Em outubro de 1918, minha avó estava prestes a parir minha tia, em meio ao auge da gripe espanhola. Ela pedira a meu avô que fosse buscar a parteira, que não morava muito longe. A família morava em São Cristóvão, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. A parteira nunca chegou e minha avó pariu sozinha a pequenina Irene, com a ajuda dos três filhos menores de 10 anos: Aquilino, Mercedes e Durval.

Meu avô não conseguiu chegar até a casa da parteira. Ficara caído pelo caminho, praticamente desacordado, sem forças, contaminado que estava pelo vírus da gripe espanhola . Aquele 14 de outubro de 1918, minha avó passou interinho sem meu avô, na companhia da filha recém-nascida e dos outros três filhos pequenos.

Já era noite bem fechada, quando meu avô conseguiu voltar. Não chegou perto dela, da recém-nascida ou dos outros filhos. Caiu no chão de uma varandinha em frente à casa. Minha avó teve de se virar sozinha. Ela nos contava esta história e que as pessoas caiam mortas nas ruas, ou muito doentes.

“Durante a espanhola, a padiola custava muito a chegar ou nem chegava. Ninguém tinha coragem de chegar perto. Os mortos e os doentes ficavam ali por muito tempo”, dizia ela. Meu avô, um sortudo, recuperou-se e eles seguiram juntos por quase 50 anos. Seu Nunes se foi um ano antes de fazer bodas de ouro com dona Esmeralda.


Calcula-se que cerca de 50 milhões pessoas em todo mundo morreram com a doença, que, hoje sabemos ter sido causada pelo vírus H1N1, para qual temos vacina. No Brasil, estima-se que entre 35 e 50 mil pessoas tenham morrido. Cento e dois anos depois, outra epidemia nos acomete e parece que pouco aprendemos com o passado. O Brasil tem mais de 162 mil óbitos, segundo secretarias estaduais de saúde. Embora seja recomendado distanciamento social e uso de máscaras, muitos ignoram tais recomendações e ainda debocham delas.

Ao contrário de nós, os que conviveram com a gripe espanhola não tinham as informações que temos hoje. Tampouco sabiam o que era aquela doença e como evitar formas de contágio. Tal qual hoje, o governo tentava driblar estatísticas e negava a letalidade da doença. Tal qual hoje, inventavam-se remédios milagrosos, como a caipirinha, que nasceu na época como um “medicamento” improvisado para tratar e curar a gripe. O quinino e cloroquino, avós da cloroquina de hoje, também foram difundidos pelas autoridades como panacéias para curar a doença. O que, claro, também não funcionou. Nem ontem, nem hoje.


Se errar é humano, repetir o erro é burrice, diz a sabedoria popular. Neste sentido, para evitar que a burrice nos acometa de todo, a antropóloga Lilia Schwarcz e a historiadora Heloisa Starling lançaram, agora em outubro, o livro A bailarina da morte – a gripe espanhola no Brasil, para iluminar o ostracismo ao qual a espanhola foi relegada, fator que também contribuiu, no entender das autoras, para que outra tragédia do mesmo tipo se repetisse, causando tantas mortes (muitas desnecessárias): a Covid-19.

As autoras conseguiram recuperam histórias e números que o governo da época tentou, primeiro, negar; depois, esconder; para, ao final, minimizar. Tal qual a Covid-19, a gripe espanhola atacou com mais força pobres e negros. Isto porque epidemias escancaram desigualdades e desiguais com mais violência. Pobres e negros têm menos acessos a hospitais e a unidades de saúde, por exemplo.

Segundo as autoras, na Covid-19, o quadro que temos se mostra pior do que foi com a epidemia de gripe espanhola. Isto porque, embora ciência e tecnologia tenham progredido enormemente, teríamos regredido como sociedade igualitária. Vale conferir o trabalho das autoras!


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