Ainda sem dados oficiais no Brasil, a população trans começou recentemente a ser integrada às discussões de saúde e bem-estar. No Censo conduzido em 2023, com previsão de lançamento de dados em 2024, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) passa pela primeira vez a adicionar outras identidades de gênero aos questionários.

No entanto, estima-se que cerca de 3 milhões de brasileiros sejam pessoas transgênero ou não-binárias, segundo pesquisa de 2021 da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista.

Uma questão importante para a população transgênero que merece destaque neste mês do orgulho LGBTQIAPN+ – que coloca em discussão as reivindicações da população trans e desmistifica os tabus em torno dessa comunidade – é a cirurgia de redesignação sexual – também conhecida como adequação genital.

A operação leva de cinco a oito horas e a recuperação cerca de 3 meses, quando já é possível iniciar as atividades sexuais. Ao contrário do que muitos podem imaginar, esta não é uma cirurgia meramente estética, para mudar a aparência e a funcionalidade de genitália – masculina ou feminina. Em primeiro lugar, esse complexo procedimento visa melhorar a qualidade de vida e alinhar o corpo de pessoas transgênero com sua identidade de gênero.

Atriz adiou cirurgia por 3 anos: ‘um portal para novas experiências”

A atriz Glamour Garcia, de 35 anos, iniciou em 2009 a transição de masculino para feminino e de lá pra cá se tornou uma ativista pelos direitos da comunidade trans. Ela fez sucesso com a personagem Britney, em A Dona do Pedaço (2019), na Rede Globo. O papel lhe rendeu o troféu de Atriz Revelação no Melhores do Ano de 2019.

Na época, ela já estava com cirurgia marcada para o início de 2021, porém, desistiu.  Embora sempre tenha dito ter consciência de que o processo não valida a sua cidadania e vivência, ela havia decidido adiar sua cirurgia, mas garante que não foi porque tinha dúvidas sobre o procedimento.

Quando adiei a cirurgia estava focada na minha carreira, por isso resolvi esperar. Isso me deu tempo para me preparar e sei que agora é o momento certo”,  revelou, por ocasião da cirurgia.

Considerada uma cirurgia extremamente radical, a redesignação sexual feminilinizante – caso de Glamour Garcia – consiste na amputação do membro, que será transformado em uma neovagina. Na cirurgia são preservados a uretra, a pele e os nervos que dão sensibilidade à região. São removidos os testículos, preservando a pele da bolsa escrotal.

Os últimos dias, antes da cirurgia foram muito corridos, porque ela estava trabalhando em set de filmagem, gravando seu último e mais novo trabalho no cinema – o filme Homem de Ouro, que estreia em 2024, onde interpreta Rogéria; “Fazer essa cirurgia me trará benefícios físicos e psicológicos e, principalmente, existencial, para eu me encontrar num lugar filosófico e espiritual”.

O procedimento foi realizado na Transgender Center Brazil, a cargo do médico José Carlos Martins Junior, que já realizou mais de 600 cirurgias como esta. O reconhecimento lhe rendeu um convite para participar do livro escrito pelo médico, intitulado “Transgêneros: Orientações médicas para uma transição segura”, primeiro e único livro destinado à comunidade trans que aborda as técnicas de cirurgias faciais, corporais e sexuais. A atriz assina a contracapa da obra.

Estou muito feliz, pois sinto que é um processo que vai iniciar um novo ciclo, como um portal para novas experiências que vão se dar. Eu estava mais agitada, mais ansiosa, mais insegura, mas nesse momento, tendo passado por todos os exames e de preparação também, me sinto bem mais tranquila para passar por isso”, contou.

Transgenitalização x redesignação sexual

O cirurgião plástico especialista em adequação genital Matheus Manica explica que essa cirurgia é um passo importante na atenção de saúde das pessoas trans e tem além dos efeitos físicos, impactos psicológicos positivos, algo já comprovado em estudos científicos.

O termo técnico para se referir ao procedimento é transgenitalização, que engloba todos os procedimentos cirúrgicos para adequação da genitália à identidade de gênero da pessoa. O termo redesignação sexual deve ser evitado, pois ele pode passar uma ideia errada de que se está mudando o sexo da pessoa”, explica Matheus Manica.

O médico desenvolveu uma técnica específica, baseada em protocolos de profissionais de vanguarda no assunto nos Estados Unidos e na Tailândia, que privilegia a sensação de prazer das mulheres trans após a operação.

A parte sensitiva é preservada, com o clitóris e os nervos da região  modelados para que a sensibilidade seja principalmente na vulva. Isso é mais próximo da fisiologia de uma mulher cis (não transgênero), em quem o canal vaginal em si não tem terminações nervosas específicas”, diz ele.

Disforia de gênero é a principal indicação

Para começo de conversa, é bom deixar claro que a grande e principal indicação para este procedimento é a disforia de gênero, que indica um desconforto significativo com a genitália atual. Esta avaliação é realizada por uma equipe multiprofissional, composta por psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, urologistas, cirurgiões plásticos, ginecologistas, entre outros especialistas.

No Brasil, é exigido um acompanhamento mínimo de um ano antes da cirurgia, durante o qual a equipe multiprofissional avalia a saúde física e mental do paciente, garantindo que ele esteja em condições adequadas para a realização do procedimento.

É essencial destacar que a cirurgia de redesignação sexual não é um procedimento estético, mas sim uma intervenção médica destinada a reduzir o sofrimento causado pela disforia de gênero. Reconhecer a importância do procedimento é fundamental para combater o preconceito e a discriminação enfrentados pela comunidade transgênero.

É importante conscientizar a sociedade de que não se trata de um procedimento estético ou superficial. É uma cirurgia que melhora a forma como essa pessoa vive e a funcionalidade dessa pessoa na sua vida como um todo”, afirma o urologista Thiago Caetano, cirurgião especialista em redesignação sexual e afirmação de gênero do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.

Segundo ele, a cirurgia de redesignação sexual é um tratamento muito eficaz e que melhora muito a qualidade de vida de pessoas trans que apresentam disforia de gênero, ou seja, pessoas que apresentam sofrimento, um desconforto importante em relação a sua genitália, que afete a sua funcionalidade,  relacionado à presença de genitais que não são coincidentes com o seu gênero de identificação.

Redesignação sexual feminizante ou masculinizante

Existem dois tipos principais de cirurgia de redesignação sexual: feminizante e masculinizante. A primeira visa transformar uma genitália originalmente masculina em feminina, enquanto a segunda faz o oposto. No entanto, o urologista explica, antes da cirurgia, os pacientes são submetidos a exames que variam de acordo com sua condição de saúde.

Pacientes jovens e saudáveis podem precisar apenas de exames de sangue simples e avaliações cardíacas básicas, enquanto aqueles com condições médicas pré-existentes podem necessitar de exames mais detalhados. Doenças pré-existentes, como hipertensão arterial e diabetes, devem ser controladas antes do procedimento cirúrgico.

Complicações e cuidados no pós-cirúrgico

Embora a cirurgia de redesignação sexual possa trazer melhorias significativas na qualidade de vida, é importante estar ciente das possíveis complicações, como infecções pós-operatórias e abertura de pontos. No entanto, complicações mais graves, como trombose, são raras. O acompanhamento pós cirúrgico dura no mínimo seis meses.

A recuperação da cirurgia para as mulheres é demorada e envolve cuidados em geral com a região operada, como higiene e repouso, e a necessidade de dilatação do canal vaginal. A dilatação vai fazer o canal que foi recém-criado ganhar e manter as suas dimensões”, explica o médico.

O acompanhamento pós-operatório é de extrema importância, deve ser realizado de perto pelas equipes médica e assistencial. Já a redesignação sexual masculinizante envolve cuidados intensivos para assegurar a recuperação adequada. Inclui gestão da dor e cuidados com os ferimentos cirúrgicos, especialmente com o neofalo criado. A reabilitação pode envolver fisioterapia e acompanhamento psicológico.

É crucial seguir todas as recomendações médicas para evitar complicações e promover uma recuperação saudável e segura. Segundo o especialista, para muitas pessoas transgênero, a cirurgia de redesignação sexual é uma etapa crucial em sua jornada para viver de acordo com sua identidade de gênero.

É de suma importância promover o acesso equitativo a esses procedimentos e combater o estigma em torno da cirurgia, reconhecendo sua importância na promoção da saúde e bem-estar das pessoas transgênero”, conclui o médico.

Dúvidas sobre a cirurgia de redesignação sexual ou adequação genital

Ainda há muitas dúvidas a respeito dos cuidados com a saúde de pessoas trans, em especial em relação à cirurgia de adequação genital. O médico responde abaixo as principais questões relacionadas ao tratamento.

  • A partir de que idade é possível fazer a cirurgia?

Antes, essa cirurgia só era permitida para pessoas a partir dos 21 anos. No entanto, desde 2020, o Conselho Federal de Medicina atualizou os critérios e passou a permiti-la a partir dos 18 anos.

  • Como é feito o procedimento?

O procedimento consiste na retirada da parte erétil do pênis, preservando a parte sensitiva que é modelada no clitóris para dar sensibilidade. Já a pele do pênis é utilizada para formar os pequenos lábios e a pele da bolsa escrotal é utilizada tanto para os grandes lábios quanto para revestir o canal vaginal.

Os testículos são retirados durante a cirurgia, diminuindo a produção de testosterona e evitando a utilização de bloqueadores hormonais. O canal urinário é encurtado e parte de sua mucosa é utilizada na parte interna dos pequenos lábios para ficar com um aspecto mais natural.

  • O que é preciso para realizar a cirurgia?

Para que a cirurgia seja liberada, é necessário que a paciente esteja sendo acompanhada por uma equipe multidisciplinar com endocrinologista, psicólogo e psiquiatra por ao menos um ano. Esses profissionais precisam realizar um laudo atestando a disforia de gênero apresentada pela paciente. É obrigatório que ela já tenha assumido socialmente o gênero que pretende adotar e recomenda-se o tratamento hormonal para adquirir as características sexuais secundárias, conforme o caso, sempre orientada pelo endocrinologista.

  • Quanto tempo dura o procedimento?

A cirurgia tem uma duração média de 7 horas. A internação pós-cirúrgica dura três dias e, a partir do segundo, já é possível caminhar.

  • É possível ter orgasmos após a cirurgia?

Sim. Antigamente, a cirurgia era basicamente uma amputação: retiravam-se os nervos, o que afetava a sensibilidade. Com as técnicas mais modernas, os nervos são preservados, permitindo a formação de um clitóris sensível com a possibilidade de alcançar o orgasmo. Isso ocorre quando o cérebro reaprende a anatomia do corpo e a nova conformação dos nervos, processo que é quase como uma ‘segunda puberdade’.

  • Quanto tempo dura o pós-operatório?

A cirurgia de adequação genital é um tratamento reparador e complexo, ou seja, o pós-operatório dura cerca de três meses, mas a cicatrização e o inchaço podem continuar por até um ano depois da operação.

É importante frisar que a recuperação varia muito de pessoa para pessoa, não só pela resposta do corpo, mas também por seguir corretamente as recomendações médicas, como a higiene adequada e a realização dos curativos. Além disso, é recomendado manter um acompanhamento psicológico nesse período para ajudar a lidar com a ansiedade de uma recuperação longa.

  • É possível realizar a cirurgia pelo plano de saúde?

Sim. Na versão mais recente da Classificação Internacional de Doenças (CID), a transexualidade foi renomeada como incongruência de gênero e não é mais considerada uma doença e sim uma condição que afeta a saúde. Dessa forma, se a pessoa sofre com disforia de gênero, ela tem o direito de realizar essa cirurgia e outros tratamentos para sua transição com a cobertura do plano de saúde, algo que foi determinado em resolução da Agência Nacional de Saúde (ANS).

Letramento LGBT: saúde e inclusão

Em meio aos avanços da sociedade em direção à inclusão e respeito à diversidade, o letramento LGBT surge como uma ferramenta importante para promover um ambiente de saúde mais acolhedor e inclusivo, especialmente nos espaços hospitalares.

Dentro do Programa de Diversidade e Inclusão do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, desde 2023 foram criados grupos de afinidades de diferentes áreas, um deles é focado para funcionários e pacientes LGBT.

Os grupos de afinidade têm um espaço dedicado ao fortalecimento mútuo, promovendo o compartilhamento de experiências, valorização das singularidades, aprendizado e criar um ambiente seguro para esse público.

O treinamento de competências culturais é uma parte essencial do letramento LGBT. Ele visa não apenas ensinar sobre as especificidades dessa população, mas também sobre como tratá-los com dignidade e respeito. Afinal, o objetivo é criar um ambiente que seja acolhedor e seguro para todos, independentemente da sua orientação sexual ou identidade de gênero”, diz o especialista.

O letramento vai além do simples conhecimento, se trata de uma conscientização que busca educar indivíduos e comunidades sobre as questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero. O urologista explica que, em ambientes de saúde, a importância do letramento ocorre em fornecer um cuidado mais sensível e eficaz às pessoas LGBT.

Ainda existem diversas barreiras que dificultam o acesso a um atendimento de qualidade para essa população, como a falta de conhecimento sobre questões específicas relacionadas à diversidade de gênero e orientação sexual”, afirmou o especialista.

Dela, Dele

Um dos aspectos cruciais do letramento LGBT é o uso adequado de pronomes. O emprego incorreto pode gerar desconforto e invalidar a identidade da pessoa, contribuindo para a sua marginalização.

É essencial que profissionais de saúde estejam familiarizados com o uso correto dos pronomes e saibam como respeitar a identidade de gênero de cada paciente”, enfatiza o urologista.

Além disso, questões administrativas também entram em jogo no processo de letramento LGBT. A adequação de formulários e documentos para que sejam mais inclusivos, deixando de lado a binaridade de gênero e incorporando espaços para a autoidentificação do paciente, é uma medida fundamental para garantir que todos se sintam reconhecidos e respeitados nos ambientes de saúde.

Com Assessorias

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