Por Fernando Bianchi*
A judicialização da saúde no Brasil tem se intensificado nas últimas décadas, com um número crescente de ações judiciais que buscam garantir o acesso a tratamentos específicos. Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado um crescimento significativo de ações judiciais na saúde suplementar.
Dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que, em 2023, houve 500 mil novas ações nesse setor, evidenciando a necessidade urgente de reduzir esse número e encontrar soluções mais eficientes e sustentáveis.
É importante incorporar no sistema judiciário regras simples como “sim, é sim” e “não, é não”. No âmbito da incorporação de tecnologias, por exemplo, onde tal medicamento “não” foi incorporado pelos órgãos competentes, como a Conitec, então independentemente se o pedido para fornecimento do medicamento está sendo feito no judiciário, a resposta deve ser “não”, independente das razões do pedido médico do determinado paciente individual. Tal regra inclusive é objeto de tema de repercussão geral nº 1234 no Supremo Tribunal Federal.
A judicialização da saúde privada em matéria de planos de saúde privados é um fenômeno fundamentalmente brasileiro. Em outros países, há pouca incidência desse problema. Em Portugal, por exemplo, os juízes não recebem ações de saúde simplesmente porque não relativizam as políticas públicas de saúde ou os contratos de seguro. Respeita-se o que está no contrato e não há judicialização para demandas cujos objetos estão previstos em contrato e na própria regulação.
O Brasil precisa urgentemente buscar soluções para reduzir a judicialização na saúde suplementar e isso inclui a adoção de práticas mais técnicas e coletivas por parte dos juízes, considerando os impactos econômicos e a efetividade das decisões, inclusive sobre o interesse coletivo.
Por exemplo, uma liminar determinando a cobertura do medicamento Zolgensma no valor de R$ 6,5 milhões para uma pessoa, representa 10.800 diárias de Unidade de terapia intensiva, ou 27 mil sessões de hemodiálise, ou ainda, 65 mil tomografias ou 2 milhões de tratamentos de sífilis, sendo essa última responsável por centenas de mortes infantis.
Custos administrativos de processos recaem sobre reajuste dos planos
No Brasil, a saúde pública tem avançado na redução da judicialização ao optar por juízes amparados em ferramentas técnicas e que levem adiante apenas o que não está claramente definido nas regras regulatórias e normas de saúde pública. Esse modelo poderia ser um exemplo para a saúde suplementar, já que a alta judicialização ainda impacta fortemente a sustentabilidade do setor.
Um dos principais impactos está nos altos custos administrativos e assistenciais para as operadoras de planos de saúde, que precisam precificar seus produtos considerando esses elementos. O resultado é um aumento no valor dos planos de saúde, limitando o acesso dos consumidores à saúde suplementar.
Portanto, é fundamental que os juízes enfrentem o tema da judicialização da saúde sob um aspecto coletivo, em vez de individual, adotando uma perspectiva mais moderna em suas decisões. Antes de deferir liminares e decisões, é crucial que os juízes considerem os impactos econômicos, custo, efetividade, medicina baseada em evidência e os impactos no mercado de saúde privada e coletiva.
A mudança na postura assistencialista do judiciário pode ter um efeito pedagógico no mercado, incluindo a advocacia, ao restringir o acesso ao judiciário apenas para casos verdadeiramente necessários, em vez de burlar ou superar as normas regulatórias e jurídicas existentes em prol de um interesse individual.
Por exemplo, ao analisar o custo-efetividade de uma tecnologia médica, os juízes podem perceber que nem tudo que é novo é necessariamente melhor. Uma tecnologia de alto custo pode drenar recursos significativos e beneficiar apenas uma pessoa, enquanto uma alternativa tradicional, mais barata, pode salvar várias vidas.
O impacto financeiro da judicialização de tratamentos para autismo
Um dos focos principais dessa judicialização é o tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Embora a intenção de proteger os direitos individuais seja válida, a judicialização inadequada pode acarretar impactos negativos significativos para a coletividade dos beneficiários de planos de saúde.
No contexto do TEA, é fundamental reconhecer que o tratamento exige abordagens multidisciplinares. As terapias recomendadas frequentemente incluem Análise do Comportamento Aplicada (ABA), terapia ocupacional, fonoaudiologia e intervenções médicas específicas. No entanto, a eficácia de alguns desses tratamentos ainda é motivo de debate na comunidade científica.
A Constituição Federal de 1988 consagra a saúde como um direito de todos e um dever do Estado (art. 196). Contudo, a insuficiência de políticas públicas e a ineficiência do sistema de saúde pública levam muitos cidadãos a recorrerem ao Judiciário para garantir o acesso a tratamentos.
No âmbito dos planos de saúde, a ANS regulamenta a cobertura obrigatória, mas a ausência de consenso científico sobre determinados tratamentos abre espaço para a judicialização.
Tratamentos experimentais ou não reconhecidos
A judicialização das indicações de tratamento para TEA frequentemente baseia-se em pareceres individuais de profissionais de saúde, muitas vezes desconsiderando o consenso científico ou as diretrizes das agências reguladoras. Essa prática pode resultar na imposição de tratamentos experimentais ou não reconhecidos, gerando uma série de consequências para as operadoras de planos de saúde.
Entre essas consequências está o aumento das despesas operacionais das operadoras, que são obrigadas a custear tratamentos caros, muitas vezes sem comprovação científica robusta. Para manter a sustentabilidade da carteira, essas operadoras acabam repassando os custos aos beneficiários na forma de reajustes nas mensalidades, onerando toda a coletividade.
Além disso, a priorização judicial de determinados tratamentos para um grupo específico pode gerar desigualdade no acesso aos serviços de saúde. Beneficiários com condições igualmente graves, mas diferentes, podem enfrentar dificuldades para obter tratamentos adequados devido à concentração de recursos financeiros em áreas altamente judicializadas.
A imposição judicial de tratamentos específicos pode desestimular as operadoras a investirem em inovação e melhoria contínua dos serviços prestados. Mas o foco em atender demandas judiciais desvia a atenção de iniciativas que poderiam beneficiar um maior número de beneficiários. Além disso, a recorrência a via judicial como solução para problemas de saúde pode enfraquecer a busca por soluções estruturais e políticas públicas eficazes.
Busca legítima por direitos
Embora a judicialização das indicações de tratamento para TEA seja baseada em uma busca legítima por direitos, traz consequências adversas significativas para a coletividade dos beneficiários de planos de saúde. Não resolve os problemas subjacentes do sistema de saúde e pode criar uma dependência prejudicial ao invés de incentivar reformas sistêmicas.
Portanto, é essencial promover um diálogo entre os poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, além das entidades reguladoras e operadoras de saúde, para estabelecer diretrizes claras e baseadas em evidências científicas.
A solução para a judicialização excessiva passa pela criação de políticas públicas robustas, investimentos em pesquisa e desenvolvimento de tratamentos eficazes, e uma regulação mais precisa por parte da ANS. A adoção de protocolos clínicos baseados em evidências e a capacitação dos profissionais de saúde são passos fundamentais para garantir um sistema de saúde suplementar equitativo e sustentável.
A redução da judicialização beneficiará não apenas as operadoras de planos de saúde, mas também os consumidores, ao tornar os planos de saúde mais acessíveis e sustentáveis. Adotar novos modelos de tratamento da judicialização de saúde é preciso. Porque, em um cenário de recursos financeiros limitados, a melhor justiça não é conceder tudo para um em sede de um único processo e nada para a coletividade em razão do esvaziamento dos recursos.
*Advogado, sócio do M3BS Advogados e especialista em Direito da Saúde Suplementar
Referências
- Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
- ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar. Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde.
- Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS). Estudos e análises do setor de saúde suplementar.