Casamento homoafetivo pode ser proibido: mas existem regras para o amor?

Pai de 5 filhos adotivos em união homoafetiva questiona proposta que tramita na Câmara. Psicanalista pergunta: ‘por que o amor incomoda tanto?’

Geninho e Dua adotaram Maria, hoje com 14 anos. Depois, viveram seus quatro irmãos para formar uma 'família homoafetiva' e felliz (Fotos: Acervo pessoal)
Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!

A aprovação, na Câmara Federal, do projeto de lei 580/2007 que proíbe a união civil homoafetiva no Brasil gerou um amplo debate esta semana na sociedade e dividiu opiniões nas redes sociais. A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família  aprovou a medida,  que seguiu para análise da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial. Se avançar nesta esfera, o que é considerado difícil por especialistas, vai depois para a Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da Casa. Só depois então, caso passe, poderá ir ao plenário. Se aprovada pela maioria dos deputados, ainda precisaria ser votada pelo Senado Federal.

Apesar das chances consideradas remotas de ser efetivada, a aprovação na instância inicial da tramitação da matéria foi vista como um retrocesso pela ala mais progressista e que dá vitória parcial para o forte lobby dos movimentos conservadores – leia-se igrejas – sobre os deputados federais. Também tramita na Câmara o PL 5167/09, de autoria do ex-deputado Capitão Assumção (PL-ES), proibindo que relações entre pessoas do mesmo sexo sejam equiparadas ao casamento ou a entidade familiar.

O parecer do deputado Pastor Eurico (PL-PE) que foi apreciado e aceito na primeira comissão alega que, no Brasil, o casamento homoafetivo não está legalizado e nem previsto em lei, mas acontece graças a um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2011, que entendeu que ele é constitucional e uniformizou os julgados de todo o País sobre o assunto. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que os cartórios realizassem o casamento homoafetivo.

O empresário e escritor catarinense Geninho Goes, que vive uma união homoafetiva com cinco filhos adotados – todos irmãos de sangue -, assiste “com espanto” o desenrolar das discussões sobre o tema em Brasília. Na sua opinião, o deputado Pastor Eurico deveria levar em conta dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do mesmo CNJ, que apontam a existência de 32.512 crianças, sendo pelo menos 4.425 já estão disponíveis para adoção.

“Os motivos? Negligência, violência e abuso lideram a lista, e muitos dos pais dessas crianças, provavelmente heterossexuais, são casados. Então, como homem casado com outro homem, não posso querer que equiparem nossa união com esse cenário e nem com as 35.544 pessoas ou famílias dispostas a adotar, porque temos algo de diferente e que precisa ser conhecido”, diz Goes.

Pai de 5 filhos cobra solução para famílias normoafetivas desestruturadas

Segundo o empresário, em vez de derrubar a união civil homoafetiva, os parlamentares deveriam olhar para as famílias normoafetivas que pedem apoio para educar seus filhos. Ele menciona os muitos casos de alcoolismo, violência doméstica e outros abusos que poderiam explicar os motivos que levam milhares de crianças para abrigos anualmente.

Além de projetos sociais efetivos para amparar essas famílias, ele cobra a necessidade de agilizar processos de adoção e também criar um sistema de acompanhamento para pais que adotam crianças “mais velhas”, já que, segundo Geninho, estatísticas apontam que 93% das pessoas preferem adotar crianças pequenas, pincipalmente meninas de até um ano de idade.

“Se, em vez de relatar o que pode ou não pode, o que é certo ou errado, buscando definição para casamento e família, os esforços fossem concentrados na solução dessas questões, com certeza teríamos famílias mais estruturadas e crianças vivendo de uma maneira mais digna”, enfatiza o empresário.

Autor do livro ‘Paiciência – Lições práticas de uma família inspiradora e nada convencional, um guia que auxilia pais e mães no exercício da parentalidade responsável’, Geninho lidera o movimento inovador Paiciência na Prática, amplamente reconhecido nas redes sociais.

Afinal, existem regras para o amor?, questiona psicanalista

Diante de toda discussão, a psicanalista Andrea Ladislau, uma das especialistas do Portal ViDA & Ação (leia aqui) faz uma importante reflexão, “para clarear a mente daqueles que ainda, em pleno século XXI, estão presos às regras e normas que são reproduzidas sem considerar o humano em toda sua essência”.

“Afinal, existem regras para o amor, que não seja a existência do próprio amor? Por que será que o amor incomoda tanto? Por que a liberdade de amar sem preconceitos, fere e aprisiona?”, indaga, ao cobrar respostas com urgência.

Para a doutora em Psicanálise, o preconceito e o tabu ainda tornam a homossexualidade “um grande ponto de ataques, questionamentos e regramentos, que, de forma proposital, tendem a anular os sentimentos do outro, ignorar o prazer em sua forma mais genuína e lidar com o tema com a naturalidade que ele merece”.

Ainda segundo Andrea, é preciso reafirmar compromisso com a diversidade e o respeito a todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

“A orientação sexual é apenas mais uma característica de um sujeito, dentro da expressão de sua sexualidade, que é subjetiva e única. Ela engloba tudo aquilo que a pessoa é capaz de construir em relação ao amor, ao carinho e ao sexo, e não o que o outro acredita ou quer dela. Nenhum indivíduo é igual ao outro, e isso inclui também pensar em sua orientação sexual”, diz a psicanalista.

Leia mais

‘Paiciência: lições práticas de uma família nada convencional’
Dois pais sob o mesmo teto: o conceito reinventado de família
Após 8 tentativas, casal gay comemora nascimento de bebê

Homossexualidade não é doença, distúrbio nem perversão

Há mais de 33 anos, em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). A decisão, infelizmente, não acabou com preconceito e discriminação, mas foi um passo importante para o entendimento do conceito de homossexualidade como identidade sexual, o que derrubou de vez a defesa da chamada “cura gay’.

“Homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e muito menos uma perversão; ela apenas reflete uma ideia de comportamento, ou o modo de ser de alguém. O mais importante é ser livre para ser quem você quiser. E se o preconceito, a intolerância e a discriminação são doenças da nossa sociedade, não podemos esquecer que a sociedade somos nós”, destaca a psicanalista. 

Ela defende o rompimento da “barreira limitadora” que entende o amor apenas por um aspecto reprodutivo, sob a ótica da formação de famílias. “E, diga-se de passagem, ‘famílias margarina’, perfeitas e respeitadoras das regras impostas por uma sociedade que nega a formação de vínculos homoafetivos, que perfeitamente, também podem criar e educar filhos”, critica.

Ainda de acordo com a especialista, pelo ponto de vista da saúde mental, independentemente de orientação sexual ou gênero, “a união estável reconhecida pelo estado brasileiro sempre irá suportar os mesmos desejos”.

“A vontade de dividir a vida, as escolhas e a construção do laço afetivo para partilhar carinho, amor e parceria, cabe em qualquer lugar e em qualquer relação, seja ela heterossexual ou homoafetiva. O que importa é o sentimento dos parceiros que definiram estar juntos na caminhada“, reflete.

‘Paicência na prática’: como casal homoafetivo adotou cinco irmãos

Acostumado a uma rotina com participações em programas de televisão, volta ao mundo, cargos importantes e sucesso profissional, Geninho assumiu um novo ofício: a paternidade responsável. Ele e seu companheiro Duda se tornaram pais de cinco crianças “da noite para o dia”, inspirando milhares de famílias, mães e pais que buscam o equilíbrio entre casa e trabalho.

Para Geninho, “casamento feliz é aquele em que se vive bem”. Mesmo assim, ele “pediu a mão” do companheiro Duda em casamento para a mãe dele na noite de Natal de 2012 e um ano depois, os dois estavam casados. Dois anos mais tarde, em 2015, quando o STF permitiu que casais do mesmo sexo adotassem crianças, o casal viu a oportunidade de tomar essa medida e, um ano após a legalização, adotou a primeira filha, que já tinha 8 anos de idade. A família numerosa veio por acaso depois da adoção dr Maria, hoje com 14 anos.

“O que não imaginávamos era que, seis anos mais tarde, seríamos surpreendidos com a notícia de que ela tinha mais quatro irmãos e que eles estavam na fila de adoção. As chances de eles serem divididos ou permanecerem no abrigo, como acontece com milhares de crianças, eram bastante altas. Foi assim que um casal composto de dois homens formou uma família com cinco filhos”, conta Geninho.

A sua história do casal tem inspirado muitos outros casais – inclusive não homoafetivos – a realizarem adoções tardias, consideradas as mais difíceis. Ele defende “uma mudança nas relações e no entendimento das necessidades humanas”.

“Torço para que o amor realmente prevaleça, porque esta é a bandeira erguida por quem se casou com alguém do mesmo sexo e formou uma família afetiva e nada convencional da noite para o dia, assumindo a responsabilidade da parentalidade de cinco crianças que estão muito bem assistidas, acolhidas e amadas”, ressalta.

Segundo ele, o mundo hoje vive um “momento de transição histórica”. “É uma era de liberdade de expressão do ser, de aceitação das pessoas pelo que elas são e, acima de tudo, de manifestação do amor. A definição de família também mudou, hoje sabemos que existem pessoas do mesmo sangue que são extremamente tóxicas a seus semelhantes, e das quais a melhor alternativa é se afastar”, comenta.

Número de casamentos homoafetivos quadruplicou em 10 anos

Geninho e Duda não estão sozinhos. Desde a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, que obriga a celebração de casamentos homoafetivos em cartórios, o número de casamentos homoafetivos cresceu quase quatro vezes no Brasil. Os registros saltaram de 3.700 em 2013 para quase 13 mil em 2022.

Antes da aprovação do casamento civil, houve a equiparação da união estável homoafetiva, em 2011. Mas o direito à adoção por casais do mesmo sexo só ocorreu em 2015. Outros países também passaram a reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Apesar do avanço, a medida tomada pela OMS não representou a cidadania plena para essa minoria. De acordo com dados publicados no ano passado pela organização Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), em 69 países membros das Nações Unidas, a homossexualidade ainda é criminalizada, com casos de prisão e até de pena de morte.

Dessa lista, 31 países ficam na África, apesar de algumas mudanças recentes na posição sobre a comunidade LGBT+ em países como Angola, Gabão e Botswuana. Já a transexualidade só deixou de ser classificada como doença pela OMS em junho de 2018.

Uma estatística ainda envergonha o Brasil em particular. O país continua a liderar o ranking dos países que mais matam LGBTIs+. De acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), ao menos 256 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros foram vítimas de morte violenta em 2022.

Decisão de aceitar ou não o casamento homoafetivo deve ser do casal

Ainda segundo Geninho, pessoas que se unem pelo afeto são exemplos de convivência em harmonia. “Viemos de uma época de casamentos arranjados pelos pais, de violência contra as crianças, de trabalho forçado na infância, tudo isso validado pela sociedade de forma escancarada. Nossa era é outra, à qual a lei ainda não conseguiu se adequar, mas tudo é uma questão de tempo”.

O escritor aproveita para sugerir ao deputado, autor do PL, a criação de “uma categoria de casamento para enquadrar pessoas que optaram pela parentalidade responsável, que se uniram porque se amam e se respeitam, que dedicam o propósito de suas vidas para a reconstrução da família e a quebra de ciclos, possibilitando uma era de mais entendimento e amor”.

E provoca: “Se criar, pode me incluir, acredito que não faço parte do passado, assim como muitas pessoas, independentemente de seu gênero”.

Na avaliação de Andrea Ladislau, “as amarras sociais que impedem o outro de ser livre e de viver suas escolhas, certamente, contribuem para o aumento dos conflitos cotidianos desnecessários”. Afinal, aceitar ou não o casamento homoafetivo deveria ser uma escolha apenas de quem faz parte deste contexto, ou seja, de quem está sendo pedido em casamento”.

Ela cita um pensamento da literatura freudiana que pode justificar o real sentido da batalha da ala conservadora do Congresso. O de que, atacando o outro, estamos, de forma inconsciente, combatendo os nossos próprios desejos, ou seja, estamos sempre transferindo para o outro, aquilo que está mal resolvido dentro de nós. Será?

Com Assessorias

Gostou desse conteúdo? Compartilhe em suas redes!

You may like

In the news
Leia Mais
× Fale com o ViDA!