O mais novo capítulo da novela em torno da saúde de Jair Bolsonaro – preso e condenado por chefiar a trama golpista de janeiro de 2023 – não é apenas um laudo médico; é um fato político sob suspeita que ganha contornos de disparidade social.
A estratégia de defesa do ex-presidente tem sido pautada pelo seu histórico clínico desde a facada em 2018, mas o avanço das investigações sobre a tentativa de golpe de Estado que resultou nas condenações do principal mentor do golpe elevou o tom de ceticismo das autoridades.
Após anos de um ciclo repetitivo de idas e vindas ao hospital por conta de dores abdominais que frequentemente coincidem com momentos de pressão no Judiciário, a Polícia Federal (PF) decidiu mudar o protocolo.
Pela primeira vez, uma perícia médica oficial foi acionada para validar se a intervenção para correção de uma hérnia inguinal bilateral e o tratamento de soluços persistentes são necessidades clínicas imediatas ou uma conveniência estratégica.
O “estado delicado de saúde” de Bolsonaro tornou-se o principal escudo técnico de sua defesa, enquanto o laudo oficial da PF coloca em xeque a narrativa de “urgência extrema” sustentada por seus advogados que serviria para tirá-lo da prisão definitiva.
O rigor da perícia e o “checkpoint” de Moraes
Nesta sexta-feira (19/12), o laudo da PF entregue ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi categórico: a cirurgia é eletiva (programada), e não emergencial. Avaliando o documento, Moraes autorizou Bolsonaro a deixar a carceragem apenas para realizar o procedimento no Hospital DF Star, mas negou o pedido de prisão domiciliar.
Embora recomende o procedimento “o mais breve possível” para evitar complicações no sono e na alimentação, o laudo da perícia médica em Jair Bolsonaro desidrata o argumento da defesa de que se tratava de uma emergência médica inadiável.
A decisão ocorre na mesma semana da aprovação, pelo Senado, do PL da Dosimetria, que reduz a pena de Bolsonaro, para escapar da cela de 12 metros quadrados onde cumpre pena de 27 anos e três meses de reclusão. Segundo Flávio Bolsonaro, o pai passa 22 horas por dia preso. “Não tem uma flor pra ele olhar, uma planta pra ele conversar”, lamentou.
O ministro foi incisivo: a sede da PF em Brasília está em “absoluta proximidade” com o hospital particular, garantindo assistência rápida sem necessidade de soltura. A decisão reforma outra medida adotada esta semana: Moraes permitiu que Michele Bolsonaro tenha livre acesso para visitar o marido na sede da PF e lhe prestar a devida assistência – resta saber se ela vai efetivamente usufruir o benefício, cumprindo seu papel de ‘mulher zelosa e do lar’.
O abismo entre o DF Star e a fila do SUS
Em meio a toda essa, o portal Vida e Ação analisou como a condição de saúde de Bolsonaro — que tornou-se o principal escudo técnico de sua defesa – afeta 28 milhões de brasileiros que necessitam de atendimento médico.
Para o brasileiro comum, a hérnia é um peso que o afasta do trabalho (foram 28 mil afastamentos em 2023) e o coloca de castigo na fila do SUS, à espera de um procedimento. Enquanto Bolsonaro aguarda a data para ser operado pela equipe do cirurgião Claudio Birolini em um dos hospitais mais caros e tecnológicos do país, a realidade para o cidadão comum que depende do sistema público é uma “loteria” de incertezas.
A espera cruel e o privilégio da agilidade
A disparidade entre o tratamento de Jair Bolsonaro e a realidade do brasileiro comum ganha contornos dramáticos quando analisamos a fila de espera. De acordo com dados oficiais, o cenário das cirurgias eletivas no Brasil é crítico.:
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Fila invisível: Atualmente, 1,3 milhão de brasileiros aguardam por cirurgias eletivas no SUS, com espera média de dois anos e quatro meses. Para Bolsonaro, a perícia ocorreu na quarta e a autorização saiu na sexta-feira.
- Crescimento: Mesmo com recordes de produção cirúrgica em 2024, a fila de espera cresceu 26% no último ano, impulsionada pelo gargalo acumulado e pelo envelhecimento da população.
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Urgência por falta de opção: Cerca de 11% das cirurgias de hérnia no SUS são feitas em caráter de urgência porque o paciente não conseguiu o agendamento a tempo e o órgão acabou “estrangulado”, segundo dados da Sociedade Brasileira de Hérnia (SBH), obtidos em 2025.
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Outro ponto crítico é a disparidade nas técnicas empregadas em cirurgias eletivas. Enquanto Bolsonaro deverá utilizar mais uma vez tecnologias de ponta, a realidade da maioria é distinta. No SUS, apenas 0,62% dos pacientes têm acesso à técnica minimamente invasiva que será usada no ex-presidente. Em Campinas (SP), esse índice cai para 0,4% na rede pública, contra 21% na privada.
A técnica escolhida não é apenas uma questão de conforto, mas de precisão. Na cirurgia convencional, o cirurgião precisa de uma abertura maior para visualizar a falha muscular. Já na técnica solicitada por Bolsonaro, o uso de câmeras e pinças robóticas permite selar a hérnia com uma tela interna de forma muito mais estável, o que é crucial em casos de hérnia incisional recorrente.
Para entender a dimensão do tratamento que o ex-presidente pleiteia em comparação à realidade da saúde pública brasileira, é preciso olhar para as cifras e para o tempo de recuperação. Enquanto a defesa alega a necessidade de uma estrutura de ponta, o SUS luta para oferecer o básico de forma eficiente.
A diferença visual: por que a técnica importa?
Abaixo, detalhamos as diferenças técnicas e financeiras entre as abordagens
Comparativo: Cirurgia de Hérnia (SUS x rede privada de luxo)
| Aspecto | Cirurgia convencional (SUS) | Videolaparoscopia/Robótica (Privado) |
| Técnica | Corte aberto (5 a 10 cm) | Mínimas incisões (0,5 a 1 cm) |
| Tempo de recuperação | 30 a 45 dias | 7 a 15 dias |
| Custo do procedimento | R$ 600 a R$ 1.200 (Repasse SUS*) | R$ 25.000 a R$ 80.000** |
| Acesso nacional | 99,38% das cirurgias | Menos de 1% (no SUS) |
*Valor referente ao repasse do governo para o hospital, que muitas vezes não cobre o custo real.
**Estimativa para hospitais de alto padrão em Brasília/São Paulo, incluindo honorários e tecnologia robótica.
O impacto no nervo frênico e os soluços
O documento da PF revela ainda um fato curioso, que acaba corroborando para os memes nas redes sociais em torno da condição do ex-presidente: Bolsonaro apresentou entre 30 e 40 soluços por minuto enquanto realizava o exame. A condição é causada por um bloqueio no nervo frênico
O cirurgião Adilon Cardoso Filho explica que o esforço contínuo do soluço atua como uma “marreta” sobre a musculatura: pressão intra-abdominal aumenta constantemente, agravando a hérnia e impedindo a cicatrização natural e elevando o risco de estrangulamento do intestino. “Sem o controle dos soluços, qualquer reparo corre o risco de romper novamente em poucos dias”, alerta o médico.
Segundo especialistas, a complexidade do caso de Bolsonaro é dupla: uma hérnia inguinal bilateral e uma incisional, decorrente de cicatrizes de cirurgias anteriores que não fecharam adequadamente.
Em casos como esse, o médico André Brandalise reforça que a cirurgia é a única solução definitiva, mas exige treinamento rigoroso para evitar dores crônicas que possam impedir qualquer cicatrização. “Mesmo sendo ‘apenas uma cirurgia de hérnia’, a laparoscopia exige conhecimento para evitar dores crônicas posteriores”.
Adilon Cardoso Filho explica que, se o intestino “vaza” pela abertura muscular, ocorre um processo isquêmico e obstrutivo. “Isso leva à distensão e rompimento da parede intestinal, quadros que podem ser fatais”, afirma o médico.
O veredito de Alexandre de Moraes
Com o laudo da PF em mãos confirmando que a cirurgia é eletiva, o ministro Alexandre de Moraes teria o balizador técnico para decidir:
- Autorizar a saída: Permitindo que Bolsonaro seja operado no hospital privado, sob escolta.
- Determinar o tratamento no sistema público: Forçando o ex-presidente a enfrentar a mesma logística (e técnica) dos milhões de brasileiros que ele governou.
Para o brasileiro comum, a “escolha” da técnica não existe. Para Bolsonaro, a medicina tornou-se a última linha de defesa entre a liberdade de um hospital de luxo e o rigor da custódia estatal.
A ciência não é política, mas o uso dela pode ser
O caso de Bolsonaro, contudo, descortina como o cenário político pode transformar diagnósticos em manobras. A questão para a Justiça não foi se a hérnia existe — os peritos confirmaram o diagnóstico —, mas se a frequência das crises é ditada pela fisiologia ou pelo calendário do STF.
Para o ex-presidente, a medicina tornou-se a última linha de defesa entre o rigor da custódia estatal e o conforto de um hospital de luxo. Bolsonaro fará sua cirurgia, mas, por ora, o tribunal deixou claro: a saúde não será o atalho para a liberdade.




