O Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou nota no fim da tarde desta terça-feira (18/7) em repúdio aos atos de violência registrados na madrugada de domingo (16), no Hospital Municipal Francisco da Silva Telles, no bairro do Irajá, zona norte do Rio de Janeiro. O incidente resultou na morte da aposentada Arlene Marques da Silva, de 82 anos, e em ferimentos na médica Sandra Lúcia Bouyer Rodrigues, que foi alvo de agressões durante o plantão. O episódio deixou vários pacientes sem atendimento.
Acusados de agredir a médica plantonista com socos e pontapés, André Luiz do Nascimento Soares e sua filha, Samara Kiffini do Nascimento Soares, foram presos em flagrante por homicídio doloso (quando há intenção de matar). Eles chegaram à unidade hospitalar procurando atendimento para um corte em um dedo da mão esquerda de André, que não se conformava em esperar pelo atendimento e entrou na emergência aos gritos.
Segundo relatos de testemunhas ouvidas pela Polícia Civil, a médica estava em atendimento quando escutou a confusão e foi ver o que estava ocorrendo na emergência. A partir daí, as agressões começaram. André Luiz só parou com a chegada de policiais militares, que conduziram a dupla para a delegacia. Arlene, que estava na sala vermelha, destinada a pacientes graves, acabou morrendo.
No dia da agressão, Sandra Rodrigues era a responsável pelos cuidados de 60 pacientes, dos quais 40 em estado grave. Nas redes sociais, a médica contou que estava sozinha no plantão quando sofreu as agressões.
“Tenho mais de 30 anos de atuação no município. Com orgulho. Nessa madrugada, fui vítima da precariedade e insegurança dos trabalhadores na Saúde. Agredida fisicamente por um homem que não soube ouvir, sem nenhum segurança. Resultado: 5 pontos na boca, equimose, arranhões, polícia, delegacia, IML. E tudo isso assumindo um plantão sozinha com mais de 60 pacientes internados”, escreveu no Facebook.
CFM cobra mais segurança para profissionais de saúde
Para o CFM, esse e outros episódios do mesmo exigem dos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) e da área de segurança pública – em todas as instâncias (municipal, estadual e federal) – a adoção urgente de medidas efetivas para prevenir e combater a violência em todas as suas formas de manifestação, nos ambientes médico-hospitalares, sob pena de responsabilização de negligência com relação a situações desse tipo.
“A garantia de condições para o exercício da atividade médica, dentre os quais a oferta de um espaço seguro, é imprescindível à oferta aos pacientes de acesso ao direito fundamental à saúde, tanto na rede pública quanto na rede privada”, alertou o presidente do CFM, José Hiran Gallo.
O caso não é fato isolado. Nos últimos anos, também no Rio de Janeiro, a imprensa noticiou a agressão de pelo menos três médicos. Num dos casos, uma médica atendia numa UPA em Cabo Frio; no segundo, outra profissional estava em atendimento no Hospital Municipal Albert Schweitzer; e no terceiro, um médico apanhou por não dar um atestado a um paciente.
Segundo o CFM, um levantamento feito pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) aponta o registro de 69 casos de agressão, entre dezembro de 2018 a agosto de 2019, o que dá uma média de um caso a cada quatro dias.
‘Momentos de terror dentro do ambiente de trabalho’, diz Cremerj
O Cremerj também se manifestou “com indignação”, por meio de nota, sobre os atos de violência, manifestados por meio de “confusão, com gritos, ofensas, agressões físicas e danos ao patrimônio público”, e se solidarizou com “a médica e todos os profissionais da área da saúde que viveram momentos de terror dentro do seu ambiente de trabalho” – veja aqui.
Segundo o órgão, uma paciente (Arlene) teve uma parada cardiorrespiratória e não pôde ser assistida pela médica, pois ela havia sido imobilizada pela dupla. “Infelizmente, a paciente foi a óbito. O homem, que iniciou a confusão, tinha um ferimento leve em um dos dedos e, por isso, tinha recebido a classificação “verde””, descreveu o órgão.
O Conselho informou ainda que ofereceu apoio de sua assessoria jurídica para a médica e enviou ofício à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e à direção do Hospital Municipal Francisco da Silva Telles para pedir esclarecimentos, além de se colocar à disposição no que for necessário.
“O Cremerj também pede às autoridades que os agressores sejam devidamente responsabilizados por seus atos. O Conselho repudia veementemente qualquer tipo de violência dentro das unidades de saúde”, diz a nota.
Ainda segundo o Cremerj, essa não é a primeira vez que uma médica é covardemente agredida enquanto exercia a sua profissão. Há cerca de um ano, por exemplo, uma médica pediatra foi agredida durante o atendimento no Hospital Municipal Albert Schweitzer. “Devido ao aumento significativo de casos parecidos, o CREMERJ vem estabelecendo uma luta constante em prol da segurança dos médicos nas unidades de saúde”.
O Cremerj infornou ainda que, nos últimos meses, o Conselho se reuniu, por mais de uma vez, com o secretário de Estado e comandante-geral da Polícia Militar (PMERJ), o coronel Luiz Henrique Marinho Pires, para avaliar medidas para segurança dos médicos em seus locais de trabalho. A autarquia também teve reuniões sobre o assunto com representantes do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) e da diretoria de saúde da PMERJ.
“Em junho deste ano, o Conselho aprovou a Resolução nº 344/2023, que determina que todas as unidades de saúde do Estado do Rio de Janeiro forneçam segurança para garantir a integridade física dos médicos e demais profissionais que atuam nesses estabelecimentos. A normativa também torna compulsória a notificação ao Cremerj sobre a ocorrência de violência contra médicos dentro desses estabelecimentos e indica também que seja oferecido apoio administrativo e psicológico à vítima”.
Ainda segundo a autarquia, o Portal da Defesa Médica, lançado em 2018 no site do Cremerj tem o objetivo de agilizar a assistência aos colegas que forem vítimas de qualquer tipo de agressão.
Prefeitura informa que mantém vigias desarmados nos hospitais
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que “na emergência de clínica médica desta unidade, o plantão noturno é composto por dois médicos. Um dos profissionais escalados para a noite de sábado para domingo teve um problema de saúde e não pôde comparecer”.
A pasta informou ainda que “Dra. Sandra estava no plantão da emergência de clínica médica, o que inclui o pronto atendimento e as salas de observação, com prioridade para os casos de maior gravidade e risco”. O hospital tem 154 médicos em seus quadros, 55 deles atuando na Emergência e os demais nos setores de internação e ambulatório.
“Todas as unidades da Secretaria Municipal de Saúde contam com profissionais de vigilância desarmados. Em caso de alguma intercorrência, as autoridades policiais são acionadas”, informou a SMS-Rio.
Acesse na íntegra a nota divulgada pelo CFM
‘Um band-aid resolveria o caso dele’, disse delegado
O delegado Geovan Omena, responsável pelo caso no Hospital Municipal Francisco da Silva Telles, disse ao jornal O GLOBO que ficou surpreso com a agressividade da dupla.
“Quando tem um caso de vida ou morte, a gente até entende a pessoa ficar desesperada pelo atendimento. Nada justifica a agressão. No caso ele tinha um corte no dedo. Um band-aid resolvia o caso dele a noite toda”, disse.
Ainda segundo o delegado, Samara ameaçou a médica de novas agressões. “Quando ela tomou conhecimento que iria permanecer presa, ela virou para a médica e disse: ‘Você toma cuidado que você está marcada, quando eu sair, vou lá e te matar de porrada’. Os dois não possuem passagem pela polícia, mas nada justifica as agressões que fizeram”, completou Omena.
Nesta segunda-feira (17), a família da idosa que morreu durante o incidente esteve no Instituto Médico Legal (IML) para os procedimentos de liberação do corpo para sepultamento. Elaine Marques, 52 anos, filha de Arlene, contou que havia esperança de levar a mãe para a casa nesta semana.
“Não justifica um cortezinho no dedo tirar a vida de uma pessoa na sala vermelha. Podem achar pequeno, pouco isso, mas a gente não acha. Minha mãe era muito amada, querida pelos filhos e bem tratada para morrer dessa forma”, disse.
Elaine acredita que a mãe passou mal com o susto e morreu por isso. “Ele (André Luiz) entrou na sala simulando que estava armado. Todo mundo saiu correndo. Um paciente com bolsa de colostomia correu e se escondeu no banheiro. Foi o que me contaram. Minha mãe quando viu aquilo começou a passar mal na cama e não pôde ser atendida porque estavam socando a cara da médica”, disse.
Arlene deixou oito filhos e 38 netos e bisnetos. ” A gente é muito apaixonado pela minha mãe. Ela já estava se recuperando. Só quero justiça”, disse.
Em SP, 75% dos profissionais de saúde já sofreram violência no trabalho
A violência contra médicos e médicas não é exclusividade do Rio de Janeiro. De acordo com o CFM, há registros de agressões contra médicos, feitas pela imprensa ou órgão de classe no Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Rondônia, sem contar as agressões cotidianas, que não recebem a atenção da mídia.
Pesquisa feita pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e pelo Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Cofen), publicada em 2017, mostrou que 75% dos médicos e enfermeiros já tinham sofrido violência no trabalho. Percentuais similares foram encontrados por pesquisadores que divulgaram no site Springer um artigo recente sobre o assunto.
De acordo com a pesquisa, 75% dos profissionais de saúde dos Estados Unidos já tinham sofrido agressão no local de trabalho. Na Índia, considerado o “país líder” em relação à violência contra médicos, 75% dos médicos já tinham enfrentado algum tipo de violência em sua vida profissional, sendo que é maior a prevalência entre médicos com menos de 5 anos de experiência.
Na Alemanha, uma pesquisa com 831 psiquiatras mostrou que 91% já tinham sofrido agressões no trabalho. Outra pesquisa feita na Espanha mostrou que as agressões eram maiores no setor público, onde 89% dos profissionais de saúde afirmaram ter sofrido agressões. Para os autores do artigo, o tempo de espera para o atendimento e a falta de medicamentos são fatores que desencadeiam cerca de 15% das violências contra médicos.
“Nada justifica uma agressão contra um profissional de saúde que está tentando salvar vidas, como a doutora Sandra Rodrigues. É preciso oferecer condições para que o médico possa exercer em paz o seu ofício. Diante disso, se a presença de policiais nos hospitais e unidades de saúde para que tentativas de agressão sejam coibidas”, arrematou o presidente do CFM.
Com informações do CFM, Cremerj, SMS-Rio e agências (atualizada em 19/7/23)