A crise global das Novas Substâncias Psicoativas (NSP) atingiu um novo patamar de complexidade, exigindo atenção redobrada das autoridades brasileiras. A Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) enviou um alerta neste final de ano sobre a circulação crescente da medetomidina, um sedativo de uso veterinário que vem sendo adicionado ilegalmente ao fentanil nos Estados Unidos.
De acordo com a entidade, a associação entre as duas substâncias está provocando uma nova e preocupante crise de saúde pública, marcada por quadros de abstinência mais graves, prolongados e difíceis de tratar do que os já conhecidos na epidemia de opioides. O toxicologista e patologista clínico Alvaro Pulchinelli Jr., presidente da SPPC/ML, explica que a associação representa um salto de complexidade e risco.
Quando a medetomidina é adicionada ao fentanil, o desafio é muito maior, porque estamos falando de uma substância mais potente, com duração mais longa e efeitos cardiovasculares, neurológicos e psiquiátricos muito mais profundos”, afirma.
Crise de abstinência é potencialmente fatal
Segundo Pulchinelli, além da sedação intensa – que pode levar o usuário a perder a consciência em ambientes inseguros, como ruas e locais expostos ao frio extremo -, a abstinência da medetomidina desencadeia um quadro clínico particularmente instável.
Na retirada da droga, ocorre o efeito oposto: aumento importante da frequência cardíaca, elevação da pressão arterial e um quadro de encefalopatia, com risco real de vida. Não é raro que esses pacientes evoluam para complicações cardiovasculares graves, como infarto, exigindo internação em UTI”, destaca.
O especialista ressalta que esse cenário é mais severo do que o observado com outros opióides, em parte porque a medetomidina tem meia-vida mais longa e atua em receptores alfa-2-adrenérgicos centrais, o que dificulta o controle clínico. Do ponto de vista laboratorial, o diagnóstico também impõe desafios relevantes.
Os exames de rotina dos laboratórios hospitalares e de toxicologia não estão preparados para identificar essa substância. A detecção exige métodos avançados, como cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massa, que precisam ser padronizados e, sobretudo, contar com padrões de referência puros – algo difícil de obter”, explica Pulchinelli.
Na prática, isso faz com que muitos casos sejam diagnosticados principalmente com base no quadro clínico, já que testes rápidos não conseguem detectar a medetomidina. Embora ainda não haja evidências consistentes da circulação da droga no Brasil, o presidente da SBPC/ML alerta que o risco não pode ser ignorado.
Não vivenciamos aqui a epidemia de opioides observada nos Estados Unidos há mais de 15 anos, mas essa é uma substância nova e que pode, sim, ser introduzida no país. Ela precisa estar no radar das autoridades de saúde”, afirma.
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Alerta de saúde: novas drogas sintéticas ameaçam cenário nacional
Já foi identificado no país, em 2025, um novo opióide sintético, o Nitazeno, que havia sido registrado anteriormente na União Europeia.
Além da ameaça da medetomidina — sedativo veterinário que, misturado ao fentanil, causa abstinência severa e riscos cardíacos —, o Brasil já registra em 2025 a presença de nitazenos, opioides sintéticos ultra-potentes anteriormente restritos à Europa. O alerta foi reforçado recentemente durante o 57º Congresso Brasileiro de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, realizado no Rio de Janeiro.
O patologista clínico e toxicologista Alvaro Pulchinelli Jr. destacou em sua apresentação os riscos das novas drogas psicoativas (NPS) e a complexidade que representam para a toxicologia laboratorial e para a saúde pública.
Segundo dados apresentados, apenas em 2024 foram apreendidas 41,5 toneladas de novas substâncias na União Europeia, com 47 drogas detectadas pela primeira vez. Entre elas, os nitazenos chamam a atenção pela potência e pela dificuldade de controle.
Como exemplos, ele destacou que os canabinoides sintéticos podem causar lesão renal aguda, psicose e até morte; as catinonas podem levar a hipertermia, paranoia e arritmia fatal; e opióides extremamente potentes, como o carfentanil, multiplicam o risco de overdose.
O toxicologista também ressaltou o fenômeno do uso combinado de drogas, prática em que estimulantes são utilizados para prolongar a vigília e benzodiazepínicos para induzir o sono. “É uma combinação altamente perigosa”, avaliou.
Fentanil e a “síndrome fetal”
Novas drogas psicoativas e opioides: um desafio crescente para a toxicologia laboratorial e a saúde pública
A preocupação com o fentanil ultrapassou o risco de overdose imediata. Estudos recentes apresentados no congresso da American College of Medical Genetics and Genomics relacionam a exposição pré-natal ao fentanil a uma nova síndrome em recém-nascidos.
Os bebês expostos apresentam malformações que mimetizam a Síndrome de Smith-Lemli-Opitz (SLOS), incluindo:
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Anomalias físicas: Baixa estatura, microcefalia, fenda palatina e pés tortos congênitos.
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Comprometimento metabólico: A droga interfere na síntese do colesterol fetal, essencial para o desenvolvimento cerebral e físico.
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Dificuldade diagnóstica: Não há testes genéticos que detectem a exposição passada, dependendo exclusivamente de exames toxicológicos logo após o nascimento.
A crise dos opioides e os sinais no Brasil
O panorama da crise dos opioides nos Estados Unidos, marcada por overdoses envolvendo heroína, fentanil e derivados, continua em agravamento. Nos Estados Unidos, três “ondas” marcaram a epidemia: a primeira com opióides prescritos, seguida pela heroína e, mais recentemente, pelos sintéticos.
No Brasil, embora o impacto ainda seja menor, o consumo segue em crescimento. A codeína é o opióide mais identificado nas análises laboratoriais, já que sua prescrição é mais simples – exige apenas receita branca carbonada. No entanto, opióides mais potentes, como a oxicodona, também estão em uso crescente no país.
Pulchinelli lembrou que, no Brasil, a prescrição de opióides aumentou antes mesmo do pico das overdoses por fentanil nos EUA. Esse processo expôs a população aos efeitos das substâncias e abriu caminho para usos ilícitos.
Esse movimento, inicialmente concentrado em países desenvolvidos, já se reflete no Brasil, onde têm sido registradas apreensões de canabinoides sintéticos (K2, SPICE), catinonas (“sais de banho”), cocaína rosa, opioides sintéticos (como o fentanil) e os chamados “designer benzodiazepínicos”.
O caso Argentina e o panorama brasileiro em números
A urgência em regulamentar e fiscalizar a distribuição de medicamentos foi sublinhada por uma tragédia recente na Argentina. O país enfrentou uma crise sanitária com pelo menos 96 mortes causadas por fentanil contaminado por bactérias multirresistentes (Klebsiella pneumoniae e Ralstonia pickettii) O incidente expôs falhas críticas na fabricação e distribuição, servindo de aviso para o controle de qualidade rigoroso no Brasil.
O incidente expôs falhas críticas na fabricação e distribuição, servindo de aviso para o controle de qualidade rigoroso no Brasil. Embora a “onda” de sintéticos seja mais forte nos EUA, os dados do Ministério da Saúde mostram um crescimento constante nas internações por opioides no SUS:
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2023: 1.934 hospitalizações.
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2020: 958 hospitalizações.
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Perfil de risco: Jovens com menos de 40 anos e homens são os mais vulneráveis, muitas vezes iniciando o uso através de receitas domésticas (como codeína e oxicodona) antes de migrar para substâncias ilícitas.
Riscos de uma overdose por opioides
Entre os principais fatores de risco para overdose por opioides, o especialista destacou:
- o uso prévio da substância (3,5 vezes mais chance de overdose);
- o histórico de transtornos de saúde mental, como depressão, esquizofrenia e ansiedade;
- os jovens com menos de 40 anos (maior vulnerabilidade) do sexo masculino;
- a influência familiar, quando há uso prescrito em casa – muitas vezes por dentistas -, o que facilita o acesso para filhos e outros parentes.
Criatividade inesgotável do mercado ilícito para driblar a fiscalização
Aumento expõe fragilidades na vigilância toxicológica
Alerta para a rápida evolução das substâncias sintéticas, seus riscos clínicos e os impactos já visíveis no Brasil
Segundo o especialista, o mercado ilícito demonstra uma “criatividade inesgotável”, operando em zonas cinzentas da lei e modificando fórmulas para driblar a fiscalização. “Essa é uma indústria extremamente lucrativa e complexa, com uma criatividade quase inesgotável”, afirmou Pulchinelli chamou atenção para alguns pontos críticos que tornam o enfrentamento desse cenário ainda mais desafiador:
– Zona cinzenta legal: muitas substâncias circulam sem proibição explícita, aproveitando brechas jurídicas que favorecem sua comercialização.
– Variabilidade de composição: os traficantes modificam fórmulas e concentrações conforme o perfil do usuário, aumentando o risco de overdose e morte súbita, inclusive entre iniciantes.
– Dificuldade diagnóstica: os efeitos clínicos nem sempre correspondem ao padrão conhecido das drogas tradicionais. “Se não conhecemos o efeito, não levantamos suspeita, e isso dificulta a atuação dos serviços de emergência”, alertou Pulchinelli.
Pulchinelli destacou ainda alguns obstáculos que precisam ser enfrentados:
- a rápida diversificação das drogas, que pode deixar a legislação defasada;
- a produção clandestina acessível, realizada em pequenos laboratórios caseiros;
- a facilidade de acesso pela internet, que amplia a disseminação cultural do consumo entre jovens;
- os novos efeitos psicoativos, que expõe usuários a riscos inéditos;
- as limitações diagnósticas, já que testes rápidos identificam dezenas de moléculas, mas não acompanham toda a diversidade.
Especialistas pedem urgência na rede de vigilância laboratorial
A estratégia brasileira agora foca na antecipação: fortalecer laboratórios de referência para que o diagnóstico clínico — fundamental em casos de “super-sedação” ou crises de abstinência graves — seja amparado por dados laboratoriais precisos. Além de mais rigor na fiscalização para evitar a entrada de novos opioides e drogas sintéticas, o presidente da SBPC/ML reforçou a necessidade de vigilância e atualização constante da toxicologia laboratorial.
O cenário está se tornando cada vez mais complexo e precisamos estar preparados para identificar e manejar essas intoxicações”, alertou. A espectrometria de massa desponta como solução para maior precisão, mas precisamos de bibliotecas de compostos atualizadas”, afirma Pulchinelli.
Para ele, a resposta passa necessariamente por uma estratégia estruturada de saúde pública. “Precisamos pensar em uma rede de laboratórios de toxicologia, mais bem aparelhados e em comunicação entre si, capazes de apoiar a identificação dessas substâncias emergentes. São mais de 40 ou 50 novas drogas descritas por ano, e nenhum laboratório consegue dar conta disso sozinho.”
Nesse contexto, a Patologia Clínica desempenha papel central tanto na assistência quanto na vigilância. “Em toxicologia, trabalhamos em dois pilares: o suporte à vida, com exames de bioquímica e hematologia fundamentais para estabilizar o paciente, e o desenvolvimento de métodos específicos para detectar a substância envolvida”, explica.
Segundo o especialista, “quando conseguimos estruturar laboratórios de referência, isso contribui diretamente para o diagnóstico, o prognóstico e a tomada de decisão clínica”, conclui Pulchinelli. Para o especialista, fortalecer essa rede é essencial para que o Brasil esteja preparado diante da rápida evolução do mercado de drogas ilícitas e de seus impactos cada vez mais complexos sobre a saúde.
Primeira Norma de Toxicologia no Brasil vai orientar laboratórios
Diante desse cenário, a SBPC/ML lançou recentemente a Primeira Norma de Toxicologia do Brasil (vinculada ao Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos – PALC). O objetivo é padronizar os critérios técnicos e científicos para que os laboratórios nacionais possam identificar substâncias emergentes com a mesma precisão de centros internacionais.
O novo regulamento representa um marco para os laboratórios brasileiros, ao estabelecer critérios técnicos e científicos mais adaptados à realidade nacional e alinhados aos padrões internacionais de qualidade.
Os laboratórios que atuam em toxicologia já precisam ser acreditados por uma entidade reconhecida para exercer suas funções, especialmente nos exames obrigatórios para concursos públicos e renovação da carteira de motorista. Porém, até agora, as opções disponíveis eram onerosas ou pouco ajustadas ao contexto brasileiro. Com a Norma de Toxicologia do PALC, conseguimos oferecer uma alternativa robusta, científica e ao mesmo tempo mais adequada à nossa realidade”, explica Alvaro Pulchinelli.
Hoje, o Brasil conta com duas referências de acreditação na área: o Colégio Americano de Patologistas, de excelência reconhecida, mas de alto custo para os laboratórios nacionais, e a norma ISO 17025, gerida pelo Inmetro, voltada sobretudo para a análise toxicológica em aspectos técnicos.
A proposta da SBPC/ML é mais abrangente, incorporando exigências do Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito), da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), além de diretrizes internacionais. A nova norma busca suprir a carência de diretrizes que unifiquem as exigências de órgãos como Senatran e ANAC com a realidade laboratorial brasileira.
Com Assessorias




