Salvar vidas antes mesmo do nascimento. Essa é a missão da medicina fetal, uma especialidade que alia tecnologia, precisão e coragem para intervir ainda durante a gestação em bebês com anomalias congênita. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 6% dos recém-nascidos no mundo apresentam alguma malformação, causando a morte de 240 mil bebês por ano.
De acordo com especialistas, existem algumas malformações ou complicações que ocorrem ainda na barriga da gestante que a cirurgia intrauterina tem benefício comprovado em aumentar a sobrevida neonatal ou melhorar os desfechos da criança, como diminuição da morbidade ou sequelas associadas. Os problemas de saúde mais frequentes nos fetos que permitem uma intervenção dentro do útero são: mielomeningocele ou espinha bífida, transfusão feto fetal, hérnia diafragmática congênita, obstruções da bexiga e cardiopatias congênitas.
A mielomeningocele acontece nas primeiras semanas de gestação, quando o tubo que forma a medula não se fecha adequadamente e produz uma bolsa geralmente no fim das costas. Já na STFF (síndrome da transfusão feto fetal) ocorre uma transferência desigual de sangue entre os fetos, fazendo com que um deles receba mais fluxo sanguíneo do que o outro.
Cada condição tem seu período ideal para intervenção. Por exemplo, cirurgias para a síndrome da transfusão feto fetal são feitas entre 18 e 25 semanas e 6 dias. A mielomeningocele, entre 20 e 26 semanas e 6 dias. A técnica consiste na intervenção com o feto ainda no útero materno para corrigir a malformação na medula espinhal. Já a oclusão traqueal na HDC ocorre entre 26 e 28 semanas.
Menos de 20 centros especializados no Brasil
Após o nascimento, muitos desses bebês precisam de cuidados multidisciplinares contínuos, reforçando a importância de realizar esses procedimentos em centros especializados. No Brasil, menos de 20 centros médicos realizam esse tipo de procedimento, a maioria deles na rede privada. Mas no Sistema Único de Saúde (SUS) também é possível encontrar o procedimento em hospitais públicos.
Um deles é o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IECPN), no Rio de Janeiro, onde as cirurgias fetais de mielomeningocele já chegaram ao 80. O procedimento de alta complexidade envolve uma equipe multidisciplinar que reúne os obstetras da Maternidade Escola da UFRJ e os neurocirurgiões do IECPN. Tudo para garantir um cuidado completo e especializado para a mãe e o bebê, com o objetivo de diminuir as complicações da doença.
Essa cirurgia é um divisor de águas para a medicina fetal. As crianças que têm a mielomeningocele nascem paraplégicas. Com a cirurgia, nós conseguimos salvar pelo menos 40% a 50% dessas crianças. Somos uma instituição que recebe os pacientes mais difíceis e mais complexos”, afirma o diretor do IECPN, Paulo Niemeyer .
Hospital no Rio atende pacientes de outros estados
Das 80 cirurgias realizadas no IECPN até hoje, 25 pacientes vieram de fora do estado do Rio de Janeiro, sendo 6 do Distrito Federal; 5 de Santa Catarina; 4 da Bahia; 3 do Espírito Santo; 2 de Minas Gerais e 5 (um de cada) dos estados de São Paulo, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Sul e Pará. O período ideal para a realização da cirurgia é entre as 19 e 26 semanas de gestação. O diagnóstico é realizado através da ultrassonografia, que pode ser complementada pela ressonância magnética fetal caso haja necessidade.
A gestante Daniele Ramos, de 25 anos, que veio acompanhada da sogra do estado do Pará, foi a paciente de número 80 operada no IECPN. Ela descobriu o problema após uma ultrassonografia realizada em sua cidade natal, Dom Eliseu, que fica a mais de 435 quilômetros de Belém.
Fui muito bem recebida aqui. Realizei os exames pré-operatórios na maternidade da UFRJ em apenas um dia. Estou com 22 semanas e tenho fé de que tudo dará certo”, disse Daniele, que passa bem e já retornou para a sua cidade. Seu bebê é um menino que se chamará Guilherme. Até o final da gestação, ela será monitorada pelas equipes do IECPN e da Maternidade Escola da UFRJ.
bebê e a mãe são anestesiados para não sentir dor
A parceria entre o IECPN e a Maternidade Escola da UFRJ é fundamental para oferecer essa opção de tratamento inovadora e de alta complexidade para casos de mielomeningocele. A cirurgia, que leva cerca de quatro horas, é dividida em três etapas. Em um primeiro momento, a equipe da obstetrícia acessa o feto através de uma incisão no abdômen da mãe semelhante a uma cesariana, quando o útero é exposto.
O bebê e a mãe estão anestesiados e não sentem qualquer dor. Na sequência, o feto é estabilizado para impedir o seu movimento. Os neurocirurgiões usam uma técnica minimamente invasiva, onde a correção na coluna é realizada com o uso de microscópio para auxiliar na visualização e precisão. O procedimento melhora a função motora do bebê, permitindo mais autonomia e qualidade de vida.
A parceria da Maternidade Escola da UFRJ com o IECPN completará 8 anos em dezembro e tem viabilizado um projeto de sucesso e importância nacional no SUS, contando com a expertise das equipes e com a estrutura e tecnologia já disponíveis nas instituições”, disse a gerente de Atenção à Saúde da Maternidade Escola CH-UFRJ, Penélope Saldanha.
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Na rede privada, outro exemplo de instituição que investe na medicina fetal é o Hospital e Maternidade Sepaco, referência em casos de alta complexidade materno-infantil, em São Paulo. Cada caso mobiliza a equipe médica — e deixa marcas profundas em quem atua nessa linha tão delicada entre a vida e a morte.
Jucilea Pereira Milhomem, mãe das gêmeas Laura e Lorena, sabe muito bem como a medicina fetal tem cada vez mais salvado vidas de bebês ainda não nascidos. Em janeiro, ainda grávida, Jucilea descobriu, durante uma ultrassonografia feita em Jundiaí, onde mora, que as filhas apresentavam a síndrome da transfusão feto fetal, o que impedia o crescimento de uma delas.
Eu nunca tinha ouvido falar nessa síndrome. Mas no hospital me explicaram tudo direitinho, inclusive o risco de perder os bebês”, contou. Transferida no mesmo dia para o Sepaco, ela foi submetida a um procedimento cirúrgico. Os exames mostravam que as bebês estavam se desenvolvendo, mas uma delas tinha essa restrição de crescimento.
Ela quase não tinha líquido em sua bolsa, estava toda coladinha na membrana. “Tive muito medo da cirurgia, foi a primeira operação que fiz na vida, mas eu segui confiante. Fui com a fé que eu tinha e na confiança na média que me atendeu”, relembra Jucilea.
Entenda a cirurgia minimamente invasiva
A intervenção cirúrgica minimamente invasiva, feita por via endoscópica, e chamada ablação de anastomoses placentárias, utilizou um laser para cauterizar os vasos e interromper a circulação anormal entre os fetos na placenta. Após o sucesso da cirurgia, as gêmeas nasceram no início de maio, com 35 semanas e 6 dias de gestação. Hoje mãe e filhas seguem se recuperando e no caminho para a alta hospitalar.
A médica Mariana Azevedo, do Hospital e Maternidade Sepaco, conta que, além dos desafios técnicos, há o emocional de lidar com casos que exigem resiliência, tanto dos profissionais quanto dos familiares, e decisões nada fáceis do ponto de vista humano:
Me lembro de um caso gravíssimo de restrição de crescimento fetal seletivo em gêmeos associado a sequência anemia-policitemia. Tinha quase certeza que o menor não sobreviveria após o procedimento devido à gravidade de seu quadro. Mas, aos poucos, ele foi melhorando. Hoje recebo fotos dos gêmeos da mãe deles. É sempre gratificante quando conseguimos mudar uma história – se emociona a médica Mariana Azevedo, do Hospital e Maternidade Sepaco, ao recordar a situação.
A ultrassonografia morfológica do primeiro e segundo trimestres de gestação é a principal porta de entrada para essa jornada. O exame do primeiro trimestre detecta cerca de 42% das malformações, enquanto o do segundo chega a identificar de 75% a 80%. Esses exames ajudam a mapear com precisão possíveis anomalias que podem afetar a vida do bebê.
Os riscos associados às cirurgias fetais
A medicina fetal é um campo onde a ciência, a técnica e a humanidade se entrelaçam. O objetivo maior é garantir não apenas o nascimento, mas também a qualidade de vida do bebê e da família que o espera com tanto amor e esperança, como diz a médica Mariana Azevedo.
Segundo ela, as técnicas vêm evoluindo. Muitos procedimentos hoje são minimamente invasivos, com câmeras de alta resolução e equipes cada vez mais experientes. Ainda assim, as complicações existem: há riscos de parto prematuro, ruptura de membranas e até óbito fetal. Para a mãe, os riscos incluem hemorragia, infecção e trombose venosa, entre outros.
Sempre é importante apresentar todos os riscos, benefícios e limites da cirurgia, e ser muito correto e ético em respeitar os critérios de indicação e contraindicação, e sempre respeitar os valores da família, inclusive em não desejar o procedimento. Estamos falando de uma cirurgia que atinge dois corpos: mãe e feto. Por isso, os critérios precisam ser muito rigorosos. A cirurgia fetal deve ser como uma balança. Os riscos não podem se sobrepor aos benefícios”, avalia a dra Mariana.
IECPN completou 12 anos em agosto
Referência internacional em neurocirurgia e procedimentos de alta complexidade, o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IECPN) completou 12 anos de funcionamento este mês, com mais de 15 mil cirurgias realizadas. Hoje, a unidade registra 200 cirurgias mensais nas cinco salas disponíveis no centro cirúrgico e ainda realiza cerca de dois mil atendimentos ambulatoriais por mês.
Outros números também impressionam. São 110 leitos disponíveis, sendo 44 de UTIs, 15 de UTIs pediátricas e neonatais; 39 na enfermaria para adultos; dez na enfermaria para crianças e recém-nascidos e dois leitos especialmente para tratamento de epilepsia. O instituto conta com 35 neurocirurgiões e 20 médicos residentes.
Além disso, a unidade está em obras para receber o primeiro acelerador linear para radioterapia do sistema público brasileiro. Este é o segundo equipamento de ponta da unidade, que também conta com o Gamma Knife, igualmente utilizado para radiocirurgia e o único do país pelo SUS. Com o novo acelerador linear, o IECPN vai ampliar a capacidade de tratamento em radioterapia, oferecendo um serviço mais completo e moderno.
Com Assessorias