Por Marcelo Niel*

A mídia ao redor do mundo tem noticiado o aumento de denúncias de violência doméstica em função do confinamento por conta da pandemia do coronavírus. No Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), houve um aumento médio de 10% das denúncias na segunda quinzena de março, em relação à primeira quinzena.

Considerando a dificuldade que as vítimas possuem em fazer denúncias, muitas vezes motivadas pelo medo e por ameaças do agressor – que não raras vezes é alguém próximo, como marido, namorado, pai, padrasto – é possível supor que esses dados são provavelmente subestimados e que há muito mais casos do que sequer imaginamos. A violência doméstica é uma grave questão de saúde pública no Brasil e no mundo e as mulheres são, de longe, as maiores vítimas.

Há uma série de fatores que motiva esse aumento em decorrência do confinamento. A primeira grande causa é o confinamento em si. Veja que fomos quase todos, de relance, obrigados a mudar radicalmente nossos hábitos de vida e, nos vimos, invariavelmente, privados do nosso ir e vir.

Isso por si só já eleva os níveis de estresse das pessoas, o que predispõe naturalmente, no caso de pessoas obrigadas a conviverem juntas, ao aumento de conflitos. Somam-se a essa situação peculiar os diversos problemas econômicos e sociais decorrentes dessa grave crise mundial: desemprego,contas atrasadas, o medo do contágio e uma gama de inseguranças que só pioram esse caldeirão borbulhante de problemas e insatisfações.

Isso não deve servir como mera justificativa para a violência: uma pessoa que já possuía um padrão de comportamento agressivo, físico ou verbal, tenderá, provavelmente, a se tornar mais agressiva em função do confinamento e desse tanto de problemas que têm afetados tantos de nós. Porém, devemos estar atentos a situações novas, reações agressivas que diferem do comportamento habitual daquela pessoa.

Por exemplo: um homem, casado, com filhos, que nunca apresentou comportamento agressivo físico ou verbal com seus familiares e se vê, em função da crise atual, desempregado, com contas atrasadas, sentindo-se acuado e incapaz de sustentar os seus. Ele passa a ficar impaciente, com insônia, preocupado e vai evoluindo com impaciência, irritabilidade crescentes que culminam com um ato agressivo.

O que se vê, nesses casos, é que homens, mais do que mulheres, têm uma grande dificuldade em pedir ajuda, sobretudo profissional, como recorrer a um psicólogo ou obter algum outro tipo de aconselhamento que poderia lhes fazer recuperar a razão e a buscar saídas mais saudáveis para lidar com os problemas.

Na dificuldade ou impossibilidade de buscar ajuda, a pessoa sob estresse fica mais vulnerável a estabelecer uma relação patológica com o uso de álcool. E o que já estava bastante complicado de início, com certeza piorará ainda mais. Num primeiro momento, aquela cervejinha ou aqueles dois dedinhos de cachaça podem trazer oferecer um certo alívio, um relaxamento. Mas se a cabeça está quente, há um risco de esquentar ainda mais porque o álcool torna as pessoas mais lábeis e diminui o controle dos impulsos. Muitas situações de violência são desencadeadas ou pioradas por pessoas sob efeito do álcool.

Tenho observado nas redes sociais, desde o início da quarentena no Brasil, inúmeras pessoas fazendo uso mais frequente de álcool em suas casas. Nos comércios de produtos alimentícios, quase todas as compras contém algum tipo de bebida alcoólica. Por um lado, muita gente tem agido na quarentena como se estivesse de férias. Há um lado saudável nisso, se encararmos esse período de quarentena de uma forma mais leve, quando possível.

Entretanto, devemos ter cuidado quando ouso de álcool estiver funcionando como um “remédio” para se acalmar, para ajudar a dormir ou para esquecer, ainda que temporariamente, dos problemas. Essa é a fórmula perfeita para transformar o álcool num inimigo, que pode levar a problemas de saúde, piorar o nosso equilíbrio mental, sobretudo o humor e predispor a atitudes violentas, mediante tanta tensão.

Devemos tentar, na medida do possível, manter uma rotina de vida com alguma disciplina. Se estiver trabalhando em casa, procure evitar o álcool durante o horário de trabalho ou durante a semana. Procure reservar esse consumo para um momento especial, ritualize, não banalize. Fique atento se estiver bebendo mais do que bebia antes, porque isso pode ser um alerta para um problema que está por vir. Pessoas que já possuem problemas com álcool, quer estejam em tratamento ou não, estão, por conta da situação, em maior risco de recaídas. É importante buscar ajuda profissional ou de grupos de apoio, como os Alcoólicos Anônimos.

Do outro lado, ou seja, quem está convivendo com uma pessoa adotando comportamento violento, seja piorado ou não pelo uso de álcool, deve evitar o conflito se puder. Discussões, acusações, questionamentos, sobretudo quando a pessoa está sob efeito de álcool, mesmo em pequenas doses ,são importantes desencadeantes de reações violentas. Se for conversar, procure fazer isso quando a pessoa estiver sóbria. Busque ajuda, denuncie, não deixe que essa situação se cronifique ou se prorrogue.

*Marcelo Niel é médico psiquiatra e psicoterapeuta junguiano. Doutor em Ciências pelo Departamento de Saúde Coletiva da Unifesp/SP e Professor do Curso de Medicina da Faculdade Pitágoras de Eunápolis/BA.

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