Sem apresentar evidências científicas, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, causou polêmica nesta semana ao relacionar o uso de Tylenol (paracetamol) durante a gestação ao aumento dos casos de Transtorno do Espectro Autista (TEA), recomendando que grávidas evitem o medicamento. Ele também ligou a vacinação infantil ao desenvolvimento do autismo.
Em um anúncio durante uma coletiva na Casa Branca na segunda-feira (22), Trump afirmou que bebês seriam “carregados” com até 80 vacinas “de uma só vez” e recomendou que gestantes evitem o uso de paracetamol. Segundo ele, a agência reguladora de medicamentos do país, a FDA (Food and Drug Administration) notificaria médicos sobre um “risco muito maior” de autismo associado ao uso do medicamento, recomendando que grávidas o evitem, a menos que seja “clinicamente necessário”.
A declaração, feita ao lado do secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., vai de encontro ao consenso da comunidade científica e de grandes instituições de saúde em todo o mundo. O tema repercutiu internacionalmente, causando uma onda de controvérsia, e foi alvo de críticas da comunidade científica, que alerta para o risco de se propagar conclusões sem respaldo robusto.
A ciência por trás do debate
A afirmação de Trump e sua equipe se baseia em estudos observacionais que, em alguns casos, encontraram uma pequena associação entre o uso do paracetamol na gravidez e o risco de transtornos do neurodesenvolvimento. No entanto, a ciência por trás do tema não é conclusiva e, segundo especialistas, as evidências atuais são fracas. A principal ressalva de pesquisadores e médicos é que a associação não significa, necessariamente, uma relação de causa e efeito.
A comunidade científica e a sociedade civil reforçam que o autismo não é uma doença, mas uma condição do desenvolvimento neurológico, o Transtorno do Espectro Autista (TEA), com causas genéticas e ambientais complexas. O aumento dos diagnósticos, por sua vez, está mais relacionado à maior conscientização e à ampliação dos critérios diagnósticos do que a um único fator externo.
O paracetamol, princípio ativo do Tylenol e de outros analgésicos e antitérmicos, é considerado por especialistas e entidades de saúde a única opção segura e de venda livre para gestantes que precisam aliviar dores ou febre. O Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia e o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, por exemplo, o classificam como a “primeira escolha” de analgésico para o grupo.
Um estudo sueco com 2,5 milhões de crianças, por exemplo, revelou que a associação desapareceu quando os pesquisadores compararam irmãos nascidos da mesma mãe, o que sugere que os sinais encontrados em pesquisas anteriores podem ter sido influenciados por fatores de confusão, como a condição de saúde que motivou o uso do medicamento.
OMS e agências reguladoras desmentem Trump
A Kenvue, fabricante do Tylenol, reagiu prontamente à fala de Trump, defendendo a segurança do medicamento e ressaltando que pesquisas rigorosas não encontraram evidências que vinculem o paracetamol ao autismo. A empresa alertou que a desinformação pode levar mulheres grávidas a optarem por alternativas mais arriscadas ou a não tratarem condições como a febre alta, que podem ser prejudiciais tanto para a mãe quanto para o bebê.
Após a declaração de Trump, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu uma nota relatando que “atualmente não há evidências científicas conclusivas que confirmem” a ligação do autismo e o paracetamol na gravidez. Na nota, a OMS também citou que nenhuma das muitas pesquisas sobre o assunto encontrou associação consistente.
A Agência de Medicamentos da União Europeia também disse que “atualmente não há novas evidências que exijam alterações nas recomendações atuais de uso” do medicamento pela instituição.
Apesar disso, a FDA – agência reguladora de alimentos e medicamentos dos EUA, equivalente à Anvisa – anunciou que atualizará informações sobre o medicamento e iniciou o processo para modificar a bula do paracetamol no país, para refletir as supostas evidências, além de emitir alerta para médicos dos Estados Unidos sobre o medicamento. Apesar disso, a agência reforçou que não há comprovação de relação causal entre o paracetamol e o autismo.
Anvisa: não há registros que relacionem paracetamol a autismo
No Brasil, a declaração também tem repercutido. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou nesta quarta-feira (24), que o Brasil não tem registros que relacionem o uso de paracetamol durante a gravidez com casos de autismo e garante que o o uso do medicamento é seguro.
A agência informa que o paracetamol é classificado em norma como medicamento de baixo risco e, por isso, faz parte da lista de produtos que não exigem receita médica. De acordo com a agência, a liberação de medicamentos no país segue “critérios técnicos e científicos rigorosos” para garantir qualidade, segurança e eficácia. Mesmo assim, esse tipo de remédio passa por monitoramento.
O Ministério da Saúde emitiu uma nota oficial para reforçar que “o paracetamol, um fármaco de propriedades analgésica e antipirética (redução da febre), é seguro, eficaz e não está relacionado a ocorrência de autismo”.
A Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil) se pronunciou, criticando a fala de Trump e a classificando como uma “estratégia deliberada de transformar nossa condição em um mal a ser combatido”.
A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp) também rebateu o presidente americano, salientando que “a evidência científica atual não sustenta uma associação causal robusta entre o uso de paracetamol e o desenvolvimento de autismo”
Para tranquilizar a população, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, publicou nas redes sociais um recado sobre a falta de comprovação científica.
O Tylenol é causa do autismo? Mentira! Não existe nenhum estudo que comprove uma relação entre o paracetamol e o Tylenol com o autismo. Esse tipo de mentira coloca a sua vida e a vida do seu bebê em risco. A Organização Mundial de Saúde, a Anvisa, as principais agências internacionais de proteção à saúde, já deixaram claro: o paracetamol é medicação segura. Aliás, o autismo foi diagnosticado e identificado muito antes de existir paracetamol.”
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Mães preocupadas com a desinformação
O caso ganhou repercussão no Brasil, sobretudo entre as mães de crianças com o diagnóstico de autismo. Pelas redes sociais ou em grupos de maternidade, relatos de preocupação e sentimento de culpa. Para Rayanne Rodrigues, a preocupação maior foi com a “desinformação”. Estudante de Farmácia e mãe de uma criança com autismo nível dois de suporte, ela relata a empatia pelas mulheres que carregam o sentimento de culpa.
Nós, como mães atípicas, ficamos preocupadas com o tamanho da desinformação que é repassada para frente. Uma mulher grávida já não tem um leque assim muito grande de medicamentos que pode ser tomado durante a gestação”, afirmou
“Não é o meu caso, mas tem muitas mães que se culpam pelo filho ter o transtorno, ficam se perguntando o que elas fizeram de errado na gestação. E aí vem uma situação dessa e acaba culpabilizando mais ainda a mãe, sendo que nós não temos culpa. Vários fatores podem ocasionar o autismo”, completou Rayanne.
A recomendação unânime de todos os profissionais de saúde e organizações é que as gestantes conversem com seus médicos antes de tomar qualquer medicamento de venda livre, incluindo o paracetamol. A orientação é que o uso seja feito na menor dose e tempo possíveis para o alívio de dor ou febre, sempre com o acompanhamento de um profissional.
Pediatra comenta riscos da desinformação
De acordo com a pediatra Anna Bohn, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), não há evidências que sustentem essa relação direta. “O maior estudo já realizado sobre o tema, envolvendo 2,5 milhões de crianças na Suécia, não encontrou aumento no risco de autismo em filhos de mulheres que usaram paracetamol durante a gravidez. Quando compararam irmãos, inclusive em famílias com histórico de autismo, a diferença foi zero”, explica.
Estudos menores que sugeriram associação apresentam, segundo a médica, limitações metodológicas importantes. “Muitas dessas pesquisas foram feitas com base em recordações maternas de uso de paracetamol anos depois da gestação, em famílias que já tinham crianças diagnosticadas com autismo. Esse tipo de dado é impreciso e sujeito a vieses. Além disso, não foi identificada relação com dose, ou seja, mesmo quem usou mais não apresentou risco maior”, completa.
A especialista lembra que o paracetamol é amplamente utilizado desde a década de 1950, enquanto as primeiras descrições do transtorno do espectro autista datam de 1911. Países como Japão e Noruega também conduziram análises populacionais e chegaram às mesmas conclusões que o estudo sueco. Revisões sistemáticas recentes reforçam que a exposição intrauterina ao medicamento é improvável de representar aumento relevante no risco de autismo. “Atribuir essa condição complexa a um único fator, além de não condizer com o conhecimento científico atual, reforça estigmas e culpa injustamente as mães”, destaca a pediatra.
Outro ponto levantado é que não tratar febre na gestação pode, sim, trazer riscos reais ao feto. “A febre materna está associada a malformações e complicações. Portanto, simplesmente desaconselhar o uso de um medicamento seguro, sem oferecer alternativa adequada, pode ser perigoso. É preciso avaliar cada caso com critério médico”, afirma Anna Bohn.
Revistas científicas de peso, como a Nature, já publicaram respostas às falas de Trump, reiterando que não há dados que justifiquem a recomendação de restrição ampla do paracetamol na gravidez. Para a pediatra, o episódio evidencia como a desinformação em saúde pode ganhar proporção rapidamente quando parte de autoridades políticas.
Ciência não é opinião: é construída com dados, décadas de estudo e rigor metodológico. Trazer à tona dúvidas sem base sólida só amplia o sofrimento das famílias e dificulta o acesso a informações corretas”, conclui.
Autistas Brasil repudia declarações de Trump
Entidade denuncia discurso eugenista e alerta para o risco de políticas que desumanizam pessoas autistas
Em nota, o vice-presidente da Autistas Brasil, Arthur Ataide Ferreira Garcia, classificou as declarações como parte de um projeto político de apagamento das pessoas com deficiência.
Trump e Kennedy não estão apenas equivocados quando falam que o autismo é causado pelo uso de Tylenol, não é meramente um erro, é um projeto político. Estão reintroduzindo no século XXI a lógica eugenista que trata pessoas com deficiência como tragédia. O autismo se torna um vilão a ser combatido, e pessoas autistas são reduzidas a sujeitos desumanizados numa cruzada moral em nome de uma sociedade ‘pura’ e homogênea, sem lugar para aqueles tidos como ‘diferentes’, ‘estranhos’, ‘deficientes’”, afirmou Garcia.
Segundo a entidade, o aumento de diagnósticos de autismo observado nas últimas décadas não é epidemia nem crise de saúde pública, mas reflexo de maior acesso à avaliação e diagnóstico, especialmente entre grupos historicamente invisibilizados, como mulheres autistas e pessoas negras.
Garcia destacou que não existe evidência científica consistente que sustente a associação entre paracetamol, vacinas e autismo. “Até o momento, não há ensaios clínicos randomizados, metanálises robustas ou grandes estudos populacionais que apontem uma relação real. O que vemos é uma estratégia deliberada de transformar nossa condição em um mal a ser combatido, uma cruzada capacitista em nome de um mundo supostamente mais ‘normal’”, disse.
A Autistas Brasil também alerta que discursos como o de Trump já encontram ressonância no Brasil, especialmente em setores ligados ao lobby de clínicas privadas que defendem a “cura” do autismo. Para a entidade, esse movimento ameaça a construção de políticas públicas baseadas na inclusão e na emancipação.
O autismo não é doença e não precisa de cura. O que a sociedade deve buscar são políticas públicas que promovam emancipação, e isso não se dá com um discurso que patologiza a existência de pessoas autistas. Se dá com acessibilidade, educação inclusiva, cuidado humanizado e emprego apoiado”, completou Garcia.
Ministério da Saúde reafirma que paracetamol não causa autismo
O Ministério da Saúde emitiu uma nota oficial nesta terça-feira (23) para reforçar que o paracetamol, um fármaco de propriedades analgésica e antipirética (redução da febre), é seguro, eficaz e não está relacionado a ocorrência de autismo. A manifestação ocorre um dia depois de o presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump, ter feito essa correlação, sem apresentar provas, em uma declaração à imprensa.
A saúde não pode ser alvo de atos irresponsáveis. A atuação de lideranças políticas na criação de informações deturpadas pode gerar consequências desastrosas para a saúde pública, como vimos na pandemia de Covid-19, com mais de 700 mil vidas perdidas no Brasil”, disse o Ministério da Saúde, em nota.
“O anúncio de que autismo é causado pelo uso de paracetamol na gestação pode causar pânico e prejuízo para a saúde de mães e filhos, inclusive com a recusa de tratamento em casos de febre e dor, além do desrespeito às pessoas que vivem com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias”,
De acordo com o Ministério da Saúde, “o transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por desenvolvimento atípico, manifestações comportamentais, déficits na comunicação e na interação social, padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados, podendo apresentar um repertório restrito de interesses e atividades”.
Na nota, a pasta diz que busca reverter os prejuízos causados pelo negacionismo no Brasil, “que impactou na adesão da população às vacinas em um país que já foi referência mundial neste tema”.
Confira a nota da Sogesp
‘Um medicamento seguro e eficaz para o alívio da dor e febre durante a gravidez’
Sogesp informa ginecologistas e obstetras sobre recente polêmica em torno do uso de paracetamol durante a gravidez
Em um cenário no qual a desinformação pode se propagar rapidamente, é crucial que nos mantenhamos firmes nos pilares da evidência científica robusta. Neste contexto, em face de discussões recentes sobre uma possível associação entre o uso de paracetamol (acetaminofeno) durante a gravidez e o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP) divulga esta nota com objetivo de informar aos colegas ginecologistas e obstetras que a evidência científica atual não sustenta uma associação causal robusta entre o uso de paracetamol e o desenvolvimento de autismo.
A maioria dos estudos que sugere essa ligação é de natureza observacional, o que significa que não consegue estabelecer uma relação direta de causa e efeito. Os resultados observados nestes estudos podem ser influenciados por múltiplos fatores de confusão, como a razão pela qual o paracetamol foi usado, outras condições de saúde da gestante e fatores genéticos ou ambientais não relacionados.
Até o momento, agências reguladoras e organizações de saúde de renome mundial, como a Food and Drug Administration (FDA) e o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) não alteraram suas recomendações. O paracetamol vem sendo usado há muitos anos como analgésico em gestantes e, como todo medicamento, na gestação deve ser utilizado somente quando necessário. Portanto, até o momento, continua a ser considerado um medicamento seguro e eficaz para o alívio da dor e febre durante a gravidez, quando usado conforme a indicação.
É fundamental que nossa prática clínica continue a ser baseada em evidências sólidas e não em especulações. A interrupção do uso de um medicamento seguro e necessário, como o paracetamol, pode levar a riscos maiores e conhecidos para a gestante e o feto, como febre alta ou dor não controlada, que podem ter consequências adversas.
A SOGESP mantém seu compromisso de informar aos seus associados, com seriedade, isenção e análise científica sobre dados que possam influenciar na saúde do binômio materno fetal.
Dra. Rosiane Mattar, Diretora Científica SOGESP e Dra. Silvana Maria Quintana, Coordenadora Científica de Obstetrícia SOGESP
Com agências e assessorias (atualizado em 23/09/25)