As famosas ‘canetinhas’ para emagrecer viraram febre no Brasil e no mundo inteiro. Os medicamentos injetáveis – aprovados para uso em pessoas com diabetes e outras comorbidades relacionadas à obesidade – se tornaram itens desejados por milhares de pessoas que também pretendem emagrecer alguns quilinhos, apenas por questão estética – para conseguir entrar naquele biquíni neste verão ou mesmo para fazer bonito durante a folia que se aproxima.
“De 6 a 7 alunos em cada 10 estão utilizando a caneta, especialmente durante o verão ou quer tomar para o Carnaval. Outros para um casamento, e até mesmo noivas expressam o desejo de estar magras. Já tive alunas que não comunicaram o uso e acabaram passando mal”, disse o dono de uma academia de São Paulo, cuja mensalidade chega a quase R$ 2 mil, em entrevista ao programa ‘Fantástico’, da TV Globo, no último domingo (4).
A fama começou desde que a semaglutida passou a ser vendida em 2019 no Brasil para tratar diabetes tipo 2 – adquirida, geralmente, por maus hábitos alimentares, sedentarismo e outros fatores de risco. Posteriormente, seu uso contínuo passou a ser largamente prescrito pelos médicos também para tratar quem sofre de obesidade, uma doença crônica que afeta dois entre 10 brasileiros.
A medicação tornou-se uma das mais receitadas em consultórios de endocrinologistas. A canetinha com a medicação para ser aplicada na barriga chega a custar pelo menos R$ 1 mil por mês e pode ser facilmente vendida até sem receita – o que é um enorme erro, como apontam especialistas. Há pacientes que chegam a usar indiscriminadamente mais de uma canetinha por mês.
Perda média de peso que era de 10% passa para 15% – vale a pena o risco?
De acordo com a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso), estudos mostraram que a semaglutida consegue, pela primeira vez, perdas médias de peso acima de 15%, enquanto remédios mais antigos chegavam a 10%. No entanto, a nova medicação tem sido mais usada atualmente por pessoas com boas condições financeiras que querem apenas perder apenas alguns quilos.
Médicos relatam que é muito comum a procura de pessoas nos consultórios querendo o uso temporário da semaglutida apenas para eliminar entre dois e três quilos, por exemplo. Embora seja considerada segura, não há estudos apontando os riscos dessa medicação em pessoas que querem perder pouco peso.
“Não tenho testes em pacientes que não têm o diagnóstico de diabetes tipo 2 ou o diagnóstico de obesidade ou sobrepeso. Então, eu não posso afirmar a segurança da semaglutida em pacientes fora desse contexto”, diz ao ‘Fantástico’ Priscila Mattar, vice-presidente médica do laboratório Novo Nordisk, fabricante da semaglutida.
Já o endócrino Bruno Halpern, presidente da Abeso, faz um grave alerta: “Nessa pessoa que só quer perder alguns quilos, se parar de usar a medicação não vai conseguir manter, vai aumentar a fome, e vai acabar pensando em usar esse remédio a longo prazo. Cria uma dependência psicológica nesse sentido. Mas não é uma dependência física. O remédio não causa isso”.
Não há qualquer previsão de redução de preço da medicação
Quem realmente precisa de auxílio medicamentoso para melhorar a saúde pode ser condenado a ficar de fora das novidade nos tratamentos para obesidade. Não há num horizonte próximo qualquer chance de os preços da semaglutida baixarem no mercado. no Brasil e no mundo. Afinal, há séculos o mercado é regido pela máxima de quanto maior a demanda, mais caro fica um produto ou serviço.
“Não existe uma previsão de redução de preço da medicação. Hoje, o que nós vivemos é uma situação de não conseguir entregar toda a medicação que o mercado demanda e isso não não é apenas no Brasil, mas no mundo todo”, diz Simone Tcherniakovsky, diretora da Novo Nordisk.
Um estudo da WHG estimou que até 2035, 7% da população americana, que está entre as mais obesas do mundo, estarão usando a ‘canetinha’, o que deverá mudar significativamente o consumo. Segundo projeções da pesquisa, essas pessoas vão comer bem menos alimentos com alto teor de açúcar e gordura.
Uma das maiores redes de supermercados do mundo e dos Estados Unidos chegou a declarar, ano passado, que já estava percebendo essa mudança.
“Eles começaram a observar que teve uma redução no consumo de calorias desses consumidores. Só que eles estavam gastando mais com produtos saudáveis até pesinhos e roupas de academia”, diz Gustavo Campanhã.
‘A obesidade é uma doença que tem cor e que tem classe social’
Já no Brasil, onde a realidade socioeconômica é outra, a procura por medicamentos de alto custo para enfrentar a obesidade pode gerar enorme frustração. O endocrinologista Bruno Halpern define bem o abismo social a que pacientes obesos estão condenados para ter acesso à nova medicação.
“A obesidade é uma doença que tem cor e que tem classe social. Cresce mais a prevalência em negros e em pessoas de nível socioeconômico mais baixo. Então quem mais precisa não tem acesso”, diz o presidente da Abeso.
Mas como enfrentar o drama da obesidade, uma doença que atinge mais de 20% da população, com medicamentos tão caros? “O paciente é responsabilizado por ter a condição (da obesidade). E ele também é responsabilizado por resolver sozinho só com a força de vontade. Se fosse simples, a gente não teria essa epidemia de obesidade“, diz a endocrinologista Maria Edna de Melo.
![Produzida por companhia Dinamarquesa, semaglutida é destinada para tratamento de diabetes tipo 2 e obesidade. — Foto: Reprodução/Fantástico](https://s2-g1.glbimg.com/O6KGfd9azj93ZeEkGmhewxr-OrU=/0x0:1920x1080/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2024/L/r/Uqc4WAT7Of9ekvUJvlOw/globo-canal-5-20240204-1859-frame-276418.jpeg)
Produzida por companhia Dinamarquesa, semaglutida é destinada para tratamento de diabetes tipo 2 e obesidade. — Foto: Reprodução/Fantástico
Com 220 kg, mulher faz vaquinha on-line para comprar ‘caneta’
Moradora de Itajaí (SC), Estela, de 33 anos, representa muitos brasileiros com obesidade. Ela chegou a pesar mais de 220 quilos e enfrenta sérios problemas de saúde por conta disso. Ao procurar um médico, foi orientada a tomar a medicação.
“E aí você vai ver, custa mil e poucos reais e a sua mãe recebe R$ 800 para você comer, para você pagar a luz. Não tem como”, disse Estela, emocionada.
Sem outra saída, mas determinada a mudar sua condição e ganhar mais qualidade de vida, ela resolveu lançar uma vaquinha on-line.
“Não tinha outra opção para mim. A outra opção seria eu vegetar em cima de uma cama até morrer. Eu passava noites e noites sentada na cama. Um dia eu acordei, eu falei ‘eu vou sair e vai ser hoje’ e aí eu botei a cara no Instagram”, relata a catarinense.
“Eu quero vida, saúde. Tudo isso agora eu estou conseguindo graças a Deus”, afirma Estela, que fez uma cirurgia bariátrica em 2023 e agora pesa 154 quilos.
Comentários gordofóbicos nas redes sociais
Não foi nada fácil para Estela. Triplamente estigmatizada por ser pobre, negra e obesa, ela ainda teve que enfrentar cyberbullying e o ódio na internet – foram muitos os comentários gordofóbicos que recebeu no Instagram.
“Quando eu postei falando sobre a história com o link da vaquinha e pedindo para que as pessoas me ajudassem doando, muitas disseram que o dinheiro era para comprar meu caixão, que eu já ia morrer, que ninguém mandou eu comer demais, que era para eu ter visto isso antes”, lamenta Estela.
“A cada crítica de palavra dolorosa que magoava ela, me magoava também. Aquelas fotos dela, ela na cama, ela em pé, abrindo o coração dela e ouvindo coisas duras porque não é fácil a pessoa se expor. Não é [fácil]”, diz Cláudia.
‘Por conta do remédio eu não sinto mais a fome’
A realidade de Cláudia e Estela nem de longe se compara à de Natacha, 29 anos, que mora em Tatuí, interior de São Paulo. Para perder alguns quilinhos, ela recorreu ao uso da semaglutida. E tem conseguido controlar a fome e perder peso – nem termina de comer o pouco que tinha no prato.
“Eu mudei todo o meu hábito alimentar. Por conta do remédio eu não sinto mais a fome. Como um pedacinho de chocolate, já fico satisfeita, uma cervejinha também”, conta Natacha.
Ela diz que decidiu optar pela medicação depois de observar nas redes sociais influenciadoras que perderam peso com dieta e academia, mas de forma muito rápida. “Eu notei que era um período meio curto, então eu desconfiei que também fizessem o uso do medicamento”, conta.
Natacha revela que, após emagrecer com as canetinhas, passou por procedimentos estéticos e gastou mais de R$ 154 mil. Satisfeita com o resultado, passou a postar fotos de biquini, exibindo o novo corpo e atraindo muitos comentários positivos.
Afinal, o mundo das redes sociais – infelizmente – ainda é de pessoas magras, brancas, ricas e felizes.
O poder do remédio x automedicação e efeitos colaterais
Qual é, afinal, o efeito mágico das canetinhas de semaglutida? Assim como outros medicamentos da mesma classe, a semaglutida age de forma semelhante ao GLP1, um hormônio produzido no intestino depois de uma refeição.
“Então, ele vai no estômago, segura um pouco mais a comida lá, então isso dá uma sensação de saciedade”, explica Maria Edna de Melo, endocrinologista do Hospital das Clínicas da USP.
Ainda de acordo com a médica, a medicação age de forma diferente dos medicamentos mais antigos, que agiam via serotonina e noradrenalina, o que poderia ter impacto também no humor e na frequência cardíaca.
“Elas acabam utilizando muitas vezes de forma inadequada e levando ao aparecimento de efeitos colaterais mais intensos, como náusea, até vômitos”, explica Maria Edna de Melo.
Também ao ‘Fantástico’, a dermatologista Maria Fernanda Guazzelli disse que, nas últimas semanas, não passa um único dia sem que uma paciente se queixe de flacidez na pele depois do uso dessas medicações.
“Muitos notaram como se fosse esse derretimento. Uma perda muito rápida de peso. A pessoa perde compartimentos de gordura tanto de corpo quanto de rosto. E a gordura, para nós, é um tecido importante de sustentação da pele”, relata. “Já tive uma paciente que quase não conseguia beber água devido aos efeitos decorrentes da automedicação em excesso”, ressalta Maria Fernanda.
A indústria bilionária por trás da febre das ‘canetinhas’ para emagrecer
Para valorizar ainda mais a novidade, a revista Science, uma das mais respeitadas do mundo, considerou o medicamento usado para tratar obesidade como uma das grandes inovações recentes da ciência no ano passado.
No entanto, o acesso a essa descoberta da ciência é limitado para algumas pessoas devido ao custo elevado. Enquanto pessoas com baixo poder aquisitivo e que realmente necessitam emagrecer para ter saúde precisam fazer ‘vaquinhas’ na internet para ter acesso aos medicamentos, a indústria farmacêutica fatura alto.
A febre mundial da semaglutida – conhecida pelo nome comercial de Ozempic – levou a fabricante das medicações, a dinamarquesa Novo Nordisk, a desbancar a empresa mais valiosa até então da Europa, a Louis Vuitton, marca de bolsas e malas de viagem de luxo.
“A Novo Nordisk vale 480 bilhões de dólares. O PIB da Dinamarca sem a indústria farmacêutica, teria sido menos 0,5% nos primeiros 9 meses de 2023 e o PIB cheio total foi 1,3% para cima, uma diferença muito grande”, disse Gustavo Campanhã, gestor de ações e sócio da WHG.
No Brasil, a medicação foi a mais vendida em 2021, de acordo com a Associação de Indústria Farmacêutica de Pesquisa. Nas redes sociais, não faltam propagandas, inclusive de farmácias. Como muitas não exigem receita, algumas pessoas se automedicam e ainda ensinam na internet como “turbinar” as aplicações.
A procura é tanta que vem despertando o interesse de golpistas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou recentemente ter identificado lotes de Ozempic falsificados, um problema que já se repete desde o início de 2023 não só no Brasil, mas em outras partes do mundo.
Com informações do ‘Fantástico’