Em todo o mundo, estima-se que 5 milhões de pessoas vivam com a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, doenças que afetam diretamente o sistema digestório, fazendo com que o tecido intestinal se torne inflamado, resultando em lesões e sangramentos frequentes. A idade de início destas doenças está entre os 15 e os 30 anos, tendo um segundo pico entre os 60 e os 80 anos. Ambas não têm cura, mas é possível ter uma melhor qualidade de vida.
“Apesar de essas doenças não terem cura, a realização de um diagnóstico precoce e de um tratamento adequado permitem o controle das doenças inflamatórias intestinais, reduzem a incidência de complicações e proporcionam uma melhor qualidade de vida aos pacientes”, afirma Fernanda Mateus Queiroz Schmidt, integrante do Conselho Científico da Sobest – Associação Brasileira de Estomaterapia: estomias, feridas e incontinências.
De acordo com Adérson Damião, médico gastroenterologista da USP, a doença tem aumentado consideravelmente no Brasil nos últimos 25 anos, especialmente entre jovens de 20 a 30 anos, de ambos os sexos. Segundo o especialista, o número de pacientes acompanhados no Hospital das Clínicas de São Paulo na década de 80 se aproximava de 150 casos. Hoje o hospital já registra mais de 3.400 casos na faixa dos 30 anos de idade, o que demonstra a importância do alerta sobre a doença.
O diagnóstico correto pode levar até dois anos e, por isso, toda a classe médica, não só os gastroenterologistas, mas os coloproctologistas, cirurgiões e clínicos gerais precisam estar alertas para o diagnóstico precoce da doença inflamatória intestinal e tratá-la adequadamente, evitando assim complicações da doença. Não há como prevenir a doença, mas estamos caminhando para isso”, afirma Damião.
Fatores ambientais, dieta “ocidental” (em contraposição ao padrão oriental considerado mais saudável, como no caso da dieta do Mediterrâneo) e suscetibilidade genética estão entre as possíveis causas para o aumento da doença inflamatória intestinal ao longo dos anos.
O dia 19 de maio marca o Dia Mundial da Doença Inflamatória Intestinal que tem o objetivo de alertar a população sobre a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, e chamar a atenção da sociedade para maior conscientização e melhoria na qualidade de vida dos pacientes. A data serve de alerta para a propagação da campanha Maio Roxo, na qual diversos locais do Brasil são iluminados como forma de chamar a atenção da sociedade, instituições e governo.
Fatores hereditários podem explicar as DII
Ainda sem causa comprovada, as doenças inflamatórias intestinais (DII) podem estar ligadas a fatores hereditários e imunológicos, podendo ser agravadas pelos hábitos de vida. Atingem ambos os sexos indistintamente e o diagnóstico acontece geralmente por volta da terceira década de vida. Ambas as formas da doença podem ter manifestações extraintestinais, como problemas oculares, articulares, pele, vias biliares e fígado. Nestes últimos, muitas vezes há necessidade de transplantes do fígado. Na dependência das características dos sintomas, especialmente sangramento, podem ser confundidas com hemorroidas.
“As DII acometem principalmente jovens, em plena atividade, limitando temporária ou definitivamente suas ocupações habituais, influenciando o comportamento na escola, no trabalho, no relacionamento social e familiar, na autoimagem e na atividade sexual. Não possuem cura, estando relacionadas ao sistema imunológico e genético, mas o diagnóstico precoce e o tratamento podem permitir seu controle e proporcionar melhor qualidade de vida aos pacientes, que podem até vir a ficar completamente assintomáticos”, afirma a presidente da Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP), Maria Cristina Sartor.
Para entender a Doença de Crohn
Ainda muito pouco conhecida por grande parte da população e de difícil diagnóstico, a doença de Crohn é uma doença inflamatória crônica do trato gastrintestinal, que pode se manifestar em qualquer parte do tubo digestivo (da boca ao ânus), sendo mais comum no final do intestino delgado (íleo) e do grosso (cólon).
Os principais sintomas da doença são diarreia, cólica abdominal, sangue nas fezes, anemia e febre. Também pode ocorrer perda de apetite e perda de peso. Mais raramente há estomatites (inflamações na boca). Também pode atingir pele, articulações, olhos, fígado e vasos. A doença mescla crises agudas recorrentes, leves a graves, e períodos de ausência de sintomas.
O diagnóstico é feito por meio da colonoscopia com biópsia. Outros exames como radiografia do abdome, exame contrastado do intestino delgado, tomografia computadorizada, ressonância magnética, cápsula endoscópica e exames laboratoriais, na dependência dos sintomas, auxiliam na identificação das alterações típicas.
É relativamente comum a necessidade de cirurgias, como retirada de segmentos do intestino por oclusão, sangramento ou perfuração, especialmente o delgado, e tratamento de lesões anais como abscessos e fístulas, contribuindo, em muito, para o controle dos sintomas e das possíveis complicações. Também não é rara a confecção de estomas, que são aberturas do intestino na pele do abdome para permitir a saída de fezes, sem passar pela região afetada.
Retocolite ulcerativa
Ao contrário da doença de Crohn, em que todas as camadas da parede intestinal estão envolvidas e na qual pode haver segmentos de intestino aparentemente normal entre os segmentos de intestino doente, a retocolite ulcerativa afeta apenas a camada mais superficial (mucosa e, eventualmente, a submucosa) do intestino grosso. Ela costuma manifestar-se com diarreia com sangue e muco (catarro). Tanto na doença de Crohn quanto na retocolite ulcerativa podem existir manifestações extraintestinais tais como aftas orais, artralgia e artrite, inflamação nos olhos e na pele.
A retocolite ulcerativa inespecífica caracteriza-se por inflamação da mucosa do intestino grosso, apresentando diarreia crônica com sangue e anemia. O reto quase sempre está afetado, sendo às vezes o único segmento. Não há lesões no intestino delgado, o que constitui característica da doença, muitas vezes sendo o fator primordial para diferenciá-la da doença de Crohn. A inflamação pode vir a se tornar muito grave, com hemorragias maciças e perfuração intestinal, necessitando de cirurgias de urgência
O diagnóstico é feito principalmente pela colonoscopia com biópsias. O tratamento inclui medicamentos para controle da inflamação. Quando a doença não consegue ser controlada por meio de tratamento clínico ou apresenta determinadas complicações agudas ou crônicas, especialmente neoplasia, mesmo muito precoce, opta-se pela cirurgia.
É necessário retirar todo o intestino grosso e reto. O restabelecimento do trânsito fecal, de forma ideal, é garantido pela confecção de um reservatório no final do intestino delgado, por meio de uma plástica, que é suturado ao canal anal. Alguns pacientes podem manter o reto e o intestino delgado é costurado a ele.
“Quando não há indicação ou segurança para que o canal anal seja mantido, é confeccionada uma ileostomia, abrindo-se o intestino delgado no lado direito da barriga, próximo ao umbigo, à qual é acoplada uma bolsa plástica (fornecida pelas secretarias de saúde), descartável, geralmente trocada a cada quatro ou cinco dias. Quando o estoma não é definitivo, podem ser necessários estomas temporários para se proteger a costura do intestino. Passado o tempo de risco, a abertura temporária no intestino pode ser fechada com relativa facilidade”, explica Maria Cristina Sartor.
Maior risco de câncer colorretal
Pacientes com DII possuem maior risco de câncer colorretal em relação à população sem a doença. A colonoscopia é o melhor método para diagnosticar e tratar lesões potencialmente cancerosas relacionadas às DII. Por isso, a partir de oito a dez anos de diagnóstico do problema no intestino grosso, seja retocolite ou doença de Crohn, é recomendada a realização periódica de colonoscopia por endoscopistas/coloproctologistas experientes no assunto, com a finalidade de se evitar o câncer colorretal e suas consequências. O coloproctologista saberá melhor orientar as opções terapêuticas e os intervalos de exames.
O manejo destas doenças inflamatórias depende da gravidade, da extensão e do local envolvido, incluindo dieta individualizada e tratamento medicamentoso. Quando a doença não consegue ser controlada por meio de tratamento clínico ou apresenta determinadas complicações agudas ou crônicas, especialmente neoplasia, mesmo muito precoce, opta-se pela cirurgia. A inflamação pode vir a se tornar muito grave, com hemorragias maciças e perfuração intestinal, necessitando também de cirurgias de urgência.
“Estas cirurgias muitas vezes resultam na confecção de estomias (ileostomias ou colostomias), que são aberturas do intestino na pele do abdome para permitir a saída de fezes. Quando a estomia é realizada, o paciente necessitará utilizar um equipamento coletor, conhecido como bolsa coletora, por um período ou definitivamente. Estas estomias podem ser temporárias ou definitivas, e, em qualquer dos casos, recomenda-se o acompanhamento do paciente por um enfermeiro estomaterapeuta, pois ele é o profissional especializado no cuidado das estomias”, explica Mateus.
Medicamentos podem ajudar
Até 80% dos pacientes internados com doença de Crohn podem apresentar algum déficit nutricional. O estado nutricional está diretamente relacionado com a gravidade da doença e sua piora pode contribuir para a deterioração da imunidade e, por isso, a nutrição adequada torna-se tão importante para a recuperação de pacientes diagnosticados com a doença, já que contribui para a correção das deficiências nutricionais e controle da inflamação. A terapia nutricional também é útil no preparo dos pacientes que eventualmente precisem de cirurgia.
Os medicamentos disponíveis no mercado combatem a inflamação intestinal e podem promover a remissão clínica e endoscópica da doença inflamatória intestinal. Em crianças e adolescentes com doença de Crohn a terapia nutricional exclusiva é uma grande arma contra a inflamação intestinal. Nos adultos, a terapia nutricional, geralmente suplementar, configura importante medida adjunta no tratamento da doença inflamatória intestinal. Todas essas medidas contribuem para a recuperação do estado nutricional, reduzem a inflamação intestinal e ajudam a controlar os sintomas, porém, não curam a doença, que ainda tem causa não totalmente esclarecida.
Mitos e verdades
Para esclarecer dúvidas sobre a Doença de Crohn, a gastroenterologista Cristina Flores, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, traz alguns mitos e verdades sobre o tema:
1 – O estilo de vida é um dos fatores para o aparecimento da Doença de Crohn
Verdade. Ainda não se sabe o que desencadeia a enfermidade, mas pesquisas recentes apontam que se trata de uma doença associada à vida moderna. “Acreditamos que o gatilho esteja ligado à industrialização, principalmente ao consumo de alimentos industrializados – com seus aditivos. Também é mais comum em países com melhores condições de higiene e saneamento. Outros fatores relacionados são a pré-disposição genética, o uso excessivo de antibióticos na infância, alterando a flora intestinal. Todos esses fatores podem contribuir para um desequilíbrio do sistema imunológico, que passa a reconhecer todas bactérias, sejam elas boas ou ruins para a saúde, como potenciais inimigos, causando, assim, a inflamação do intestino e levando aos sintomas da doença”, esclarece a gastroenterologista. Além disso, o estresse, o tabagismo e uma dieta desbalanceada podem influenciar os sintomas e a gravidade do quadro. Por isso, os médicos recomendam manter uma alimentação balanceada, não fumar, evitar bebidas alcoólicas e praticar atividades físicas regularmente.
2 – A maioria dos diagnósticos é feita na fase inicial da doença
Mito. Apesar de os sintomas trazerem grandes impactos ao dia a dia dos pacientes, o diagnóstico da doença é considerado difícil, uma vez que os sintomas podem ser confundidos com problemas mais comuns, como uma simples diarreia. Em média, os pacientes demoram de três a quatro anos para serem diagnosticados, geralmente, quando a doença já está avançada e pode evoluir para estreitamento, perfuração intestinal, câncer, desnutrição, anemia, infecção e até mesmo à morte. Por isso, é importante ficar atento aos sintomas e sempre procurar um médico em casos de alterações gastrointestinais.
3 – Tratamento pode proporcionar uma vida normal ao paciente
Verdade. A doença não tem cura, mas o tratamento tem o objetivo de eliminar os sintomas e devolver o bem-estar do paciente. Em longo prazo, alguns medicamentos proporcionam a cicatrização do intestino, da mucosa, o que leva à remissão da doença. Nessa fase, o paciente pode ter uma vida normal, sem sequelas inflamatórias. No entanto, é preciso seguir corretamente o tratamento indicado, não falhar com a medicação e manter um estilo de vida saudável.
Atualmente, no estágio inicial da doença, é comum o uso de anti-inflamatórios específicos. Nas fases mais agudas, indica-se o corticoide, porém, se o paciente não responder a esse tratamento, existem medicamentos imunossupressores que ajudam no controle da doença e os medicamentos biológicos, classes mais modernas e indicadas a perfis específicos de pacientes, que melhoram consideravelmente a qualidade de vida dessas pessoas. Ainda existem muitas situações em que a cirurgia pode ser recomendada.
4 – Pacientes com Doença de Crohn têm poucas opções terapêuticas
Mito. Mesmo que a causa da doença ainda seja incerta, as opções de tratamento estão cada vez mais inovadoras e diversificadas. Os medicamentos biológicos, por exemplo, trazem segurança e eficácia em diversas fases da doença. Estudos recentes mostram que novas opções de tratamento, com altas taxas de resposta e novos mecanismos de ação devem chegar ao mercado em breve.
5 – Tratamentos biológicos estão fora da lista de cobertura dos planos de saúde.
Mito. As terapias imunobiológicas endovenosa e subcutânea estão disponíveis para pacientes beneficiários dos planos de saúde nos ambientes ambulatorial e hospitalar. A cobertura, no entanto, depende de alguns fatores como o índice de atividade da doença mais a falta de resposta a drogas imunossupressoras ou imunomoduladoras em um determinado período ou, ainda, do grau da enfermidade.
Estudos sobre as doenças no Brasil
Há diversos grupos de estudo e associações científicas nacionais, como a ABCD (Associação Brasileira de Colite e doença de Crohn) e o GEDIIB (Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil) que estão empenhados em obter dados de incidência e prevalência da doença inflamatória intestinal no Brasil. Segundo Damião, que faz parte de um destes grupos (GEDIIB), os estudos feitos em várias partes do país têm revelado que a doença inflamatória intestinal tem aumentado em frequência de maneira geral, principalmente no Sul e Sudeste (provavelmente por influências étnicas) e que, ao contrário de outras partes da América do Sul, há tendência para maior número de casos de doença de Crohn do que de retocolite ulcerativa.
Durante o mês de maio, a Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP), juntamente com outras Sociedades que se dedicam às doenças do aparelho digestivo – como Grupo de Estudos da Doença Inflamatória do Brasil (GEDIIB), Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG), Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (Sobed) e Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD) – participa do Maio Roxo, campanha para conscientizar sobre as doenças inflamatórias intestinais. A Sobest – Associação Brasileira de Estomaterapia: estomias, feridas e incontinências também apoia a campanha “Maio Roxo”, divulgada em diferentes países, assim como o Outubro Rosa e o Novembro Azul.
No Portal da Coloproctologia (http://portaldacoloproctologia.com.br) e na página da Sociedade no Facebook (https://www.facebook.com/portalcoloprocto), o público leigo obterá informações e dicas sobre a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa.
Da Redação, com assessorias