Três em cada 10 mulheres em todo o mundo já foram vítimas de violência por seu parceiro, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, os números são estarrecedores. O enfrentamento à violência de gênero não é um problema da atualidade, mas fruto de muita brutalidade e desrespeito sofridos pelas mulheres ao longo dos séculos.
Em palestra realizada pela Escola do Legislativo do Rio de Janeiro (Elerj) – órgão vinculado à Assembleia Legislativa do Estado (Alerj) – nesta terça-feira (8 de março), Dia Internacional da Mulher, a advogada cível Isabelle Faria abordou a temática dos Direitos das Mulheres a partir do histórico das lutas femininas no Brasil e no mundo e do seu contexto atual.
No país, um dos principais avanços ocorreu no ano de 2006, quando foi promulgada a Lei 11.340, chamada de Lei Maria da Penha, considerada uma das mais avançadas em todo o mundo para caracterizar os diferentes tipos de violência sofridos pelas mulheres – física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
“Mas somente em 2015 o homicídio em razão de gênero (feminicídio) passa a ser qualificado judicialmente no Brasil”, destacou a advogada, que coordena a comunicação da ONG Rede Comadres, para apoio a mulheres cis e trans em vulnerabilidade em grandes favelas de São Paulo. Ela pretende trazer a iniciativa também para comunidades cariocas.
A evolução das mulheres ao longo dos séculos
Na Antiguidade (4000 AC – 476 DC), as mulheres não tinham acesso à educação; eram vendidas para casamentos e vítimas escravidão e prostituição. Na Idade Média (476 a 1453), as mulheres dedicavam-se a afazeres domésticos e artesanato. As mulheres nobres podiam administrar propriedades, mediante a autorização do marido, e a ‘mulher perfeita’ era a da fé católica, enquanto as desviantes eram “bruxas “e perseguidas pela Inquisição”.
Nesse período, Joana D´Arc (1412-1431) foi queimada na fogueira, acusada de bruxaria, heresia e possessão demoníaca. Em 1456 foi reabilitada pela Igreja Católica e, em 1920, o Papa Bento XV a canonizou, Aos 13 anos, ela afirmou ter visões divinas e dizia ouvir vozes de santos. Foram essas visões e vozes que a fizeram participar da Guerra dos Cem Anos.
Na Idade Moderna (1453 a 1789), as mulheres que “desviavam” da religiosidade ainda eram perseguidas, mas algumas líderes começaram a despontar na Europa, como Elizabeth I (1533-16-3), Rainha da Inglaterra e Governante Suprema da Igreja da Inglaterra, Elizabeth I, que foi vista como ícone do feminismo do século XVI. “O Iluminismo (1685) não alcançou as mulheres como deveria”, disse a advogada.
A Idade Contemporânea (1790 até hoje) é marcada pelos princípios da Liberdade, igualdade e fraternidade, lema da Revolução Francesa. A Declaração dos Direitos do HOMEM e do CIDADÃO oficializa a importância dos direitos civis e políticos, mas a Constituição Francesa de 1791 excluía as mulheres da classificação enquanto cidadãs. Ela citou Olympe de Gouges.
Em 1792, Mary WollstoneCraft publicou a Reivindicação dos Direitos da Mulher e com o tempo foram aumentando os debates sobre os direitos das mulheres e movimentos sufragistas pressionam pelos direitos políticos das mulheres. Até que em 1893, numa colônia no sul da Austrália, pela primeira vez na história, as mulheres tiveram o direito ao voto reconhecido.
Direitos das mulheres no Brasil
De 1500 a 1822, o Brasil, enquanto colônia de Portugal, reproduzia, social e politicamente, as repressões europeias. Assim como em grande parte dos países colonizados, a cultura dos povos indígenas foi bastante reprimida pela cristianização e escravização. Semelhante foi o apagamento da cultura dos povos africanos escravizados.
“Ainda que em muitos dos grupos indígenas e africanos a mulher apresentasse um papel de extrema relevância à sua comunidade, a escravização desses povos promoveu um apagamento cultural. Mulheres escravizadas possuíam quase ou nenhum direito quando comparadas às mulheres brancas e, ainda, às trabalhadoras migrantes de origem europeia”, explicou a advogada.
Mesmo após a Independência, de 1822, os resquícios de uma sociedade euroreferenciada continuaram, até mesmo porque a escravidão estendeu-se, oficialmente, até 1888. No Brasil República, as mulheres somente foram incluídas na política na década de 1930, pelo Código Eleitoral de Getúlio Vargas. A médica Carlota Pereira Queiroz foi a primeira deputada federal eleita no país e militava ao lado da maioria de homens no antigo Parlamento, que funcionava no Rio de Janeiro.
Ainda segundo ela, a Constituição de 1934 trouxe importantes direitos, como a igualdade de salário, a proibição de trabalho das mulheres em local insalubre e a permissão de descanso pós-parto. Porém, as constituições subsequentes não apresentaram avanços significativos e, apesar do reconhecimento de suas cidadanias, as mulheres continuaram sem a efetividade de diversos direitos considerados fundamentais, como o princípio da igualdade, da não-discriminação e da não-violência.
A verdade sobre o 8 de Março
O Dia Internacional da Mulher não foi criado por influência de uma tragédia específica – um incêndio que aconteceu em Nova York, no dia 25 de março de 1911 na Triangle Shirtwaist Company e vitimou 146 pessoas, 125 mulheres e 21 homens. Mas sim por décadas de engajamento político das mulheres pelo reconhecimento de sua causa.
Outros fatos anteriores influenciaram no movimento que levou à criação da data, como a Marcha de Nova York de 1908, a II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas de Copenhage de 1910, quando Clara Zetkin sugere um calendário de manifestações pelos Direitos das Mulheres. Ate que em 8 de março de 1917, operárias da tecelagem entram em greve, no auge da Revolução Russa que acabou com a monarquia czarista. Essa data entrou para a história como um grande feito de mulheres operárias e também como prenúncio da Revolução Bolchevique.
“Somente na segunda metade do século XX os direitos das mulheres foram ampliados e consolidados de fato na legislação brasileira, seguindo as tendências internacionais. Estes avanços se deram, em grande parte, pelo ativismo do movimento feminista e suas expoentes autoras”, disse a advogada.
Dentre elas, citou VIRGINIA WOOLF em “Um teto todo seu” (1929), SIMONE DE BEAUVOIR, em “O segundo sexo” (1949); CAROL HANISCH em “O pessoal ´e político” (1969); ANGELA DAVIS, em “Mulheres, raça e classe” (1981); BELL HOOKS em “E eu não sou uma mulher?”(1981); JOAN SCOTT em “Gênero: uma categoria útil de análise” (1986); AUDRE LORDE em “Irmã Outsider” (1984); LÉLIA GONZALEZ em “Por um feminismo afrolatinoamerica” (1987) e JUDITH BUTLER em “Problemas de Gênero” (1990).
Um marco importante mundialmente ocorreu em 1975, que foi declarado o Ano Internacional das Mulheres pela ONU, com a realização da Conferência Mundial da Mulher. Em 1979, ocorreu o ato de assinatura da Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida como Cedaw. Este foi o primeiro documento oficial a qualificar a violência contra as mulheres.
‘Quem ama, não mata’
Na virada do ano de 1979 para 1980, o Brasil era sacudido pela morte da socialite Ângela Diniz, assassinada na Praia dos Ossos, em Armação dos Búzios, pelo empresário Raul Fernando do Amaral Street, que chegou a ser absolvido do homicídio na época, na comarca de Cabo Frio. “O júri levou em conta que o milionário era conhecido como um homem bonito, que falava bem e era defendido pelo advogado Evandro Lins e Silva, um dos mais conhecidos do país”, conta a advogada. O caso Doca Street gerou grande repercussão na época e o movimento feminino levantava a bandeira “Quem ama não mata”.
Em 1985 o chamado ‘Lobby do Batom’ pressionava o Congresso Nacional por mais garantias para as mulheres, com a criação da Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes. Cedendo às pressões, 85% das propostas foram incluídas na Constituição Cidadã de 1988. determinando importantes avanços para os direitos das brasileiras.
Dentre eles se destacam a igualdade formal entre homens e mulheres; o aumento dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres; a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal (união com a intenção de constituir família sem vínculo jurídico); a definição do princípio da não discriminação por sexo; a proibição da discriminação das mulheres no mercado de trabalho; e o estabelecimento de direitos no campo da contracepção, relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos.
Lei Maria da Penha, a grande virada no jogo
Em 1990, o estupro e o atentado violento ao pudor passam a ser considerados crimes hediondos. Em 1994 foi lançada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Uma grande conquista veio no ano seguinte, com a destinação de 25% das vagas nos partidos políticos para candidaturas femininas.
O ano de 1998 ficou marcado pela chegada do caso Maria da Penha à Comissão Internacional de Direitos Humanos da ONU. Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após uma grave agressão sofrida pelo então marido, lutou durante 15 anos para que seu agressor viesse a ser condenado. Hoje ela é líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres, vítima emblemática da violência doméstica. Em 2001, a CIDH elaborou um relatório com recomendações para o Brasil.
Entre as medidas indicadas estavam a capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados simplificar os procedimentos judiciais penais; multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica. O relatório também apontou a necessidade de incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na chamada Convenção de Belém do Pará.
Em 2002, o Código Civil garante o poder familiar e a capacidade civil pleno da mulher e no ano seguinte criava-se a Secretaria de Políticas para Mulheres, como um órgão federal. No ano de 2006, foi promulgada a Lei 11.340, chamada de Lei Maria da Penha, considerada uma das mais avançadas em todo o mundo para caracterizar os diferentes tipos de violência sofridos pelas mulheres. Somente em 2015 o homicídio em razão de gênero (feminicídio) passa a ser qualificado judicialmente no Brasil.
Saiba mais sobre a palestra na TV Alerj – veja aqui.