Os Estados Unidos enfrentam uma situação sem precedentes devido ao uso descontrolado de opioides, especialmente do fentanil, uma das versões mais potentes, tem levado milhares de americanos à overdose. De acordo com dados do seu Instituto Nacional de Abuso de Drogas, foram registradas 80,4 mil mortes em 2021, o equivalente a mais de 200 mortes por dia causadas por overdose dessas substâncias.

Os opioides são uma classe de substâncias que incluem medicamentos prescritos para aliviar a dor, bem como drogas ilícitas, como a heroína. Embora sejam eficazes no alívio da dor, o uso indevido e o abuso de opioides tornaram-se uma preocupação significativa de saúde pública em muitas partes do mundo.

A sazonalidade e a distribuição geográfica das mortes apontam para os meses mais frios nos estados mais pobres, menos industrializados, com piores indicadores de saúde, menor capacidade resolutiva de problemas complexos, desemprego e a ausência de políticas públicos de saúde. Basta dizer que tais cenários são superponíveis à parte significativa do território nacional, incluindo a periferia de grandes cidades brasileiras.

Alvo de denúncias pelo Ministério Público em várias cidades americanas, grandes laboratórios têm pago indenizações vultosas por causa das mortes decorrentes do uso desses medicamentos. Diante disso, laboratórios farmacêuticos em todo o mundo investem somas vultosas em marketing para que os médicos aprendam a utilizar opioides em suas práticas diárias.

No entanto, há quem afirme que os estrategistas de marketing de produtos se valem de brechas na lei e da inviolabilidade da relação médico paciente para validar – ou pelo menos oficializar – práticas consideradas criminosas.

A estratégia, que em circunstâncias específicas extrapola a esfera ética e é proibida no mundo todo, inclusive no Brasil, carece de regulamentação. A própria capilaridade da rede criminosa do tráfico, de forma independente se incumbe de pulverizar o restante da droga produzida oficialmente dentro do próprio país.

Diante deste cenário nos EUA, Maurício Martelletto, médico formado pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, há mais de 30 anos especialista em dor e problemas da coluna, faz um alerta.

O Brasil precisa agir rapidamente e ficar atento para evitar que uma crise de abuso de opioides, semelhante à que vive os americanos hoje, aconteça por aqui. Precisamos de políticas públicas e principalmente foco em impedir que o uso da droga se popularize. Estamos distantes da realidade americana, mas é crucial que as autoridades monitorem esses dados para avaliar a evolução da situação”.

Segundo ele, o tráfico de entorpecentes opioides também vem crescendo em todo o mundo. Esse crescimento é fruto da ausência de políticas de resolução de problemas estruturais de saúde, como por exemplo o financiamento público e privado de cirurgias para hérnias de disco, estreitamento do canal medular e demais procedimentos para tratamento de doenças degenerativas da coluna vertebral, como a espondiloartrose.

Tipos de opioides e opiáceos

Analgésicos opioides incluem medicamentos prescritos, como a codeína, o tramadol que são considerados fracos. A metadona, a oxicodona e a hidrocodona, são considerados opioides fortes e são utilizados para tratar a dor moderada a grave.

A nomenclatura pode mudar de acordo com a droga: opioides são termos que designam drogas sintéticas e opiáceos são drogas presentes na natureza, como a morfina que é extraída da papoula.

Maurício Martelletto explica que os opioides agem no sistema nervoso central, interagindo com receptores específicos chamados receptores opioides, no cérebro e na medula espinhal, modificando a percepção da dor. Por isso, são um grupo de drogas que funciona bem para um amplo espectro de sintomas dolorosos.

“Quando utilizados corretamente, os opioides são ferramentas valiosas no controle da dor pós-operatória, ou associada a condições médicas graves.  Porém, além do alívio da dor, eles podem causar uma sensação de euforia, levando ao potencial de abuso e dependência”, alerta o médico.

De acordo com ele, se utilizados indevidamente, os opioides causam dependência química, física e psicogênica, contaminação crescente da matriz extracelular, além de complicações mais graves, como overdoses e mortes relacionadas ao abuso dessas substâncias por depressão respiratória.

Em muitos casos, a dose terapêutica é muito próxima da dose letal, além do risco de depressão respiratória ela apresenta uma série de efeitos colaterais dentre os quais uma série de fenômenos farmacológicos que nos acostumamos a chamar de vício ou dependência”, explica.

O que então fazer diante de um quadro de dor crônica?

O tratamento da dor envolve o conhecimento muito mais amplo da condição da doença e do paciente do que se suspeitava em décadas passadas. Para dor, o ideal é oferecer acesso a uma equipe multidisciplinar, que trate os pacientes por completo incluindo as causas da doença”, explica o membro titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia.

A automedicação deve ser evitada a todo custo. O especialista diz que o tema deve servir de alerta para a saúde pública e que órgãos regulamentadores devem estabelecer programas de monitoramento para evitar prescrições excessivas, além de investir em pesquisa e desenvolvimento de alternativas não opioides no tratamento da dor.

Palavra de Especialista

A dor e a crise dos opioides nos EUA 

Por Fernando Rizzolo*

Desde que a humanidade existe, o homem sofre com o efeito colateral de viver num corpo no qual as mais variadas reações se dão por conta de diversas doenças, muitas delas incuráveis.

Como efeito de sucessivas guerras mundiais e do avanço das drogas anestésicas com a finalidade de realizar cirurgias, a indústria farmacêutica mundial, juntamente com pesquisadores, desenvolveu drogas eficazes no combate à dor que, de forma paralela, acompanha também tratamentos oncológicos e que têm por finalidade amenizar o sofrimento da humanidade.

O grande problema, principalmente nos EUA, é que ironicamente essa busca para evitar a dor trouxe um enorme sofrimento, uma vez que as mortes por overdose dessas drogas chamadas opioides (potentes analgésicos, geralmente mais potentes que a morfina) quintuplicaram nas últimas duas décadas.

Mas qual seria a razão para os médicos americanos se associarem a uma das mais altas taxas de prescrições de opioides? Sabe-se que, no final da década de 1990, a Veterans Health Administration, que administra assistência médica aos veteranos militares, pressionou para que a dor fosse reconhecida como o “quinto sinal vital”.

Isso deu à dor o mesmo status da pressão arterial, frequência respiratória e temperatura. Isso passava a ideia clínica de que a dor estava sendo “subtratada”, ideia essa difundida também pelo “núcleo da agenda de marketing das empresas farmacêuticas”.

Dependentes buscam emergências para obter opiáceos no Brasil

No Brasil também não é diferente. Muito embora as prescrições sejam feitas com maior parcimônia, existe o uso recreativo dessas drogas ou casos de pacientes que vivem na condição de dependentes, que procuram com frequência unidades de pronto atendimento queixando-se de fortes dores para terem acesso aos opiáceos.

Para piorar a situação, no Brasil, já se tem notícia de apreensões de lotes irregulares de Fentanil, um opioide 50 vezes mais potente que a heroína e 100 vezes mais intenso que a morfina.

O Hospital das Clínicas de São Paulo inaugurou o primeiro ambulatório do país destinado ao tratamento de dependentes de opioides. A proposta é que o local receba tanto pacientes que se tornaram dependentes após tratamentos prescritos por médicos quanto aqueles que fazem uso recreativo dessas substâncias.

Esse já é um problema de saúde pública, fruto de dois aspectos: um mais nobre, que é o combate ao sofrimento causado pela dor, e outro que consiste no uso recreativo por jovens induzidos pelo narcotráfico e que são vítimas da abstinência.

A dor física avilta a vontade de viver e a qualidade de vida, e o vício alimenta o vazio da alma, que, na sede de procurar abrigo, se socorre no tráfico. Ambas as situações dolorosas merecem respeito, e a iniciativa do HC vem para dar apoio a esse grave problema mundial.

Fernando Rizzolo é advogado, médico, membro efetivo da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.

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