura, triste e muito abaixo das suas expectativas. Em um momento de mudanças emocionais e neurológicas como a infância e adolescência, é preciso presença para aprender a lidar com sentimentos que ainda não são capazes de suportar e administrar”, enfatiza o pediatra.

De que forma o aparelho prejudica a experiência da criança em aula?

A médica faz menção à pesquisa de monitoramento da educação global encabeçada pela Unesco e que joga luz sobre o uso das tecnologias nos ambientes de aprendizado. O relatório, segundo ela, cita diferentes estudos ao redor do mundo. “Um deles, realizado em 14 países, entre diferentes faixas etárias, concluiu que somente a presença do celular na sala, ou próximo, já causa distração”, conta Dra. Anna.

Ela explica que as inquietações aparecem com a simples percepção de uma notificação da rede social, do aplicativo ou do jogo instalado, assim como distrações a partir de uma mensagem na tela fechada. “Imagina eventos como esses acontecendo diversas vezes ao dia?”, questiona a especialista a respeito do efeito desse comportamento no aprendizado.

A médica conta que o relatório da Unesco aponta reflexões, estudos e orientações no que diz respeito às ferramentas digitais dentro da sala de aula. “Uma das mais duras recomendações é banir os celulares dentro do ambiente escolar”, informa Dra. Anna, ao acrescentar que países como Bélgica, Holanda, França, Reino Unido, Finlândia e Dinamarca já estudam como realizar a medida. “Estudos em locais que já restringiram o uso perceberam uma melhora objetiva em scores de aprendizado e performance escolar”, diz.

Proteção de dados

O relatório levanta também a bandeira da proteção de dados. “Apenas 16% dos países têm leis explícitas sobre privacidade de dados. Durante a pandemia, de 163 produtos educacionais recomendados, 89% faziam pesquisa com os dados dos usuários. O problema é que os dados pertencem a crianças.

A pediatra lembra que, principalmente após a entrada no contexto pandêmico, muitos governos passaram a usar a educação online de alguma forma, mas “39 dos 42 analisados durante a pandemia infringiram direitos infantis de alguma forma”, revela, ao avaliar: “Crianças não têm maturidade emocional para controlar o uso e entender a complexidade destes dispositivos e das consequências do seu uso exagerado e deliberado”.

Cyberbullying

Uma outra preocupação levantada pelo relatório é a questão do cyberbullying, que Dra. Anna avalia como um aspecto mais difícil de ser identificado pela própria condição virtual das relações. “Um trabalho inglês mostrou que 50% das crianças em escola entre 8 e 11 anos possuem um aparelho celular. Destas, mais de 10% sofrem cyberbullying”, informa a pediatra. Ela revela ainda que a Espanha restringiu o uso de celulares na escola e que, depois disso, os registros de cyberbullying caíram de forma importante, enquanto as notas em matemática e ciências melhoraram.

Por fim, a médica considera que a tecnologia pode, sim, ser usada a favor da educação. “Com boas escolhas de aplicativos, em vez de vídeos sem objetivo e estímulo cognitivo, é possível incluir o aparelho, mas adicionando o contraponto às telas, estimulando as interações sociais, o sono adequado e as brincadeiras ao ar livre para o desenvolvimento infantil”, finaliza.

PRINCIPAIS MALEFÍCIOS DO USO PRECOCE DE CELULAR:

Dependência digital | Ter um celular na mão pode reduzir em 25% a atenção do adolescente, mesmo que não esteja acessando o aparelho, ele fica com o que chamamos de Fear Of Missing Out (FOMO), ou medo de estar perdendo algo nas redes, nos chats, o que invariavelmente atrapalha a atenção na hora das aulas.

Problemas de saúde mental | Irritabilidade, ansiedade e depressão;

Transtornos do sono | Dificuldades para dormir, que afetam o rendimento escolar;

Problemas de alimentação | Sobrepeso, obesidade, anorexia e bulimia;

Sedentarismo | Vontade de ficar com o corpo parado e diminuição da prática de exercícios;

Bullying | Potenciação através do cyberbullying;

Riscos de abuso sexual | Exposição precoce a pornografia, sexting, sextorsão, abuso sexual e estupro virtual;

Transtornos posturais e músculo-esqueléticos | Devido às horas nos dispositivos, sem atenção à postura, em plena fase de construção a amadurecimento da musculatura e estrutura óssea;

Problemas visuais e auditivos | Miopia, síndrome visual do uso excessivo de tela e perda auditiva induzida pelo ruído excessivo dos fones de ouvido.

Transtornos da imagem corporal e autoestima | Automutilação e até suicídio;

Aumento do uso de substâncias | Nicotina, vaping, bebidas alcoólicas, maconha, anabolizantes e outras drogas;

Interferência no desempenho escolar | Piora do desempenho cognitivo e dificuldades de concentração.

 

PRINCIPAIS MEDIDAS PARA SOLUCIONAR O PROBLEMA:

Educação e orientação | Educar, orientar, informar e conduzir o processo de uso do celular com pais, alunos e escola;

Estabelecimento de limites | Determinar limites, restrições e regras para o uso de celulares;

Diálogo aberto | Manter um diálogo aberto e honesto sobre o uso do celular na escola;

Promoção de interações reais | Incentivar mais momentos de contato humano, conversas olho no olho e interações reais;

Regulação e controle | Regular adequadamente as redes sociais e controlar a venda de aparelhos e uso de aplicativos e jogos;

Avisos sobre riscos | Expor avisos obrigatórios sobre os potenciais riscos para a saúde mental dos adolescentes;

Proibição em escolas | Considerar a proibição do uso de celulares em escolas, como já feito em alguns países;

Apoio governamental | Cobrar ações dos governantes para proteger os jovens de assédio, abuso e exploração online;

Letramento digital | Promover o letramento digital para que pais possam iniciar a proteção dentro de casa;

Restrição de recursos prejudiciais | Limitar o uso de recursos como notificações push, reprodução automática e rolagem infinita;

Compartilhamento de dados | Obrigar as empresas a compartilhar dados sobre os efeitos à saúde com cientistas independentes e o público;

Auditorias de segurança | Permitir auditorias de segurança independentes nas plataformas.

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