A jornalista Kátia Argento, de 54 anos, sobreviveu à Covid-19 após passar 20 dias “à beira do inferno” no Rio de Janeiro. Esposa de médico, ela enfrentou o drama de passar por três UTIs (Unidades de Tratamento Intensivo), evoluindo do estado grave para o muito grave e o gravíssimo entre o Hospital Municipal Miguel Couto e a Coordenação de Emergencial Regional (CER) Leblon.

Por ser hipertensa e estar acima do peso, seu quadro inspirava cuidados mais extremos. Mesmo assim, no começo da doença, ela não acreditava que poderia chegar a tal ponto e “se deu” alta, o que irritou seu marido, Ivan Santana, um dos mais respeitados neurocirurgiões do Rio. Doze horas depois, estava de volta ao hospital, com 60% dos pulmões atingidos. Teve, como muitos outros pacientes, de esperar 24 horas para ter acesso a uma vaga de UTI.

Aos 73 anos, 42 de Medicina e 30 deles dedicados ao trabalho naquele hospital da rede municipal de saúde, Dr Ivan foi o primeiro profissional da unidade a ser vacinado contra a Covid em janeiro deste ano. Em 2012, ficou conhecido em 2012 por realizar uma complexa cirurgia para a retirada de um vergalhão da cabeça de um operário. Agora, via a vida da mulher se esvaindo, não fosse a equipe liderada pelo colega Ruy Monteiro.

Graças a um tratamento inovador oferecido no SUS, a cânula nasal de alto fluxo (Cnaf), que possibilita que vários pacientes deixem de ser intubados, ela conseguiu se salvar. Do lado de fora, na última quinta-feira (15), ao rever a família após 20 dias “apagada” no hospital, Kátia descobriu que um grande amigo – o jornalista Aloy Jupiara, de 56 anos – não tivera a mesma chance. Assim como a mãe de outra amiga e também jornalista, Claudia Silva, vítima de um dos “efeitos colaterais” da Covid – a falta de leitos de UTI.

Sobrevivente dentre boa parte dos 27 outros pacientes com quem conviveu na última UTI, Kátia merece nossos aplausos, assim como o Dr Ivan, Dr Ruy e todos os profissionais da linha de frente da Covid – ou seriam “anjos da guarda”? – que têm salvado milhares de vidas diariamente nas UTIs do país, apesar das condições precárias com que vêm trabalhando. “Viva o nosso SUS”, brada a jornalista. Vivam todos.

Confira abaixo o depoimento emocionante de Kátia em seu Facebook, que reproduzimos com sua autorização aqui na seção SuperAção.

Katia Argento
Katia Argento no leito de UTI, em um dos momentos mais graves de sua internação, antes de ser sedada (Arquivo pessoal)

Brigando para viver: 20 dias de luta

Por Kátia Argento

Covid é muito mais que uma doença. É uma tragédia que atinge, além da saúde, a política, economia, cultura, o social sem deixar nenhum setor da sociedade excluído.

Em 2020, quando tudo começou, fechei meu apartamento em Copacabana e passei um ano na minha casa de veraneio. Uma privilegiada nessa selva de ignorância e ausência de políticas públicas. Tinha para onde fugir e consegui trabalhar de home office, ao lado da minha família, acrescida por três grandes amigas/irmãs: Maria De Jesus Ribeiro, Marta Simões e Marisa Bastos.

Em 2021 retornei. Com 30 dias de Rio de Janeiro fui contaminada. Durante uma reunião de trabalho me senti muito mal e liguei para o nosso querido Dr. Ivan. O mesmo pediu que eu fosse ao encontro dele. Após uma tomografia, a constatação de que 25% dos pulmões estavam acometidos. Por ser hipertensa e estar acima do peso resolveram me internar. A partir daí eu enfrento 20 dias à beira do inferno.

No quarto dia dessa internação peço para ir embora. Estava muito bem. A equipe me alerta que a gravidade ocorre entre o quinto e o décimo quarto dia da doença. Argumento, questiono, imploro e diante das negativas assumo a responsabilidade da alta. Ivan, irritado, se torna monossilábico comigo.

Chego em casa no final da tarde. Tomo banho, lancho e durmo. A sentença havia sido assinada. E por mim mesma. Por volta das 6 da manhã mergulho em águas profundas e escuras, desço cada vez mais, sem ter fôlego. Chamo o Ivan com as mãos. Não consigo trocar de roupa. Ele e meu filho me vestem e correm para o hospital.

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Na nova TC (tomografia computadorizada) é constatado que 60% dos pulmões estão atingidos. Isso em apenas 12 horas depois. Já não consigo andar e falar é uma missão quase impossível. Quando terminou o exame me deparo com o Ivan atônito, disparando o whatsapp e vendo escorrer, pelas mãos dele, 42 anos de Medicina.

O primeiro a chegar é aquele que vai ser o meu anjo da guarda pelos próximos dias, Dr. Ruy Monteiro. Preciso de CTI urgente. Não havia vaga. Me monitoram e somente 24 horas depois sou transferida. Começo o meu tour por 3 CTIs . O grave, muito grave e gravíssimo.

Primeira parada: CTI 1. Não respondo às expectativas. A essa altura já não vejo mais o Ivan. Alguns dias depois sou “desconectada” numa operação de guerra, me passam para uma maca, me conectam a um cilindro de oxigênio, que viaja ao lado do meu corpo rumo ao CTI 2. Ainda sinto o gelado daquele objeto tocando a minha pele. Na chegada, a dinâmica se repete para ser colocada no leito.

Já não consigo comer a sopa batida no liquidificador. Não tinha fôlego. Impossível ficar sem máscara de oxigênio. Começam cinco dias dias seguidos de febre alta. Para onde o Covid estava me levando? Por que meu corpo não reage a drogas pesadas e inúmeros procedimentos? A imprevisibilidade dessa doença é o que faz com que os profissionais de saúde enfrentem desafios a cada segundo. Nunca se sabe como vai terminar.

O que eu temia estava por vir. Cinco dias sem comer e três sem banho no leito. O simples fato de me virar de lado para higienização, mesmo com oxigênio, fazia com que a saturação caísse.

Próxima parada e última: CTI 3. Era tudo ou nada. O desespero toma conta da minha alma. Não quero intubar! E os meus filhos, neto, marido, mãe? Outra operação desconecta/conecta e uma chegada aterrorizante. Estou no local dos pacientes gravíssimos. Somos 28. Desses, 27 intubados. Somente eu lúcida e sem tubo.

Na primeira noite três pacientes falecem. Barulho da equipe correndo, equipamentos silenciando e por último, o maldito som da cortina correndo nos trilhos e finalizando mais uma história. Meu marido é avisado. Depois de alguns dias, ao abrir os olhos, o vejo. Choramos, nos demos as mãos e conversamos silenciosamente. Pelo olhar. Nunca falamos tanto um para o outro. A única frase que ele verbalizou foi: “Lute! Você é boa nisso e eu te amo!”.

Algumas horas depois aparece Dr. Ruy com algumas pessoas. Com ele uma máquina. Era a última tentativa antes do momento fatídico. Conhecida como cânula nasal de alto fluxo (Cnaf). Uma mangueira grossa é acoplada às narinas. Um ar umidificado e morno penetra no aparelho respiratório. A resposta é imediata ou não. De acordo com as informações esse aparelho tem evitado 70% das Intubações. Mas ainda são raros na rede pública e dependendo da rede privada, bem poucos.

O fisioterapeuta começa a manusear e acoplar o aparelho em mim. Ruy e o restante da equipe se posicionam de frente para o monitor. Final de clássico no Maraca.. Quando aquele ar morno entra em meu corpo sinto um bem estar que não me lembrava mais como era. Minha oximetria bate 92. Comemorações, abraços da equipe e eu imóvel e chorando. A sensação é de que haviam me dado a bola. Bati o pênalti e fiz o gol!

Tenho marcas e cicatrizes espalhadas pelo meu corpo. A gravidade do meu caso me levou a alguns procedimentos invasivos. Umas vão sumir. Outras, não. Mas estou viva!

Vinte dias depois recebo alta. Caminho por um corredor. No final dele uma grande porta. Quando ela se abre me deparo com uma das imagens mais marcantes da minha vida. Meu filho mais velho, Bernardo Argento, de braços abertos e olhos cheios de lágrimas, diz: ‘Vem, mãe’!’. Nos abraçamos e ele comunica à equipe de saúde que completa 30 anos no dia 24 desse mês. E o presente que ele queria acabava de ganhar.

A felicidade pela minha luta é interrompida com as últimas notícias ao chegar no meu apartamento, em Copacabana. A partida do Aloy (o jornalista Aloy Jupiara) e da querida tia Maria Lucia, mãe da Claudia Silva! Soube que no hospital onde o Aloy foi internado os dois CNAFs existentes estavam ocupados. Não deu tempo…

Fico agitada e parto para Itaipuaçu. Tem 72 horas que recebi alta. Preciso de uns dias. Isso tem que acabar! Mas fica aqui o registro. O que me restar de ar continuarei gritando: ‘FORA BOLSONARO’!

Meu agradecimento especial para o meu marido que lutou todos os dias por mim. Te amo, Ivan. Para a Marisa, Jesus, Zé e Silvaneide, minha gratidão por cuidarem da nossa caçulinha, Klara Argento. Bernardo, você arrasou! Cuidou de tudo, da empresa, da casa e das suas irmãs.

Ao Dr. RUY MONTEIRO, minha eterna gratidão. Assim como a Dra. Eulália, Dra. Gianne Lucchesi, Dra.Carolina, Dr.Vinicio Elia, Dr. Renan, Dr. Luiz Fellipe Camacho, Dra. Daniela Von Zuben, Dra. Bárbara C Pilon, Dra Ana Conegundes, Dr. Berguer e Dra. Natascha.

Às enfermeiras Katia Esteves, Mariana, Flávia, Andrea, além do Wander e Diogo, meu muito obrigada. Aos técnicos de enfermagem Sérgio, Evandro, Ana Teresa, Martinha, Ronaldo e tantos outros, não sei nem o que dizer..
Aos maqueiros Diogo e Tayson. Ambos responsáveis por todas as minhas transferências. Vocês foram demais com suas palavras de incentivo.

Através do técnico de laboratório Gilmar Marins agradeço a todos que fazemos nossos exames. Para a turma da Comlurb, responsável pela limpeza hospitalar, aquele ABRAÇO!

E a todos vocês desejo SAÚDE! Foram milhares de mensagens. Mesmo que eu leve um mês, faço questão de responder uma por uma.

A toda a equipe do Hospital Municipal Miguel Couto e CER Leblon muito obrigada por tudo! VIVA O SUS! E mais uma vez, em nome dos mais de 360 mil mortos em nosso país, Fora, assassino!“.

*Kátia Argento é jornalista e atua como coordenadora de Comunicação da Cehab.

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