Na empresa onde trabalhava fazia tempo, João (nome fictício), de 47 anos, seguia uma carreira ascendente, assumindo novos papeis de tempos em tempos por conta de sua experência, competências e habilidades. Com o aprofundamento da crise econômica, a empresa onde trabalhava, que já sofria com problemas de má gestão, passou a realizar demissões em massa e cortar benefícios. Muitas outras dezenas de colegas de trabalho foram dispensados, sem direito sequer às indenizações trabalhistas devidas por direito.

Dali em diante, começou o inferno particular de João. Sem o antigo diretor que valorizava e reconhecia seu trabalho e seu esforço, ele passou a ser alvo de perseguição sistemática por parte do chefe do setor onde trabalhava, que, por sua vez, se via também ameaçado de demissão dentro da nova estrutura enxuta de trabalho da empresa. João começou a sofrer constantes humilhações públicas, acusações falsas, comentários maliciosos e piadinhas até mesmo de ordem pessoal – inclusive sobre o tipo de roupa que usava após o trabalho. Ações simples do dia a dia da rotina de trabalho eram desqualificadas, algumas vezes aos gritos, publicamente. E tudo tinha a anuência do novo diretor da empresa.

João não sabia mais o que fazer diante das constantes agressões. E por mais que fizesse, o chefe carrasco nunca estava satisfeito. E cobrava mais, e humilhava mais, e ameaçava mais… João, então, passou a sofrer com fortes crises de gastrite. Em seguida, enfrentou a insônia, ficava ansioso e ‘acelerado’. Em casa e com os amigos, já se manifestava com agressividade e impaciência. Apoiado por um colega de profissão, rompeu seu medo de ficar doente e resolveu procurar o consultório de um psiquiatra, onde foi diagnosticado com transtorno de ansiedade generalizado.

O problema lhe causou, inclusive, crises de síndrome do pânico – João tinha medo de adoecer, medo de morrer, medo de sentir medo. Por vezes, João foi parar na emergência, acreditando estar sofrendo um infarto ou AVC. Até sua pressão descontrolava. Sob o olhar indiferente de muitos colegas – alguns por ser cúmplices do jogo de cena perverso do chefe,  outros por temerem ‘se envolver’ e acabar também se prejudicando -, João foi mais uma das milhares de vítimas que sofrem silenciosamente dentro de empresas de diversos setores no Brasil, especialmente nesses tempos de tanta instabilidade e incerteza.

Mesmo sofrendo uma dor avassaladora na alma, que se manifestava fisicamente, João não tomava a decisão de pedir para sair, embora o ambiente hostil criado por seu chefe e alimentado por outros colegas o forçasse a isso. Pai de família, ele temia o pior: o desemprego. E por isso aguentou até as últimas consequências. Após longos e terríveis meses de assédio moral, ele foi finalmente demitido, mesmo em tratamento dos danos psicológicos causados pelas constantes agressões e ataques. No dia em que recebeu ‘cartão vermelho’, ainda sofreu do seu algoz o golpe de misericórdia: “Você até foi muito bom e gostava muito de você, mas agora não se enquadra mais aos objetivos da nossa área e por isso será dispensado”.

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Mas, afinal, como é possível identificar que está sendo vítima?  Quais são os principais sinais de um processo de assédio moral dentro da empresa? Para falar sobre como este crime vem impactando muitos trabalhadores, em diferentes áreas e funções, ViDA & Ação convidou para esta quarta matéria sobre Saúde Organizacional e seus impactos na vida dos trabalhadores a psicóloga Cláudia Melo para fazer um raio X sobre assédio moral. Ela vem sendo requisitada para tratar do tema junto a diversas empresas e instituições. Confira a entrevista:

– Como o assédio moral está impactando a vida dos brasileiros neste cenário de crise econômica e grande instabilidade no ambiente de trabalho?

O assédio moral está trazendo muitos prejuízos sim, principalmente nessa época de crise em que as pessoas estão buscando um trabalho, ou buscando se manter no seu. É comum ter medo de ficar desempregado, principalmente para quem tem família. Então, a pessoa vai ficando nesse ambiente hostil o máximo que puder, tentando criar uma estrutura para conseguir lidar com esse ambiente cruel. Como psicóloga, eu ouço algumas questões de trabalho de como essas pessoas estão se submetendo a situações tão terríveis por medo do desemprego. O processo que o país está enfrentando também coloca as pessoas em uma condição desumana, essa é a verdade.

– O que caracteriza o assédio moral no ambiente de trabalho? E como podem ser classificados?

O assédio moral é caracterizado por conduta que evidencia a violência psicológica com o empregado. Na verdade, evidencia que existe uma prática abusiva do empregador com o empregado, colocando-o numa situação humilhante de xingamento na frente dos outros funcionários. Por exemplo: coloca apelido, propõe metas inatingíveis, constrangimentos que deixam o empregador sempre em uma condição inferior. Esse chefe se coloca de uma maneira muito estranha, sempre deixa muito claro que aquela pessoa não é importante, mas de maneira sutil, e esses comentários são diários. Sempre ele (o agressor) vai reforçando essa fala até que esse empregado consiga assimilar e se comportar do jeito que ele deseja.

– Por quanto tempo os abusos devem durar para que sejam caracterizados como assédio moral?

Na verdade, esse comportamento é diário, são atitudes repetidas com frequência. Essa pessoa vai criando situações que geram danos físicos e psicológicos.  O assédio moral para ser caracterizado precisa de uma prática diária. O objetivo é denegrir, desestimular, deixar abaixo do nível. E tem todo um processo de jogos e estímulos para a vítima chegar a adoecer.

– Qual o limite entre a brincadeira e o assédio em um ambiente de trabalho mais informal? Falsas acusações, comentários depreciativos, “brincadeiras” de mau gosto também podem ser consideradas agressão?

Às vezes gera uma dúvida sobre o que é assédio moral. Mesmo quando existe um ambiente mais descontraído, leve, a brincadeira tem que valer para os dois, as duas pessoas têm que estar se divertindo. Se não for assim, não é brincadeira. Quando começo a denegrir, colocar apelido, colocar em evidência aquilo que não é qualidade, por exemplo, pegar um ponto fraco: “Nossa você só chega atrasado”. Mas ninguém fala que ele fico mais tempo no horário. “Ah, você não cumpre com seus relatórios”, “que roupa é essa? Está saindo com quem dessa vez?”. São falas que vão deixando a pessoa constrangida e com medo de se expor cada vez mais. Então, a pessoa vai se encolhendo no seu ambiente de trabalho e vai criando uma casca, mas o ser humano não aguenta porque ele foi feito para interagir. A partir do momento que tenho que estar me protegendo em um ambiente, naturalmente eu vou adoecer. Vai surgir algum tipo de patologia porque não vou dar conta, não vou sustentar por muito tempo esse ambiente tão hostil. A brincadeira só é brincadeira quando as duas pessoas estão se divertindo, do contrário, não é brincadeira.

– Existem profissões mais expostas ao abuso de poder do empregador? Ou todos podem ser vítimas?

Realmente não existe profissão que está mais exposta a passar por esse processo de assédio moral, e também não existe perfil de personalidade, perfil psicológico. Qualquer um pode sim vivenciar essa terrível experiência do assédio moral. Qualquer um pode adoecer no seu ambiente de trabalho. Qualquer um pode estar em um momento mais frágil da sua vida e, talvez, por isso se submeter a uma fala abusiva ou maldosa. Quando tenho encontro com amigos de trabalho e falamos sobre esse assunto, percebo que pode ser homem ou mulher, e não importa a idade. É bem complicado porque não tem como se proteger desse tipo de situação, não tem como dizer “nunca vou passar por isso”. Tem que estar atento aos sinais desse processo porque se não pontuar logo desde o início e pensar “eu vou levar numa boa” terá problemas futuros. Não existe uma pessoa que passou por esse processo de assédio moral e ficou bem.

– Na sua palestra, você fala que o assédio moral geralmente é planejado pelo abusador. Com que intenção? Como isso acontece? Como reconhecer um plano desses em andamento?

O assédio moral é planejado sim, principalmente quando o chefe se sente ameaçado por esse novo empregado. Ele percebe que esse novo empregado tem nível superior, pós-graduação, cursos, fala outros idiomas, e por isso se sente inseguro. Na verdade, ele acredita que essa pessoa quer tomar o lugar dele, então ele começa a criar estratégias de expor essa pessoa. Mesmo o empregado tendo toda essa qualidade profissional, pode não ter estrutura psíquica para lidar com tanta pressão e o chefe vai identificar isso. Então, ele joga uma situação e vai ver como essa pessoa vai se comportar. E a partir do momento que ele pegar a isca, vai criando situações para cada vez mais a vítima não se sentir capaz de estar naquele lugar, naquela posição, ou querer galgar outro cargo, assumir uma chefia. Ele vai minando todas as possibilidades, e na verdade, ele faz de uma maneira muito pensada, muito calculada. Por isso consegue atingir o alvo, por isso consegue adoecer aquela vítima.

– Quais são os danos psicológicos causados pelo assédio moral? E qual a gravidade desses danos para a saúde do trabalhador?

Os danos são baixa autoestima, depressão, ansiedade, taquicardia, gastrite, intestino irritado, síndrome do pânico… São muitas as doenças que podem trazer o enfraquecimento desse projeto de trabalho e de carreira. Com essas consequências, a pessoa vai estar o tempo todo se sentindo mal e não vai conseguir galgar aquilo que planejou. Essas são doenças causadas por esse processo e isso é gravíssimo.

– Há pessoas que minimizam a vítima de assédio moral, afirmando que ela tem “mania de perseguição”. Como diferenciar?

Muitos dizem que a pessoa tem mania de perseguição. Devemos olhar o histórico da pessoa. Se essa pessoa já tem uma fala de outros lugares, se traz questões de família como “minha sogra pega no meu pé”, “minha colega implica comigo”, essa é uma pessoa que tem uma fala pesada, acredita que todo mundo quer o mal dela, podemos acreditar que esse comportamento vai se repetir no trabalho. Mas se essa pessoa sempre foi tranquila e nunca teve essa fala, precisamos ficar mais atentos.  Se começar a falar “tem uma pessoa no meu trabalho que está me perseguindo”, “tem uma pessoa que quer o meu mal”, neste caso é preciso ouvir com muito mais cuidado, muito mais atenção, porque pode ser verdade. Do contrário, se ela já vem com essa fala, deve-se entender que é uma pessoa que precisa tratar outras questões porque ela realmente acredita que todo mundo quer o mal dela, mas para chegar a fechar um diagnóstico, é preciso ouvir, e ouvir com cuidado.

– Como pode traçar o perfil de um assediador? Quando se trata de um preposto da empresa, em geral são comportamentos de chefes inseguros?

Dificilmente conseguimos traçar o perfil de um assediador. O importante é prestar atenção no líder (que às vezes tem o perfil de “chefe bom”) e observar esse líder que apresenta muito resultado para empresa. Porque geralmente ele tem um comportamento não de liderança, mas de chefe. Ele traz um peso, e coloca uma responsabilidade acima da média nas coisas e nos seus liderados. E sua fala é convincente. Quando chegar em uma empresa, é importante estar atento à fala dos seus colegas: “Como é o chefe daqui? Como ele se comporta?”. Dependendo das respostas, é preciso sinalizar para esta pessoa que já percebeu como ela é, e que com você vai ser diferente. Não pode mostrar medo, insegurança, mas deve mostrar que quer respeito e só está ali para trabalhar. Não tem como traçar esse perfil só observando, ouvindo comentários de amigos para criar uma postura diante da situação.

– É possível se proteger ou se prevenir? Como parar o assediador, já que muitas vezes a vítima teme ser demitida se denunciar?

É possível se proteger, se prevenir, observando o seu ambiente de trabalho, como as pessoas se comportam com as outras.  A fala do chefe, do colega do trabalho, do líder… É preciso estar atento, e a partir do momento que perceber uma fala mais abusiva deixar claro:  “não trata assim o fulano”,  “tenha mais respeito com o colega” e quando for com você também deixar claro: “me respeita”, “não gostei dessa atitude”. O importante é não deixar passar despercebido porque a prevenção acontece assim. Se deixar, isso vai crescendo, e chega em um momento que não tem mais controle, é o momento do aqui e do agora. Quando acontecer, deve sinalizar e pontuar, deixar claro que percebeu o intuito, a  malícia, a maldade e a partir daí  inibir esse comportamento, evitar que repita novamente essa estratégia com você, que é uma estratégia já elaborada, montada e ele só quer realmente colocar em prática.

– Como devem ser tratadas as vítimas de assédio moral? Quais os tratamentos mais indicados?

Quando a gente fala em como tratar essas vítimas, vale falar que geralmente elas chegam em um consultório de psiquiatria, dificilmente elas vão a um consultório de psicologia de início porque elas não têm condições de desenvolver seu trabalho. Vão surgindo várias patologia como depressão, síndrome do pânico… E quando elas chegam no consultório, nem sabem porque estão ali, e falam de uma maneira muito superficial. Quando o profissional vai buscando o histórico, geralmente a pessoa não sabe como começou, só com muita conversa percebe-se que aquela pessoa é uma vítima de assédio moral e é necessário fazer com que esse paciente busque novamente sua identidade, descobrir quem ele é, suas qualidades, seu potencial, conseguir elevar essa autoestima, trazer de volta sua saúde física e mental. Esse é o processo da terapia, é um processo que traz resultado porque não é superficial, é aprofundado. Quando a pessoa chega no consultório com essas questões ela já perdeu sua identidade, já não sabe quem ela é e qual o seu propósito aqui no mundo.

– Quais as consequências, do ponto de vista da empresa e do empregador, do assédio moral sofrido por um colaborador pelo preposto da empresa?

É importante saber que  a empresa pode passar por esse processo e pagar uma indenização ao seu empregado, e entender que foi dentro desse processo de trabalho que o seu empregado adoeceu. A empresa irá sim arcar com tudo isso, às vezes, com o tratamento, até que esse empregado volte a sua rotina de trabalho. Ou, enfim, que ele consiga outro trabalho, já que alguns não conseguem voltar ao serviço antigo, não conseguem retomar sua vida, sua carreira e isso cabe uma indenização.

– Em uma eventual ação judicial, o que deve ser considerado como provas dos danos causados por assédio moral? Laudos psicológicos também são considerados?

Realmente o laudo psicológico, psiquiátrico irá ajudar nesse processo sim. É importante um acompanhamento porque isso irá pontuar todo esse processo, e como ele adoeceu dentro desse processo de trabalho, dentro dessa empresa. Por isso é importante o empregado dentro dessas condições buscar sim o psiquiatra e ajuda psicológica.

Fonte: Claudia Melo – claudiassmmelo@hotmail.com 

 

 

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