A morte de Lindomar Castilho, aos 85 anos, no último sábado (20/12), marca o capítulo final de uma trajetória que transitou entre o brilho dos holofotes e a escuridão de um crime que chocou o país. O cantor não será lembrado apenas por sua voz potente, mas por ter protagonizado um dos episódios mais brutais da história da música brasileira: o assassinato de sua ex-mulher, a cantora Eliane de Grammont, morta a tiros quando se apresentava no palco, em 1981.
A passagem de Lindomar, conhecido como o “Rei do Bolero”, encerra a jornada biográfica de um homem que, para muitos, já havia se tornado um fantasma de si mesmo. Para Liliane de Grammont. filha do casal, que tinha apenas sete anos na época do crime, o desfecho biológico do pai parece ser apenas uma formalidade. O estado do cantor em seus últimos anos foi resumido por ela de forma cortante: “Ao tirar a vida da minha mãe, ele também morreu em vida”.
A declaração marcante reflete o ostracismo de quem viu a glória ser consumida pela brutalidade de um ato que, hoje, nomeamos sem hesitação e em letras garrafais, para não haver dúvidas: foi FEMINICÍDIO. O isolamento de Castilho nas últimas décadas reflete o peso de um legado manchado pelo sangue e pelo machismo estrutural, que ainda nos dias atuais sepulta milhares de mulheres todos os anos no Brasil.
O nascimento de um assassino e a morte de uma família
Em um post emocionante após a morte do pai, Liliane de Grammont deu uma aula de sensibilidade e lucidez sobre o trauma geracional. Ela descreveu Lindomar como um homem tragado pela vaidade e pelo narcisismo.
Ele é só mais um ser humano que se desviou com sua vaidade e narcisismo. O homem que mata também morre. Morre o pai e nasce um assassino, morre uma família inteira”, escreveu ela.
Sobre o perdão, a resposta foge do simplismo: para ela, trata-se de um processo complexo que envolve camadas de dor e a esperança de que a “masculinidade tóxica” do pai tenha sido, enfim, transformada. “Você precisa de um tempo para assentar. Você precisa se recompor, a ficha demora para cair, começa a pensar sobre o que poderia ter feito de diferente”, comentou.
Do humor à tragédia: quando a “loucura” vira arma
A trajetória de Lindomar é indissociável de seu maior sucesso, “Você é doida demais”. Por décadas, a canção atravessou gerações, embalou festas populares e chegou a ser tema de abertura de programas de humor na TV Globo.
No entanto, o tempo e a consciência social trouxeram uma nova e amarga interpretação à letra. Sob a ótica atual, a letra ganha um contorno sombrio. O que era vendido como entretenimento simboliza, na verdade, uma realidade perversa: a tática masculina de desqualificar a mulher através da pecha da “loucura”.
O que antes era cantado como uma brincadeira rítmica, hoje representa uma realidade que não tem graça nenhuma: a estratégia histórica de homens que atribuem a culpa de suas explosões de violência às mulheres, taxando-as de “loucas” para justificar o injustificável., numa tentativa constante de deslegitimar as mulheres através da pecha da loucura.
Chamar uma mulher de “doida” ou “desequilibrada” não é apenas um insulto; historicamente, foi a base da defesa de muitos agressores para justificar o controle e a violência. No caso de Lindomar, a “honra ferida” foi o escudo usado para apagar o brilho de Eliane.
Do bolero ao “redpill”: a estratégia de chamar as mulheres de loucas
Essa narrativa de “loucura feminina” foi, por décadas, utilizada nos tribunais sob a tese da “legítima defesa da honra”, um artifício jurídico que permitiu que assassinos como Lindomar Castilho recebessem penas brandas e desfrutassem de regimes semiabertos precoces.
A nova força do feminismo – nas ruas ou nas redes sociais – não permite mais que casos como o de Lindomar sejam romantizados por sua música. A canção “Você é doida demais” hoje serve de alerta: o primeiro sinal da violência muitas vezes é a desqualificação da saúde mental da mulher.
O crime contra Eliane não foi esquecido e junto às milhares de vítimas recentes, se transforma em combustível para a luta contra a violência à mulher no Brasil. Lindomar partiu em silêncio, dias após o movimento Mulheres Vivas ocupar as ruas e as redes, transformando o luto em luta contra a impunidade.
A morte de Lindomar Castilho ocorre em um momento crítico. O Brasil ainda registra índices alarmantes de feminicídio, provando que a estrutura que armou o cantor nos anos 80 ainda permanece ativa. A diferença, hoje, reside na força da voz coletiva: o que antes era tratado como “crime passional” ou “tragédia de amor”, agora é nomeado corretamente como o que sempre foi: assassinato por questão de gênero.
A luta em defesa da vida e contra a impunidade ganhou novas camadas com a ascensão do feminismo nas redes sociais, onde o embate contra o machismo tóxico se tornou diário e urgente. O combate entre o feminismo e o machismo estrutural – representado hoje por movimento redpill nas redes sociais – nunca foi tão latente, impulsionado por uma nova geração que não aceita o “pacto de silêncio” dos homens.
“Agora era fatal”: o crime que parou o Brasil
O dia 30 de março de 1981 ficou marcado pelo sangue no palco do bar Belle Époque, em São Paulo. Eliane de Grammont, então com 26 anos, tentava retomar sua carreira e sua vida após um casamento marcado pela possessividade, agressões físicas e o alcoolismo de Lindomar.
Enquanto Eliane cantava os versos premonitórios de João e Maria, de Chico Buarque — “agora era fatal, que o faz de conta terminasse assim” — Lindomar invadiu o local e disparou cinco vezes. Eliane morreu a caminho do hospital; Lindomar foi contido por frequentadores enquanto tentava fugir.
O alvo era também o violonista Carlos Randall, primo do cantor, motivado por um ciúme doentio. Randall levou um tiro e sobreviveu, mas precisou se afastar dos palcos para se recompor. Numa entrevista em 2022, disse que não se sente apto a perdoar Lindomar.
Do luto à luta: o legado de Eliane de Grammont
A memória de Eliane de Grammont não ficou restrita aos arquivos policiais. Em 2023, o filme Memória em Conta-Gotas, dirigido pela própria filha. Lili de Grammont, trouxe para as telas o impacto do crime cometido por seu pai, sob um olhar íntimo e doloroso sobre essa tragédia.
Minha mãe foi morta no palco, sob a luz dos refletores, para que ninguém pudesse dizer que não viu. Minha mãe foi morta para que todos vissem o que o machismo é capaz de fazer”. A ecoa o sentimento de quem transformou o trauma em resistência.
A obra não é apenas um resgate biográfico, mas uma ferramenta de denúncia sobre como o feminicídio estraçalha famílias e deixa marcas geracionais. O documentário hoje serve de espelho para um Brasil que ainda registra recordes de violência contra a mulher é um manifesto necessário sobre como o feminicídio destrói não apenas uma vida, mas toda uma árvore genealógica.
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De “crime passional” a feminicídio
A evolução da justiça e das leis que defendem a mulher que Lindomar Castilho não enfrentou
A morte de Lindomar Castilho fecha um ciclo biográfico, mas abre uma oportunidade necessária para observarmos o quanto o Brasil caminhou — e onde ainda tropeça — na proteção às mulheres. Quando ele disparou contra Eliane em 1981, o termo “feminicídio” sequer existia no vocabulário jurídico nacional.
Preso em flagrante no local do crime, o ‘Rei do Bolero‘ foi condenado, em 1984, por homicídio, Castilho cumpriu cerca de sete anos na Casa de Detenção de São Paulo, passando para o regime de liberdade condicional em 1988. . Foram apenas 12 anos de prisão pelo crime: ele ficou livre da prisão em 1996. Se fosse hoje, pelas duras penas da lei, ele pegaria no mínimo 40 anos de cadeia.
1. A queda da “legítima defesa da honra”
Na época do julgamento de Lindomar, era comum que advogados de defesa utilizassem a tese da legítima defesa da honra. O argumento era de que o homem, ao sentir-se “traído” ou “desonrado”, teria o direito de reagir violentamente para restaurar sua moral.
Essa tese, que garantiu impunidade a milhares de agressores, só foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2023. Ou seja: a justiça brasileira levou mais de 40 anos após o crime de Castilho para proibir oficialmente que a “honra” masculina fosse usada como desculpa para o assassinato de mulheres.
2. O marco da Lei Maria da Penha (2006)
Se Lindomar tivesse cometido o crime hoje, ele não teria o benefício da dúvida ou a condescendência social da época. A Lei 11.340/2006 mudou o patamar da violência doméstica, retirando esses crimes do âmbito de “pequenas causas” e criando mecanismos de proteção, como as medidas protetivas de urgência.
3. A Lei do Feminicídio (2015)
A grande mudança estrutural veio com a Lei 13.104/2015, que incluiu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. O crime passou a ser hediondo. Pune-se com mais rigor o assassinato cometido por razões da condição de sexo feminino (menosprezo ou discriminação à condição de mulher).
4. Pacote Antifeminicídio (2024)
Em outubro de 2024, véspera do Dia Nacional de Combate à Violência contra a Mulher (10/10), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.994/2024, conhecida como o “Pacote Antifeminicídio”, que endureceu significativamente as punições para crimes de violência contra a mulher.
A nova legislação tornou o feminicídio um crime autônomo e agrava a pena para a maior prevista no Código Penal, de até 40 anos. O texto também tipifica o feminicídio em um artigo específico, e não mais como um tipo de homicídio qualificado. As penas passam de 12 a 30 anos de reclusão para 20 a 40 anos.
5. Mais proteção às vítimas, incluindo filhos (2025)
Além desta lei, em dezembro de 2025, o presidente sancionou a Lei nº 15.280/2025, que amplia a proteção a vítimas de crimes contra a dignidade sexual e endurece o controle sobre investigados. Também está em vigor o auxílio para órfãos do feminicídio, garantindo uma pensão especial aos dependentes das vítimas.
Do caso Eliane aos dias atuais: a violência simbólica
O debate atual nas redes sociais mostra que a luta migrou da sobrevivência física para a dignidade intelectual e emocional.
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Anos 80: A luta era para não morrer (e Lindomar matou).
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Anos 2020: A luta é para não ser silenciada ou rotulada como “louca” e “agressiva” ao discordar (violência simbólica).
O movimento Mulheres Vivas e o filme de Lili de Grammont, Memória em Conta-Gotas, conectam esses dois mundos. O filme não apenas expõe o crime do pai, mas denuncia como o sistema judiciário e a cultura da época foram cúmplices daquele gatilho.
| Período | Termo Utilizado | Visão Social |
| 1981 (Caso Eliane) | Crime passional | “Matou por amor” ou “defesa da honra”. |
| Atualidade | Feminicídio | Crime de ódio baseado no gênero e controle. |
O impacto nas redes e a herança de Lili
A morte de Lindomar Castilho é o fim de um homem que, como disse sua filha, já estava morto para a sociedade que não aceita mais seus métodos. A história de Eliane de Grammont, por outro lado, continua viva em cada lei nova e em cada voz que se levanta contra o machismo.
A partida de Lindomar Castilho não apaga a mancha de sangue em sua biografia, mas reforça a urgência de mudarmos a trilha sonora de um país onde as mulheres ainda precisam lutar, diariamente, pelo direito de simplesmente permanecerem vivas.
O silêncio de Lindomar Castilho se encerra, mas a discussão que seu crime despertou está mais viva do que nunca. A música parou, mas a luta para que nenhuma outra mulher seja silenciada no palco da vida continua.









