Arduamente defendido pela extrema direita brasileira no genocídio de palestinos na Faixa de Gaza, Israel, quem diria, é um dos países mais progressistas do mundo quando o assunto é… aborto. Há 45 anos a interrupção da gravidez é, de fato, permitida na ‘terra santa’, considerado um lugar sagrado para muitas religiões, especialmente o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.
Entre os brasileiros, o país é idolatrado especialmente pela bancada evangélica – a mesma que já usou a tribuna para defender o genocídio em Gaza. E, curiosamente, a mesma que tenta, a todo custo, criminalizar mulheres e, sobretudo, meninas que engravidam após ser vítimas de estupro.
Em meio à polêmica do projeto de lei 1904, que equipara o aborto acima de 22 semanas a homicídio, com pena de prisão até 20 anos – maior até que a do estupro -, chama atenção o tratamento que Israel dá às mulheres que não querem seguir com a gravidez em diversas situações – não apenas em caso de violência sexual.
A Israel verdadeira não é uma teocracia conservadora, mas uma democracia liberal e, acima de tudo, diversa. O aborto é uma realidade, de modo que o assunto nunca foi muito polêmico”, explica Daniela Kresch, jornalista, colaboradora do Instituto Brasil-Israel (IBI) e residente no território israelense.
Mulheres israelenses têm direito a aborto mesmo após 24ª semana
Apesar de ser ilegal sob a Lei Básica de Israel, qualquer mulher que se encaixe em casos específicos pode suspender a gravidez quando quiser, mesmo depois de 24ª semana. E mais: de graça em clínicas e hospitais dos quatro planos de saúde do país ou em clínicas privadas.
O aborto em Israel é acessível em nos casos em que:
- a mulher grávida tiver menos de 18 ou mais de 40 anos;
- a mulher não seja casada ou a gravidez não seja do casamento;
- a gravidez for resultado de relações ilegais de acordo com a lei penal, ou incestuosas;
- a criança for suscetível de nascer com alguma deficiência física ou mental;
- a continuação da gravidez coloque em perigo a vida da mãe ou lhe causar danos físicos ou emocionais.
Daniella avalia que a lista de casos específicos acaba por integrar grande parte dos fatos que fazem a mulher desejar interromper a gravidez.
Se a situação estiver de acordo com esse rol, basta a mulher passar por um comitê formado por três membros (dois médicos obstetras ou ginecologistas e um assistente social), para obter a autorização, o que costuma ser rápido. Um desses membros deve ser uma mulher e, no caso de a gestação estar após a 24ª semana, o comitê precisa ser composto por cinco membros”, detalha a jornalista.
Menor de idade nem precisa de autorização da família
Essas exceções foram introduzidas na lei em 1977. Com o tempo, os casos autorizados foram aumentando até chegar à lista acima. Mulheres que optam por pedir autorização para abortar não precisam de consentimento de homem algum (nem do pai de criança) e nem da família (caso seja menor de idade).
Numa publicação do próprio Ministério da Saúde israelense, o aborto é bem explicado para as mulheres jovens. Ali está escrito ‘Lembre-se: Este é o seu corpo! Ninguém pode decidir por você e forçá-la a dar à luz ou fazer um aborto. Ninguém além de você pode ter 100% de certeza sobre a decisão ‘perfeita’”.
Mesmo diante do acesso facilitado ao aborto em Israel, há quem faça o procedimento sem pedir a autorização legal, o que é proibido. Nesses casos, entretanto, as mulheres que passaram pelo procedimento não são presas ou julgadas. O crime recai sobre o médico, que pode ter uma pena de cinco anos de reclusão.
Geralmente, quem procura essas clínicas e o processo de forma ilegal são mulheres com medo ou com vergonha de se apresentarem aos comitês de autorização, algo que acontece com a minoria de quem deseja suspender uma gravidez indesejada”, conclui a colaboradora do IBI.
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#CriançaNãoéMãe: projeto de lei que criminaliza meninas gera protestos
Nos últimos dias, um dos principais assuntos nos noticiários e redes sociais do Brasil foi o aborto, devido ao projeto de lei assinado por 32 deputados que equipara o procedimento de interrupção de gestação ao crime de homicídio.
O polêmico PL 1904/2024, que tramita em caráter de urgência na Câmara dos Deputados, gerou um enorme movimento no país inteiro, sob a mote #CriançaNãoéMãe, com protestos contrários em várias capitais brasileiras.
O projeto acrescenta alguns parágrafos a quatro artigos do Código Penal Brasileiro, instituído na década de 1940, e as pessoas envolvidas em um aborto após 22 semanas de gestação podem ser condenadas pelo crime de homicídio simples, com penas que podem variar de 6 a 20 anos de reclusão, tanto para a mulher, quanto para quem ajude no procedimento.
O texto, que ainda não foi levado a votação, gerou uma série de debates. Por isso, conhecer a realidade de outros países – como Israel – é fundamental para enriquecer a discussão.
Retrocesso nos Estados Unidos é tratado em filme
Antes de o assunto vir à tona no Brasil, os Estados Unidos já enfrentavam um processo de retrocesso semelhante, em que a Suprema Corte permitiu que vários estados norte-americanos acabassem com o direito das mulheres de terem autonomia sobre seus corpos.
Desde junho de 2022, cerca de 21 estados da federação passaram a criminalizar o aborto. O curta-metragem ‘Contrações’ se passa em Memphis, cidade do Tennessee, um dos estados em que a proibição foi aprovada. A diretora Lynne Sachs utiliza suas décadas de experiência de produção de contraimagens feministas para conduzir uma performance com 14 mulheres e alguns de seus companheiros.
O ato criou invisíveis visibilidades e emudecidos discursos diante de uma clínica de aborto, cujo trabalho precisou ser interrompido depois dessa decisão. O filme foi apresentado na 13ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, dentro da Mostra Competitiva Internacional. Assista ao trailer: https://vimeo.com/
Também no México – o status legal sobre o aborto varia de acordo com a lei de cada estado. Segundo o Centro de Direitos Reprodutivos, nos últimos 30 anos, mais de 60 países liberalizaram as leis sobre aborto e quatro reverteram a legalidade da prática: EUA, Polônia, Nicarágua e El Salvador.
O aborto é proibido totalmente em 21 países, com um total de 111 milhões de mulheres. Neles, a legislação não permite o aborto em nenhuma circunstância, inclusive quando a vida ou a saúde da gestante estiver em risco. Nesse grupo estão países como Nicarágua, Honduras, Suriname, República Dominicana, Senegal, Egito, Madagascar e Filipinas.
77 países permitem aborto, 47 deles por questão de saúde
Atualmente, mais de 662 milhões de mulheres vivem em 77 países onde o aborto é permitido mediante solicitação da gestante. Segundo o Centro de Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights) – uma organização global de direitos humanos formada por advogados e defensores – esse número representa 34% do total de mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo.
A realização do aborto por motivos de saúde é permitida em 47 países, onde vivem 226 milhões de mulheres. Nesta condição, 20 países permitem explicitamente o aborto para preservar a saúde mental da pessoa grávida, como Bolívia, Angola e Gana. Muitos países também permitem o aborto por outros motivos, como estupro ou doenças do feto.
Segundo levantamento da organização, o Brasil está na classe de países que permitem o aborto para salvar a vida da gestante. Um total de 44 nações estão nesta categoria, sendo que 12 também permitem o aborto em caso de estupro ou em determinados diagnósticos fetais. Nesta lista também estão Chile, Venezuela, Paraguai, Síria, Irã, Afeganistão, Nigéria e Indonésia.
Qual é o limite gestacional em outros países?
O limite gestacional para a realização do aborto nesses países varia, mas o mais comum é que seja permitido até 12 semanas de gravidez. No entanto, o aborto é permitido depois desse limite por outros motivos como quando a saúde ou a vida da grávida está em risco ou quando a gravidez é resultado de estupro.
Na Itália, por exemplo, o limite para interromper a gravidez é 90 dias de gestação. Na Alemanha, são 14 semanas; na França, o limite é de 16 semanas e na Tailândia, de 20 semanas.
Em Portugal, o limite é dez 10 semanas para a mulher fazer um aborto sem precisar justificar, mas em caso de estupro ou malformação, o prazo é estendido para 16 e 24 semanas, respectivamente.
Outras 457 milhões de mulheres vivem em 12 países onde o aborto é permitido por razões socioeconômicas como idade, status econômico e estado civil da gestante.
Muitos países e territórios dessa categoria também permitem o aborto quando a gravidez resulta de estupro ou incesto ou em alguns casos de diagnósticos fetais. Nessa categoria estão Japão, Índia e Grã-Bretanha.